Centenário de Saramago. Carlos Reis: “Saramago gerava e gera fenómenos de verdadeira devoção”
A 16 de novembro de 2021 assinalou-se o 99º aniversário de José Saramago e tem oficialmente início o centenário do escritor, que se vai estender até 2022. No Ponto Final, Parágrafo não se podia deixar de assinalar a data. Desta vez, para nos guiar pelas celebrações, temos o Comissário para o Centenário de José Saramago, Carlos Reis, que é também professor jubilado, ensaísta, destacado queirosiano, coordenador do Centro de Literatura Portuguesa e chegou a entrevistar José Saramago durante um total de 7 horas, na casa do escritor em Lanzarote, entrevistas das quais resultou o livro “Diálogos com Saramago”, agora com nova edição da Porto Editora.
Se pudesse fazer uma pergunta agora a Saramago, Carlos Reis perguntaria que livro dele que quereria que fosse lido daqui por 200 anos. “Digo isto não porque tenha dúvidas de que a obra de Saramago ficará por muitos anos, mas porque é sempre interessante sabermos qual a representação que o escritor tem da sua obra. Não que isso seja um definitivo guia de leitura, mas — nem sempre pensamos nisto — quando um escritor escreve, vai passando pela história ou a história vai passando por ele, os seus juízos vão mudando e por vezes um escritor vive de forma diferentemente confortável com as suas obras”.
Um dos eixos na celebração do centenário de Saramago, que se inicia dia 16 de novembro de 2021, no dia em que Saramago faria 99 anos, é o da leitura da obra. “Dir-se-á «mas Saramago já é muito lido». É muito lido, sem dúvida”, diz Carlos Reis, “mas é preciso que continue a ser lido. E é preciso que seja lido em muitos lugares, em muitas idades, em muitos episódios e atos porque é isso que faz um escritor viver para além da morte”.
Por esta hora, milhares de alunos já terão lido em conjunto o conto “A maior flor do mundo”, de Saramago, em várias escolas portuguesas e espanholas. A ideia da leitura, que juntou tantas vozes em uníssono, foi de Carlos Reis, que explica que a ideia de abertura do centenário é vistosa. “Ler Saramago à mesma hora e ler o mesmo texto é como quem diz «há aqui uma causa coletiva». E lá está, é o centramento do centenário em torno do eixo da leitura. As crianças que estão a ler podem nem saber quem é este José Saramago ou ter uma vaga ideia, mas talvez daqui a dez ou quinze anos se lembrem. Porque isto fica registado e o registo também serve para isso”. O futuro de Saramago está nas mãos dos jovens, dos leitores.
Chegada é a altura de sabermos qual o “top 3” de livros de Saramago para Carlos Reis. Apesar de os livros preferidos irem mudando de posição, tal como lhe acontece com Eça de Queiroz, Carlos Reis elenca como estando neste momento em primeiro lugar o livro “O ano da morte de Ricardo Reis”, em segundo “Memorial do Convento”, e em terceiro “Ensaio sobre a cegueira”. No episódio, Carlos Reis justifica a escolha.
As celebrações do centenário de Saramago fazem-se com um vasto leque de atividades, que podem ser consultadas no site da Fundação José Saramago, e das quais fazem parte leituras, encenações no teatro, publicações e republicações – como é o caso da edição renovada de “Viagem a Portugal”, da Porto Editora, que inclui fotografias inéditas captadas pelo próprio Saramago, bem como da republicação da obra de Saramago na editora espanhola Alfaguara e na Companhia das Letras, no Brasil. Para Carlos Reis, isto é, no fundo “o encontro de duas vontades: a vontade dos leitores de reencontrarem livros de Saramago (ou o encontro pela primeira vez) e a vontade das editoras, que também tem uma componente comercial, que não tem mal nenhum, de corresponderem a esse desejo dos leitores”. Vão ser também publicados números de revistas temáticos e especiais, como vai ser o caso do Jornal de Letras, o que se liga, para Carlos Reis, com o eixo das reuniões académicas, que também faz parte das celebrações, com colóquios e conferências, que “podem ser mais importantes do que à partida as pessoas pensam” porque uma conferência pode ter 30 pessoas, mas quem vai são professores, “que orientam teses, dão aulas, isto é, têm um efeito reprodutivo, que ajuda, de facto, a manter o escritor vivo”.
Carlos Reis, como comissário do centenário, lembra que há um outro eixo, que é o da biografia de Saramago, “que é mais evidente e que tem que ver com lembrar os leitores de onde vem este homem, como foi a sua formação, qual era a sua atitude cívica perante a sociedade, perante a vida, como é que isto dialoga com a produção literária porque o escritor não vive em compartimentos estanques e o que ele pensa sobre a fome no mundo ou a falta de justiça em determinados meios em certas sociedades acaba por se filtrar para os livros.
Por causa da pandemia, que afetou a publicação de livros no ano de 2020, este ano não haverá divulgação de Prémio José Saramago, mas de certo que o prémio fará parte das celebrações no próximo.
O programa de celebrações vai sendo alterado, com atividades a serem adicionadas. Uma muito interessante que já ocorreu e que terá continuação, foi o lançamento de um rocket, um foguetão, com o nome “Blimunda”, o nome de uma personagem de Saramago, no livro “Memorial do Convento”, por parte de alunos do Instituto Superior Técnico, que participaram no European Rocketry Challenge, em Ponte de Sor, em Portalegre. Dentro do foguetão foi uma edição do livro, que subiu a cerca de quatro quilómetros no céu. É a primeira portuguesa a fazer parte da competição europeia. Para os alunos envolvidos, o nome Blimunda faz todo o sentido ser o de um foguetão, tendo em conta a história do livro. Ao Ponto Final, Parágrafo o responsável pelo projeto explicou que para a “época” de 21/22 vão desenvolver a missão Baltasar, “um rocket otimizado do Blimunda”. Carlos Reis tem uma curiosidade imensa sobre este projeto: “Eu não conheço mais nenhum escritor português a propósito do qual se congeminasse deste tipo, dando o nome de uma personagem. Isto é o que nós chamamos, no domínio da teoria da personagem, a sobrevida da personagem. É isto que faz da personagem da Blimunda, e de muitas mais no Saramago, uma figura que vai muito para além do que o escritor dela disse e fez dela dentro das páginas do romance. Ela está connosco. Há pouco a Magda dizia-me que pergunta eu fazia a Saramago, eu dei-lhe uma hipótese, mas agora dou-lhe outra: o que é que ele pensa desta Blimunda, que está articulada com o mundo da engenharia aeroespacial”.
Fica a ideia de que a obra de Saramago está bem viva, ideia que Carlos Reis transmite quando diz que agora celebramos o primeiro centenário para que outros, que não nós, celebrem o segundo.