Raras vezes a guitarra foi tão amada: Rodrigo & Gabriela deslumbraram no EDP Cool Jazz
Chegamos cedo aos Jardins do Marquês de Pombal, em pleno centro histórico da cidade de Oeiras. Para quem nunca visitou o lugar, o impacto visual é grande. Entramos na zona verde, planeada ainda no século XVII, mas que apenas passa a ser realidade quase cem anos mais tarde. A vegetação, os caminhos, e os extensos relvados formam um conjunto harmonioso e inspirador; como se não bastasse, a organização do EDP Cool Jazz potencia ainda mais essa beleza, escondendo elementos de iluminação que só se vão revelando à medida que a noite cai. Noite que viria a ser também iluminada pela magia das guitarras de Rodrigo & Gabriela – e pela discreta mas emotiva presença da artista portuguesa Márcia.
No interior do recinto, o ambiente é descontraído. Chegámos cedo. As roulottes de street food encontram-se espalhadas, às portas da secção do jardim que vai acolher os primeiros a chegar. O Cool Jazz é um festival de verão com muita classe. Há direito a vinho servido em copos de vidro.
Dentro da fonte, em redor da qual se encontra um jardim rasteiro, quadrado e labiríntico, toca uma banda portuguesa de jazz nova-iorquino. São os Sócrates Borras, colectivo formado por um saxofone, um contra-baixo e uma guitarra eléctrica. É com um som simples e descontraído que vão dando as boas-vindas a quem chega, num final de tarde colorido pelos acordes e improvisos com que somos presenteados. Destaque para a guitarra, discreta mas de som cheio, nos meandros para os quais o género nos puxa; numa noite que viria celebrar as glórias daquele instrumento, serviu de mote às actuações do cartaz. De notar que foi o momento com mais jazz neste dia do Cool Jazz.
Por volta das 21h, entramos na zona principal do recinto. Um extenso relvado, ladeado de árvores grandes, arcadas rústicas e fontes iluminadas. Milhares de cadeiras, dispostas de forma organizada na frente do palco; o público vai ocupando as suas posições. As nuvens anunciam chuva, mas não chega a cair uma única gota.
A tarefa de abrir a noite coube a Márcia. A artista portuguesa, que com o seu indie pop tem vindo a construir uma sólida carreira de reconhecido mérito, entrou em palco acompanhada de cinco músicos. Começa por interpretar ‘Linha de Ferro‘, canção do seu mais recente disco editado em 2015, ‘Quarto Crescente‘. Apesar do alargado número de instrumentos, a música de Márcia forma uma sonoridade simples e quase despida; temos a oportunidade de ouvir com clareza as palavras que entoa com a sua voz rouca e quente. Antes de cantar ‘A Insatisfação‘, convida o público a acompanhá-la, mas a plateia permanece silenciosa. Vêm-se, apesar disso, cabeças a balançar. Somos embalados pelas notas e mudanças de acordes; que, ao contrário do que o título da canção poderia dar a entender, satisfazem, e muito.
É talvez um desafio que o cartaz do EDP Cool Jazz apresenta, simultaneamente, aos artistas e ao público: a desproporcionalidade de público que duas bandas, uma com maior destaque e visibilidade que a outra, convocam em cada noite. Muitos não estariam ali por Márcia; mas a artista deu um grande espectáculo. Discreto, como ela, mas intenso – como a interpretação de ‘Bom destino‘ foi prova. A solo em palco, tocou e cantou ‘A pele que há em mim‘, a sua canção que mais correu as rádios no início da década. Houve ainda tempo para um bonito cover de Suzanne Vega, ‘Luka‘, numa alusão à edição de 2014 do festival, em que Márcia marcou presença na mesma noite da artista americana. “Na altura não cheguei a mostrar-lhe esta versão; mas apresento-vos hoje a vocês“. O concerto termina com “Lado Oposto“, do último disco, uma das mais expansivas da carreira de Márcia. ‘Não cantaram nem uma!‘, brincou com o público. Não cantámos, mas ouvimos com atenção, com deslumbre e muito gosto.
Vinte minutos depois, entravam em palco os cabeças de cartaz. Rodrigo & Gabriela são uma dupla improvável e refrescante no panorama da música internacional: dois músicos mexicano, exímios guitarristas, no cruzamento entre o rock acústico, o flamenco, o folk. Já dissemos excelentes guitarristas? Queremos sublinhar várias vezes. Ao nível de entrarem para os tops dos melhores de sempre. Conhecem a guitarra como muito poucos, e conseguem fazer coisas com ela que terei dificuldade em acreditar que muitos mais conseguirão. São verdadeiramente gigantes. Gabriela entra, de muletas, e apoiada por um braço; senta-se numa cadeira de rodas onde permanece ao longo de todo o concerto com a perna esquerda esticada. ‘Partiu o pé a meio da tour, há três semanas‘, anuncia Rodrigo, após interpretarem as três primeiras músicas. Não foi suficiente para a parar.
Há concertos que se tornam especiais porque depositamos neles muita expectativa, investimos emocionalmente no momento, corremos para as primeiras filas, gritamos as letras de cor até ficarmos roucos, e estamos ladeados de amigos que também adoram aquelas músicas. Os astros alinhados e nós ali, a ver a banda X tocar para nós, no momento certo da nossa vida. Não foi o caso de Rodrigo & Gabriela: esqueçam a expectativa, o investimento emocional, as primeiras filas e as letras (inexistentes, já Márcia tinha lembrado: “Não cantaram no meu, agora nos próximos também não vão poder cantar, perderam a vossa oportunidade“). A dupla mexicana deu um grande concerto, um dos melhores que já vimos este ano (não foram poucos), só à custa do seu talento e da sua música; num espectáculo cem por cento instrumental, em que o som de dois artistas parecia o de quatro ou cinco.
Como descrever a actividade da mão direita de Gabriela, que, a um ritmo certo e acelerado, consegue retirar da guitarra um flamenco só reproduzível por três instrumentos; e que, como se não bastasse, ainda cria ritmos intrigantes de baixos profundos pelo batimento da palma da mão e dos dedos no corpo da viola. Já Rodrigo é o responsável principal pela construção melódica, ora a uma velocidade dita normal, ora acelerando até um nível que não julgamos humanamente possível. Podemos resumir o deslumbre que o concerto nos deixou em três pontos: a admiração de um espectáculo quase circense, pelo talento puro que emana da dupla sul-americana; o balanço de uma música que não deixa ninguém quieto, mesmo que sentados em cadeiras, como a maioria do público permaneceu até próximo do fim; e a surpresa emocionada que determinadas passagens nos deixam – um acorde específico, uma linha melódica fugaz – que rapidamente se escoa para dar lugar ao ritmo seguinte.
Os músicos correm canções da sua carreira com já quase duas décadas, nesta tour que celebra o décimo aniversário (ou décimo primeiro, como corrige Gabriela) do seu mais aclamado disco, homónimo, editado em 2006. Ouvimos muitas de ‘11:11‘, e também canções novas, do próximo disco, que se encontram presentemente a gravar. A guitarrista intervém a meio do espectáculo, numa das poucas ocasiões em que os músicos fazem questão de falar: “Vocês são muito civilizados… podem levantar-se, dançar, tirar algumas peças de roupa… não faz mal!“. Eram poucos os que, nas laterais, se abanavam livremente; ninguém se atrevia a perturbar os restantes – afinal de contas, as cadeiras acabam por condicionar o comportamento da plateia. Mesmo assim, sentado, nunca tinha dançado tanto.
De destacar a qualidade do som do festival. Embora uma falha técnica, na monitorização dos próprios músicos, tenha obrigado a uma interrupção do espectáculo para correcção do problema, isso nunca se reflectiu no que a plateia ouviu. Quer em Márcia, quer em Rodrigo & Gabriela, o som estava muito bem captado e emitido, e marcou a diferença relativamente a outros festivais de verão. O ambiente, mais calmo e silencioso, provavelmente ajuda – mas soube bem ouvir-se com tanta clareza cada nota, e com tanta profundidade (sem exageros desmesurados) os ritmos graves da guitarra.
Rodrigo anuncia, antes de interpretarem a última música da noite, que esperam voltar a Portugal para o ano, para a apresentação do novo disco. Isto depois de terem visitado o nosso país pela primeira vez no ano passado. Esperamos que sim. Talvez noutro contexto, talvez sem cadeiras. O público levantou-se, e acorreu em grande número para a frente do palco, onde fez a festa ao longo dos últimos cinco minutos. Só faltou tirarem-se peças de roupa: de resto, Rodrigo & Gabriela saem de Portugal com a ovação e a manifestação de devoção a que tinham direito.
Fotografias de © Sofia Rodrigues / CCA