A liberdade de não escolher
Não existe uma altura certa para todas as coisas, um limite escrito em pedra para o que queremos ou podemos fazer. Um dia sonhei que, por esta altura, estaria num sítio diferente. Um dia pensei, também, que não importa, sequer, se o fazemos ou não.
Tinha 24 ou 25 anos quando escrevi que a mera possibilidade era suficiente. Se puder fazer e não o fizer, por escolha própria, o resultado é o mesmo. O acto – o resultado – em si é irrelevante, o poder da escolha é total, absoluto.
A inferência é capaz de ser ilógica ou irracional. Aliás, é o mais provável.
Tentei racionalizar isto da maneira mais estranha que consegui. A liberdade de escolher as nossas acções é igual ao acto que acabaremos por realizar ou deixar para trás.
Isto significa que, de certa forma, nunca somos tão livres como naqueles instantes antes de nos comprometermos com uma escolha, com um caminho fixo, uma direcção específica.
Na minha crónica sobre as últimas palavras de Bukowski abordei o tema. Passei anos a acreditar no “não tentes“, que as coisas me iriam acontecer independentemente do que fizesse, que o caminho se revelaria sozinho.
Estava errado.
Ainda não ultrapassei completamente a minha fase existencialista, em que tento encontrar o – meu – significado neste mundo. Falo de suicídio e de solidão e assusto as pessoas à minha volta sem necessidade. Não de propósito, mas porque são temas fulcrais na nossa vida actual. O século XX redefiniu os valores da sociedade ocidental. Outrora livres do peso da escolha, de repente duvidamos da palavra religiosa, dos “desígnios de deus” e do caminho que ele escolheu para nós. A morte de deus criou um vácuo, que nos cabe a nós preencher com a descoberta de nós próprios, o que queremos fazer, o porquê de o quereremos e a procura do que nos deixa felizes.
O absurdismo e o problema do significado da vida atingiu o seu pico na pós-segunda guerra mundial. Afinal, que tipo de deus deixaria os horrores do holocausto acontecer? É um absurdo em si e qualquer pessoa sã – devota ou ateia – não pode ignorar a existência de horrores injustos, aleatórios, sem sentido, sem um plano ou destino. É quase como se deus não se importasse com o que nos acontece ou, talvez, não existisse.
Ao contrário do que contam os leads noticiosos, estamos a erradicar a pobreza e a criar um mundo cada vez mais pacífico, muito por causa do conhecimento que adquirimos com os erros do passado. Mas continuamos a cometer novos erros que precisam de ser corrigidos. A necessidade de tolerar o intolerável é incrível, porque “temos de pagar pelos erros do passado”. Medimos as palavras não para proteger os outros, mas para nos salvaguardarmos de um rótulo permanente. Nunca falámos tanto e nunca deixámos tanto por dizer.
O que tem isto tem a ver com a nossa liberdade de escolha, com os momentos em que somos realmente livres? Dizem que se não fizermos nada, não podemos fazer nada errado, mas é fácil cair nessa indecisão, nessa apatia que racionalizamos falaciosamente. Porque, no fundo, a inacção é também uma forma de acção. No dilema do bonde ou eléctrico ou comboio, há vários cursos de acção: salvar uma pessoa, salvar cinco ou deixar o comboio seguir o seu caminho e não tomar uma decisão. Ainda há uma outra, mais mórbida e francamente a minha preferida, a do homem gordo e outras variantes teorizadas por filósofos. No entanto, é a inacção que me importa. Não há uma resposta correcta ao problema do eléctrico. A perda de uma vida humana é uma tragédia imensurável que não pode ser medida sob um parâmetro de um “bem maior”. Matar uma pessoa para salvar cinco não é uma vitória de um saldo positivo, assim como matar cinco para salvar apenas uma é uma derrota com saldo negativo. Todas elas são respostas erradas porque todas elas resultam no mesmo: perda de vida humana. Immanuel Kant disse que para um acto ser moralmente obrigatório, esse acto teria igualmente de ser possível. Por outras palavras, o impossível não pode ser moralmente obrigatório. A minha escolha, segundo a minha própria racionalização de que somos livres para não escolher, seria deixar o comboio seguir caminho e trucidar quem tivesse de ser trucidado. A minha inacção resultaria directamente na morte de uma ou cinco pessoas. Moralmente é uma escolha aceitável(?). Não fui eu que coloquei o comboio desgovernado no caminho de tantas pessoas. Não me cabe a mim decidir sobre quem vive ou morre. Uma visão utilitarista diria que é melhor salvar o maior número de pessoas ao custo de um número menor. Contra isso eu respondo: Quem somos nós para decidir quem vive ou morre? Percebo que é uma espécie de cop-out, uma maneira de evadirmos a responsabilidade da consequência das nossas escolhas, mas não há como escapar. Eu continuaria a ser responsável pelas vidas perdidas. Podia ter feito mais, qualquer coisa e confrontado com a decisão, a inacção seria a minha escolha. No entanto, naquele preciso momento, nunca teria sido tão livre. Tinha, nas mãos, controlo total e absoluto sobre um resultado específico. A consequência final será sempre desastrosa e irrelevante, mas naqueles instantes, a liberdade de escolha é a epítome da nossa independência enquanto seres humanos.
Contudo, não é verdade que se não fizermos nada, não podemos fazer nada errado. Duma maneira ou doutra encontramos uma hoste de possibilidades, de resultados a desenrolarem-se à nossa frente. Podemos escolher fazer parte do desfecho ou não, mas não muda o simples facto de que a nossa liberdade tem sempre consequências.
É por isso que agora acredito que se temos a capacidade de aprender com o que vivemos e experienciamos mais vale ir em frente, escolher um caminho, lidar com as consequências após o facto e crescer/aprender com o ensaio. A inacção continua a ser uma escolha legítima, mas não tem de ser a única escolha.
Quem sabe se não nos surpreendemos ao encontrar algo bom entre escolhas que deixaríamos por fazer?
Vejo agora que, na altura, era um rapaz assustado e inseguro com o que futuro me reservava. O “não tentes”, a não escolha, foi a minha maneira de lidar e repelir todas as possibilidades de rejeição, dor e sofrimento que me esperavam. Vendei os olhos e recusei-me a ver o futuro.
Ainda acredito que não há momento mais libertador, mais humano, do que o que antecede uma escolha. É um poder que temos e nos torna mais sensíveis, que nos lembra do pequeno controlo que nunca perderemos sobre as nossas vidas. De que nem tudo é aleatório ou desprovido de significado.
Escolher não escolher, como eu fiz durante tanto tempo, é errado – julgo eu. Não há maneira de evitarmos a vida. Nietzsche falou de colocarmos o centro de gravidade de volta na esfera da nossa existência. Sartre, mais tarde, concluiu que viver é um equilíbrio constante entre escolhas e consequências. Ambas são inevitáveis, mas eu estava a tentar o impossível.
Tenho pena de não ter estudado filosofia e não saber mais. Escrevo sobre o que vivo, o que leio, o que penso e reflicto. Só posso esperar que seja o suficiente.
Entretanto faço isto para continuar a descobrir-me a mim próprio. Um pedaço – uma escolha – de cada vez.