“Writing with Fire”, de Sushmit Ghosh e Rintu Thomas, ou a guerra pela informação
O realizador Joshua Oppenheimer (“The Act of Killing” e “The Look of Silence”, ambos disponíveis na Filmin), abre a sua excelente crónica de novembro de 2014 para o site IndieWire, com o seguinte parágrafo:
“A função do jornalismo é, principalmente, descobrir novas informações de interesse público e disponibilizar essas informações num contexto que vise melhorar a condição humana. Sinto que o propósito da arte é diferente. O que torna a arte poderosa é um laivo de reconhecimento, um encontro assustador com algo familiar sobre a condição humana. Vemos algo perturbador, mas, no momento em que identificamos a sua autenticidade, é sempre um momento de reconhecimento: um momento de encontro com o que já sabíamos, mas estávamos com medo de reconhecer — talvez até com medo de nos lembrarmos.”
“Writing with fire” (que está disponível na Filmin), realizado pela dupla Sushmit Ghosh e Rintu Thomas, é um documentário premiado sobre o Khabar Lahariya (Waves of News), o único meio de comunicação da Índia, totalmente gerido por mulheres Dalit, uma casta discriminada. Baseadas na região rural de Uttar Pradesh — pobre e populosa — as repórteres enfrentam situações que vão do cómico ao violento. Do desumano ao bizarro. Tudo com uma resiliência, coragem e custo pessoal muito vincados durante os noventa e dois minutos de filme.
A tese defendida por Oppenheimer pode ser analisada através do caleidoscópio de “Writing with fire”. O realizador, duas vezes nomeado ao Óscar de Melhor Documentário, é conhecido por ser interventivo nas acções que filma. Por oposição temos Ghosh e Thomas: cingidos a um papel voyeurístico, têm um peso raramente perceptível nos comportamentos das pessoas que filmam… e que, muitas das vezes, já estão a ser filmadas para uma reportagem.
Se a fronteira entre documentário e jornalismo de investigação é ténue, as redes sociais vieram complicar ainda mais essa dinâmica. Os vídeos das repórteres não diferem muito dos stories no teu Instagram. A diferença está, principalmente, nas dificuldades ultrapassadas para chegarem ao sujeito da filmagem. De lá, espelham retratos de uma realidade que, como Oppenheimer defende, conhecemos “mas estávamos com medo de reconhecer – talvez até com medo de nos lembrarmos”.
Causa e consequência.
O profissionalismo das protagonistas é condicionado não só pela sua realidade social e económica, mas também pela corrupção e machismo estrutural que impregna o dia-a-dia na sociedade indiana. A sua luta pela emancipação no seio familiar é espelhada na batalha pela credibilidade do seu jornal. Contudo, a sinceridade das suas acções, capturadas pela lente da dupla de realizadores indianos, é comovente. Ultrapassam estigmas sociais, problemas familiares e quilómetros de estradas medievais, para partilhar histórias de violência, na esperança de impedir outras. São nesses momentos bonitos, no meio do caos, que a humanidade (sobre)vive.
Para as protagonistas, para além do existencialismo que desenvolvem através da exposição a todas estas situações na primeira pessoa, acresce a responsabilidade de 169 milhões de visualizações e meio milhão de subscritores no Youtube (à data que este artigo foi escrito). Existem milhares de pessoas dependentes do trabalho destas jornalistas para estarem em contacto com a sua realidade local e nacional. E, depois da sua estreia, milhares de espectadorxs foram inspiradxs pela força e capacidade de reinvenção retratadas no documentário. O papel das Khabar Lahariya na emancipação feminina na Índia não pode ser subvalorizado. Porque, felizmente, estas mulheres ainda possuem a liberdade para partilhar informação.
Esse é um poder que a internet democratizou e fomentou. O peso que o discurso livre, nomeadamente através das redes sociais, tem no mundo é imensurável. Americanos e alemães da minha geração trocam piadas na internet, enquanto os seus avós trocavam granadas na 2.ª Guerra Mundial. A troca de experiências tão triviais, como jogos online e #SlavLife, entre os dois lados da cortina de ferro é fundamental para a criação de empatia e, consequentemente, familiaridade e segurança. Hoje as redes sociais fomentam laços reais que, em anteriores conflitos, teriam sido difíceis de estabelecer. Mas o que acontece aos amigos-online na impossibilidade de trocar GIFs? Aliás: o que acontece aos amigos-online quando os seus países entram em guerra?
No passado dia 11 de março, a Meta anunciou que permitirá publicações com discurso de ódio contra soldados russos, como consequência da invasão russa à Ucrânia. Em resposta, a Rússia baniu o Facebook e o Instagram, classificando a postura da empresa de Mark Zuckerberg como “extremista”. No mesmo dia, o Youtube limitou o seu acesso na Rússia. Estas decisões restringem a acção de qualquer cidadão e órgão de comunicação russo, principalmente os mais precários. Projectos semelhantes ao Khabar Lahariya serão seriamente fragilizados. A propaganda política, várias vezes reportada como sendo fundamentada em desconfianças, vai continuar a disseminar o medo e a desinformação.
Causa e consequência. O caos reina.
As peças estão no tabuleiro há muito tempo. As lutas do povo ucraniano não começaram agora e, infelizmente, não parecem ter fim à vista. Continuam, sim, a lembrar-nos de como a Humanidade resiste no centro do caos. Como o vídeo deste protestante ucraniano que parou um tanque com as próprias mãos. Ou desta aparente conversa de Tinder, em que uma rapariga russa tenta explicar a complexa situação vivida no seu país. O medo é constante, e acções em que a liberdade individual é exercida são fundamentais para não perdermos aquilo que nos distingue das outras espécies.
As redes sociais e o trabalho jornalístico têm formado uma simbiose poderosa para manterem o mundo informado de todas as suas frentes. Limitar o trabalho de jornalistas, como as heroínas do Khabar Lahariya, é limitar o nosso alcance à informação, e, nesta altura, esse é o maior atentado possível à segurança mundial. “Writing with fire” termina com a informação de que 40 jornalistas foram mortos na Índia desde 2014. É um dos países mais perigosos do mundo para se exercer essa profissão. Pelas imagens que correm o mundo, a Ucrânia e a Rússia estão rapidamente a trepar essa lista. A realidade de um local, permite-nos entender e repensar a nossa perspectiva em relação a outro. “O que torna a arte poderosa é um laivo de reconhecimento, um encontro assustador com algo familiar sobre a condição humana.”
E é por isso, mas não só, que “Writing with fire”, que está nomeado para o Óscar de Melhor Documentário (conhece todos os nomeados), merece ser visto.