O mar e o cinema do Estado Novo
Eduardo Lourenço reflectiu acerca dos mitos e ficções do imaginário nacional, afirmando que a identidade – ou especificidade – portuguesa se consolidou muito através de uma obsessão pelo passado que almejava perpetuar uma utopia do «termos sido», isto é, o que poderíamos ter sido depois do estatuto soberano conquistado com os Descobrimentos, diz-nos o autor em O Labirinto da Saudade (2007). A crença no mito sebastianista é talvez o epíteto dessa quimera, já que, com a derrota em Alcácer-Quibir e o domínio filipino, o passado assomou como a imagem ideal – mas irreal, hiperbólica – que seria restaurada pela promessa heróica e saudosista do sebastianismo. Perante esta ideia, seria de esperar que o cinema português do Estado Novo recuperasse o conflito heróico com o mar através de filmes históricos ou de época que versassem sobre as viagens míticas e ancestrais que nos foram legadas até ao presente. Os filmes históricos e as adaptações literárias encontravam-se na lista privilegiada de António Ferro, director do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), que passaria a denominar-se Secretariado Nacional de Informação (SNI) em 1945, preferência que se prendia com o desiderato de estimular o patriotismo da população numa linha que ia de encontro aos princípios do salazarismo, como asseverou Patrícia Vieira em Cinema durante o Estado Novo (2011).
Todavia, estes filmes históricos ou de época materializaram-se no cinema português através de obras de cunho biográfico (como Camões (1946), de Leitão de Barros), ou das adaptações literárias (Frei Luís de Sousa (1950) de António Lopes Ribeiro, adaptação homónima da obra canónica de Almeida Garret que invoca nostalgicamente o mito do sebastianismo). Durante a ditadura salazarista, a relação dos portugueses com o mar começou por ser reproduzida essencialmente através de filmes que se situavam no ‘presente’, e que louvavam a simplicidade do quotidiano regional, consolidando o território – neste caso, o mar – como fonte de sustento mas também como palco de aventuras e tragédias onde se enaltecia a coragem humana, que seria sempre recompensada pelos árduos sacrifícios em nome da ‘terra’. Mas também existiram filmes que procuraram reavivar o heroísmo aventureiro dos Descobrimentos através de actividades como a pesca do bacalhau nos mares do norte ou a caça da baleia. Porque, aos olhos da ditadura de um país essencialmente rural e pobre, faria mais sentido cultivar uma imagem harmoniosa das comunidades regionais que viviam à beira-mar – a faina, os costumes, o quotidiano – do que a reconstrução histórica das aventuras marítimas dos séculos XV e XVI – que também envolveriam custos de produção mais elevados.
Uma das semelhanças entre o cinema do Estado Novo e o cinema da Primeira República é a preferência pela ambiência rural (talvez não existam tantos filmes ambientados em zonas rurais durante o Estado Novo por questões logísticas, já que os estúdios se encontravam todos sediados em Lisboa). Durante a Primeira República, o cinema nacional definiu-se, segundo as palavras de Tiago Baptista, pelos “filmes genuinamente portugueses”, galeria de obras realizadas por autores estrangeiros que tomavam o meio rural como universo diegético – e que excluíam, na sua grande maioria, representações do espaço urbano, sendo Os Olhos da Alma (1923) de Roger Lion uma rara excepção. Mas muitos afirmam que este filme se serviu do espaço urbano a fim de exaltar a ‘pureza’ da vivência rural em contraposição com a cidade, lugar associado à corrupção dos valores e do espírito humano. E, mesmo durante o Estado Novo, esta dicotomia entre campo e cidade vai ser perpetuada no cinema. As representações do rural no cinema português reflectiam o engajamento do regime em exaltar a ruralidade, como afirmou Fernando Catroga, como uma espécie de reserva da essencialidade da nação que se deveria conciliar com o culto etnográfico e folclórico da população. O Estado Novo empenhou-se assim no enaltecimento do regionalismo como um valor a ser preservado, apregoando a vivência bucólica como o ideal modo de vida. Neste sentido, o cinema português reproduziu, durante muitos anos – até que o neorrealismo de Manuel Guimarães e o Novo Cinema dos anos sessenta se insurgissem no panorama nacional – uma visão idealizada das comunidades rurais dispostas a todos os sacrifícios pela terra natal.
Diz-se que Os Olhos da Alma foi o primeiro filme rodado na Nazaré. Sendo considerado um importante documento histórico, pela descrição minuciosa da labuta, dos costumes e dos hábitos da população piscatória, o filme de Roger Lion é comummente considerado uma importante influência na obra de realizadores que ambientaram os seus filmes na Nazaré ou em outras regiões da costa litoral. Já na altura da Ditadura Militar que culminaria na instauração oficial do Estado Novo, Leitão de Barros iniciou a sua trilogia do mar, constituída por Nazaré, Praia de Pescadores (1929), Maria do Mar (1930) e Ala-Arriba (1942), este último rodado na Póvoa de Varzim. Sobretudo com os dois primeiros filmes, Leitão de Barros foi aplaudido pelo retrato singular que fez da Nazaré, nitidamente influenciado pelas tendências das vanguardas cinematográficas europeias, sobretudo da escola soviética, mas talvez também por outros filmes realizados durante a Primeira República portuguesa além de Os Olhos da Alma, como Os Faroleiros (1922), de Maurice Mariaud, um drama familiar ambientado na costa litoral. Nazaré, Praia de Pescadores destaca-se pela audácia experimentalista na captação da paisagem nazarena, que se repercutiria em Maria do Mar, espelhando um amadurecimento estético e o importante papel do cineasta enquanto precursor do realismo no cinema português, não passando despercebido à crítica estrangeira. Maria do Mar, considerada a primeira etnoficção do cinema português e a segunda mundial, sendo a primeira o filme Moana, O Homem Perfeito/Moana (1926) de Robert Flaherty, revela-se assim uma das grandes referências visuais deste imaginário no cinema português. Não só Nazaré, mas outras regiões da costa litoral seriam palco de vários filmes durante o Estado Novo, ainda que muitas das representações destes espaços pretendessem veicular os princípios e valores da ideologia salazarista.
O mar conquistou assim um importante papel nestes filmes, não só pelo seu estatuto emblemático na identidade nacional, mas também pela sua potencialidade narrativa – a dimensão trágica e dramática que cercavam os mitos e histórias da relação das comunidades com a costa litoral. Heróis do Mar (1949), de Fernando Garcia, do qual se perdeu a banda de som, evidencia imediatamente pelo título a aura heróica que interessava ao regime consolidar na sua perpetuação de uma ideologia patriota e tradicionalista. O mar firmava assim a sua importância enquanto paisagem através da qual era exaltada a coragem humana; o seu simbolismo heróico e épico é iluminado em Heróis do Mar a fim de reavivar as epopeias seculares dos Descobrimentos, da mesma maneira que em Quando o Mar Galgou a Terra (1954) de Henrique Campos; no primeiro, a pesca do bacalhau nos mares do norte, no segundo, a caça da baleia. Por sua vez, A Canção da Terra (1938) de Jorge Brum do Canto, filmado na ilha de Porto Santo, é talvez um dos expoentes do ideal da “pobreza honrada” que o cinema do período procurava difundir. Apesar de não existir pesca neste filme, a proximidade com o mar (e o isolamento perante este, tema que seria explorado mais amplamente em As Ilhas Encantadas (1966), de Carlos Vilardebó) parece ampliar o desespero de uma comunidade cuja labuta é exaustiva e aparentemente vã; porém, no final, esta comunidade será recompensada por todo o sofrimento que só a devoção à terra justifica – ao mesmo tempo que condena a emigração, «coisa ruim que dá pela cabeça das pessoas», como afirma o protagonista no final do filme.
Compreende-se que estes filmes, e sobretudo Ala-Arriba, tenham sido bastante apreciados por António Ferro, que chegou mesmo a enviar o filme final da trilogia do mar de Leitão Barros ao Festival de Veneza de 1942, onde foi galardoado com a Taça Volpi. Ala-Arriba repercute a afinidade estética e temática com os dois primeiros filmes da trilogia, e parece servir de referência para filmes posteriores. Desde a inspiração no documentarismo na descrição dos hábitos da comunidade piscatória, à encenação dramática, como vemos na sequência final, que capta a derradeira ‘batalha’ entre os pescadores e o mar enquanto as mulheres choram no areal, Ala-Arriba compila as imagens mais icónicas deste imaginário – imagens cuja influência reverberaria em Nazaré (1952), de Manuel Guimarães, autor que se insurgiu contra o chamado ‘cinema conformista’. Manuel Guimarães, o único precursor do neorrealismo em Portugal, desconstrói em Nazaré o heroísmo e a esperança em que estribavam as narrativas que versavam sobre a relação das comunidades com o mar. Nazaré resgata o dramatismo destes filmes, mas faz dissipar a esperança e o ideal de pobreza honrada; já não são os pescadores honrados, mas um grupo social marginalizado que procura tão-só sobreviver perante a miséria e a escassez de recursos.
Como testemunhamos na filmografia de Manuel Guimarães, a preferência pelos grupos sociais marginalizados afirma-se como ponto de partida para as novas representações dos territórios e da relação das comunidades com estes – consolidando imagens muito mais próximas de uma realidade que o Estado Novo se empenhava determinantemente em encobrir. Percebe-se assim porque é que o contributo de Manuel Guimarães para o neorrealismo está relacionado com a exploração dos temas de marginalidade social; e percebe-se também porque é que o realizador foi um dos mais vigiados pela censura. Nazaré é o único filme de Manuel Guimarães que incide directamente no quotidiano de uma comunidade piscatória, a sua labuta e as suas lutas, porém, o mar tornaria a aparecer como elemento da narrativa em Vidas sem Rumo (1956), ainda que, neste filme, não exista a encenação dramática, quer dos filmes que glorificam a relação com o mar, como Quando o Mar Galgou a Terra, quer dos filmes que pretendam subverter esses ideais, como Nazaré. Em Vidas sem Rumo, a proximidade com o mar é essencialmente a ferramenta narrativa de uma intriga misteriosa com nuances do filme noir, ainda que a galeria de personagens que vive nas docas venha espelhar a condição social de um país precariamente modernizado e fortemente afectado pela miséria. A omnipresença do mar no imaginário fílmico nem sempre se revela a partir das narrativas de fundo dramático e trágico, como vemos em Lisboa, Crónica Anedótica (1930), de Leitão de Barros (anterior à instauração oficial do Estado Novo), documentário que regista o dia-a-dia em várias zonas da capital, inclusive à beira-mar, ou simplesmente o drama amoroso interpretado por cadetes da marinha a bordo de um navio-escola em Eram Duzentos Irmãos (1952) de Armando Vieira Pinto.
Depois de Manuel Guimarães, foi o Novo Cinema, na década de sessenta, que se emancipou no panorama cinematográfico nacional, movimento colectivo em que vários cineastas procuraram reivindicar o papel do cineasta enquanto autor. Esta inquietação quimérica urgia recuperar o cinema português do período de estagnação em que este mergulhara na década de cinquenta, compromisso que resultou na criação de uma imagem do país que rompeu com os preceitos morais, ideológicos e estéticos do cinema feito até então. Na representação dos espaços e das personagens que nele habitam e desenvolvem relações é desconstruída a realidade forjada de acordo com a ideologia salazarista, que até ao período só Manuel Guimarães havia denunciado mais audaciosamente. Em Mudar de Vida (1966), de Paulo Rocha, as imagens da costa litoral provocam no espectador um impacto diferente; estes espaços já não são habitados por personagens de motivações heróicas, fiéis aos códigos de conduta e valores tradicionais, mas, ao invés, por indivíduos errantes, sem esperança no seu futuro.
Mudar de Vida segue a história de Adelino, que regressa à aldeia piscatória onde sempre viveu depois de cumprir serviço militar em África. Ao chegar, encontra a sua noiva casada com outro homem, descoberta que o força a repensar o rumo que deverá dar à sua vida. A frustração e sensação de incompatibilidade perante a comunidade da sua aldeia só será atenuada quando conhece Adelina, mulher cuja mundividência ele se consegue identificar. Ao mesmo tempo, as composições belas, mas lúgubres, da paisagem litoral, parecem avultar o sentimento de alienação identitária e a indiferença dos dois personagens perante a terra natal, sentimento quiçá simbolizado pelo mar que, aos poucos, vai arruinando as casas construídas sobre as dunas. Todavia, no final, quando Albertina mostra a Adelino dinheiro que roubou, e que os poderá ajudar a mudar de vida, a resposta do protagonista é imprevisível: «Dá-me esse dinheiro, não precisamos dele. Ainda temos braços» – levando-nos a questionar se o final não terá sido forçado pelos códigos morais da censura. Posteriormente, A Promessa (1972) de António de Macedo, centra-se, como o próprio título sugere, numa promessa que confrange um casal que vive numa aldeia na praia – um voto de castidade que o filho fez pelo pai, depois de este sobreviver a um naufrágio. Essa proximidade com o mar é materializada por António de Macedo através de composições, que, como em Mudar de Vida, exaltam a beleza da paisagem ao mesmo tempo que são taciturnas – neste filme, uma taciturnidade mística, hermética, até mesmo denunciadora, de um lugar que parece ter sido esquecido, assombrado pela ignomínia e pelo espectro da religião.
Da terra como «fonte de alegria e do alimento dos homens», como chegou a afirmar Salazar nos seus Discursos e Notas Políticas (1943-1950), à «terra maldita», como aponta Labareda em A Promessa, as representações do mar no cinema reflectem o apogeu e o declínio da ideologia salazarista, e também a própria emancipação autoral no panorama cinematográfico nacional, desde as inovações plásticas e formais de Leitão de Barros à reivindicação estética e temática encabeçada pelos autores do Novo Cinema. Desde a sequência alternada entre o resgate de um pescador do mar e uma procissão religiosa no final de Quando o Mar Galgou a Terra, cadeia de imagens que celebram a esperança no porvir, ao momento em que uma mulher é abusada sexualmente por dois homens na praia em A Promessa, enquanto ecoam os lôbregos cânticos litúrgicos e a espuma do mar se condensa no areal, a imagem do mar que nos é legada pelo cinema do Estado Novo reflecte precisamente essa complexidade ideológica e estilística – e é nessa complexidade que o cinema português vem consolidar a importância do mar enquanto símbolo emblemático da identidade nacional.
Referências
Catroga, Fernando (2013) A geografia dos afectos pátrios – As reformas político-administrativas (séc. XIX-XX), Lisboa: Edições Almedina.
Lourenço, Eduardo (2007) O Labirinto da Saudade, Lisboa: Gradiva.
Vieira, Patrícia (2011) Cinema no Estado Novo, Lisboa: Edições Colibri.