Teju Cole problematizou a literatura africana (e não só) na Feira do Livro do Porto

por Lucas Brandão,    12 Setembro, 2017
Teju Cole problematizou a literatura africana (e não só) na Feira do Livro do Porto

O Palácio de Cristal acolhe, até dia 17 de setembro, mais uma edição da Feira do Livro do Porto, que já arrancou no passado dia 1. Como cabeças-de-cartaz, o certame trouxe uma série de exposições, debates, apresentações, encenações, para além das várias e fartas bancadas de livros, segmentadas por editora. Um dos mais aguardados serões era o de hoje, dia 10, que reuniria a jornalista Isabel Lucas e o autor norte-americano Teju Cole, que conta com duas obras lançadas em solo luso – “Cidade Aberta“, e “Todos os Dias São Bons para Roubar“, da Quetzal Editores.

A discussão, denominada “Caminhos da Nova Literatura Africana“, marcou a estreia de Cole em eventos por terras portuguesas, e foi conduzida no auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett. O autor, filho de pais nigerianos, país onde passou parte da sua infância, seguiu a condução efetuada pela jornalista para se dar a conhecer àqueles que menos familiaridade tinham com ele. Quatro locais foram aqueles que marcaram a sua vida, sendo eles Lagos, a capital nigeriana onde viveu parte da sua infância, Nova Iorque, Nova Orleães, e Rio de Janeiro, todos eles ligados à escravatura, e à opressão do indivíduo de etnia negra. Como fragrâncias musicais que o inspiraram, contou com o jazz, com a música clássica, com o hip-hop, e traços da música brasileira – destacou Elis Regina e Maria Bethânia – e africana. O seu ganha-pão, como esperado, não se cinge à literatura, sendo crítico fotográfico no reputado periódico The New York Times, para além de ser, por si só, fotógrafo – nunca aprendeu a conduzir, pelo que se debruça numa série de caminhadas que o impelem à fotografia. Ocasionalmente, também leciona, especializando-se em Arte Africana Moderna, e passando testemunhos da mesma a jovens maioritariamente de classes abastadas, e de etnia branca, apresentando artistas, como a sul-africana Marlene Dumas. Interessa aflorar e apontar que, para o autor, arte é a formatação da vulnerabilidade humana, ao serviço da sua expressão.

Foi, precisamente, na etnia que a sucessão da conversa seguiu. A definição daquilo que é a sua personalidade pouco ou nada teve a ver com a herança da cultura na qual os seus parentes se formaram, mas mais através de várias associações culturais, que lhe permitiram ter um espírito aberto e cosmopolita, à imagem daquilo que é o nosso país. À luz disso, mencionou os nomes de José Saramago e de António Lobo Antunes como referências desse espírito pouco fechado ao ambiente externo. Numa perspetiva geográfica da literatura, destacou os nomes do francês Jean Rabelais e do espanhol Miguel de Cervantes, coevos no século XVI, que modelaram aquilo que seria a gama romanesca europeia. A seu ver, foi uma fase na qual se começou a assistir a uma maior responsabilização por parte dos literatos, que se foram ramificando por todo o mundo, assente na diversidade cultural; e passaram a assumir objetivos de grande porte para as suas obras. A criação de um conceito sólido, próprio e desafiante tornou-se aquilo que, para Teju Cole, foi uma referência para a sociedade contemporânea, já saturada em informação e em exposição; para além de mover e de comover aquele que lê, arriscando e testando os limites da liberdade na qual a criação se operacionaliza.

Quanto à literatura efetuada no continente africano, o norte-americano apontou para as expectativas que, normalmente, se formulam quando se olha para uma obra redigida aqui. Por exemplo, a esperança de ver um contexto familiar numeroso, por ser a norma e a tendência daqueles que pensam sobre os agregados familiares dessa zona. Porém, tudo isto é errado para Teju, que, mais do que as tradições e as categorizações temáticas da literatura, e do que a herança cultural inerente, exortou para as problemáticas sociais e existenciais como dínamo das narrativas. Mesmo assim, desvirtuá-la em relação àquilo que se é não resulta, pois não transmite uma literatura diferenciada e capacitada, entre as várias linhagens culturais e literárias apreendidas. No processo da criação, e mais do que transmitir em pleno aquilo que é a realidade, também se suportou num certo instinto imaginativo, que, não correspondendo àquilo que é a verdade, não deixa de condimentar, da melhor forma, o próprio discurso literário.

A escrita tornou-se global, incluindo aquela escrita a partir de solo africano, e deriva, muita das vezes, da experiência, integrando o êxito da escrita com o sucesso do que se viveu. A globalização também proveio daquilo que são as novas tecnologias de comunicação, capazes de ligar o mundo, e de ajudar a revelar e a aprimorar talentos. Não obstante, pelo menos na Nigéria, ainda não se deu um crescimento abrupto de autores de êxito. Nessa trajetória mundial, surge o inglês como ferramenta universal e capaz de fazer todo o mundo entender-se entre si. Mesmo assim, e apesar das influências que trouxe da Nigéria, Teju considera que a sensibilidade é o vetor que mais decide na literatura, pois é um elemento capaz de acrescentar algo de novo e de valioso no seio da humanidade.

A discussão não se cingiu à literatura, e foi ganhando amplitude para aquilo que é a base onde esta se sustenta. Assim, e sendo esta a sociedade, a problemática surge nos resquícios colonialistas, que ainda perduram no quotidiano, com a literatura a surgir como um método importante para estimular e encorajar as vozes ativas contra esse legado. A herança cultural dos povos indígenas e/ou escravizados, apesar de muito entoada e louvada por alguns, permaneceu como algo que se manteve à distância do reconhecimento de muita gente. Mesmo com a importação do jazz e do hip-hop para a sociedade moderna, para além das referências individuais criadas no desporto e no entretenimento, surgem os rótulos, que conhecem grandes proporções, ainda, em países, como o Quénia ou a África do Sul. Medidas propostas com vista a reforçar a equidade social causa incómodo nos indivíduos de etnia branca desses e de outros países, estes que detêm, por norma, grande parte das maiores empresas e órgãos governamentais dos mesmos.

Disso, os Estados Unidos da América fazem-se exemplo, com o autor a referir a visão inocente com a qual, ainda jovem, regressou a este país, para nele viver. Julgando que o racismo se tinha evadido de vez, foi percebendo que isso não se sucedeu, colmatando naquilo que foi a grande fração de eleitorado que levou à vitória de Donald Trump nas últimas eleições presidenciais do país. Vendo em Barack Obama, apesar do seu carisma e da sua personalidade cativante, alguém que falhou em estabelecer as traves mestras para uma sociedade progressista, e capaz de deixar de pecar em dossiers, como os do terrorismo; expôs o facto de ainda muitos questionarem a etnia e o valor de um indivíduo de raça negra, colocando em dúvida o seu potencial e o seu escopo de ação. A estereotipação efetuada a este leva muitos a cingirem-no a arquétipos, como os de rapper, ou de basquetebolista, mesmo assumindo um papel de referência na cultura de todos aqueles que o associam aos tais arquétipos. Neste prisma, lamentou a ausência de James Baldwin nas bancas nacionais, apontando a sua eloquência e atualidade da sua obra nos dias de hoje, para além de ousar no risco que assumiu na constituição das suas narrativas.

Teju Cole discutiu também o seu não-patriotismo, apontando para as debilidades e intolerâncias daqueles que se asseveram, acerrimamente, norte-americanos. As crónicas que foi formalizando no New York Times até à data, como “A Time For Refusal” – após a eleição de Trump – mostrou claramente a posição social, e abriu o livro de um autor, que, num misto de convicções e de experiências, capturou, com as palavras escritas e as intervenções orais, fotografias suficientemente amplas e compreensivas. Num gracejo, disse “the future will be brown”, no sentido em que os indivíduos de etnia negra tomariam as rédeas de grande parte daquilo que é a superação e a transcendência dos preconceitos existentes. Foi assim que, no auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, e ao lado de Isabel Lucas, Teju Cole quebrou preconceitos, e, com lucidez e sensatez, iluminou o Porto com os seus despertos conceitos.

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