The Smile ao vivo: uma banda em constante movimento
Não é todas as noites que temos o privilégio de ver Thom Yorke e Jonny Greenwood ao vivo. Certamente terá sido isso que atraiu grande parte do público que quase encheu o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para o concerto dos The Smile, projecto paralelo aos grandes Radiohead. A perspectiva de ver dois astros da música (acompanhados da estrela emergente Tom Skinner, baterista dos Sons of Kemet) num contexto diferente dos grandes palcos a que nos habituaram foi aliciante. Se calhar algum do público esperava algum aceno à larga carreira dos Radiohead, mas não é essa a proposta dos Smile. Aliás, nem havia necessidade disso, tendo em conta a qualidade do álbum que ancorou o espectáculo: A Light for Attracting Attention, lançado há dois meses.
A música dos The Smile tem três modos distintos: há canções mais vaporosas, atmosféricas e ocasionalmente baladeiras, outras são mais ásperas e directas, com um pé no punk, enquanto que o mais predominante é caracterizado por um certo nervosismo, tempos irregulares e detalhes que enchem as canções sem as tornar pesadas. Os membros da banda movem-se confortavelmente entre todos estes modos, trocando de instrumentos sem delongas e atirando-se a cada canção com o ímpeto associado a um projecto novo que realmente parece entusiasmá-los.
O concerto inicia-se com o piano fantasmagórico de “Pana-Vision”, que parece retirado da banda sonora de Suspiria, filme para o qual Thom Yorke compôs canções há dois pares de anos. Junte-se o ouvido clínico de Jonny Greenwood para composições cinemáticas e a canção floresce com arranjos orquestrais amplos. De seguida, Tom Skinner tem oportunidade de brilhar demonstrando o controlo sobre o kit com o ritmo matemático de “Thin Thing”. Por trás, discretos mas certeiros painéis de luzes faiscantes acompanhavam a música com uma sensação de movimento e transmutação constantes.
O duo de “Speech Bubbles” e “Free in the Knowledge” não teve o dom de parar a sala, apesar de todas as suas qualidades airosas em disco. Talvez requeressem um ambiente menos extático ou mais tempo de concerto para servirem de bálsamo ao frenesim de outras canções que se seguiram. Ainda assim, a melodia vocal da segunda, a balada mais directa do álbum, foi o momento ideal para Thom Yorke brilhar com os seus lamentos angelicais.
Mais surpreendente foi “Waving a White Flag”, canção cuja urgência por vezes quebra o ritmo de A Light for Attracting Attention, mas que ao vivo ganhou uma força diferente. Os sintetizadores a lembrar Jean-Michel Jarre, Tangerine Dream ou programas educacionais dos anos 80 atribuíram-lhe uma camada extra de mistério, correspondendo às ambições épicas que a canção assume.
A banda trouxe ainda canções não editadas no disco, mas que esperamos poder ouvir numa edição deluxe. “Colours Fly” é uma delas, cuja guitarra desértica parece provir da tradição musical da África Ocidental. O saxofone serpenteante de Robert Stillman, artista que abriu o concerto com uma colagem de música ambiente, e a distorção desorientante tornaram este num dos pontos mais interessantes do espectáculo. Foi um momento de descoberta que remete aos concertos e soundchecks de Radiohead, conhecidos pela estreia de canções não editadas que muitas vezes são lançadas em álbum apenas ao fim de vários anos (“True Love Waits” é uma delas, por exemplo).
Já na recta final, o hit maior “The Smoke” entusiasma o público, pejado de um baixo sensual e funky incaracteristicamente leve e que serve como uma lufada de ar fresco antes do single que nos deu a conhecer a banda, “You Will Never Work in Television Again”. Este é o momento mais abertamente punk, com letras vitriólicas que atiram farpas aos homens poderosos e predatórios. O seu poderio sonoro mantém a excitação do público antes do surpreendente encore.
Já quase sem canções do seu único álbum para tocar (e ainda assim deixaram a maravilhosa “Open the Floodgates” de fora), a banda atira-se a “The Same”, que abre esse projecto. Ao vivo, muniu-se de um crescendo ainda mais impressionante, mas sempre com a espinha dorsal que é o seu ritmo modulado insistentemente não-dançável. Mas há também duas canções novas e até uma versão de “FeelingPulledApartByHorses”, do próprio Thom Yorke, cujo ritmo desconstruído assenta que nem uma luva no alinhamento dos The Smile. Até temos direito a laivos das suas características danças desconjuntadas e libertadoras. Aliás, toda a sua postura ao longo da noite foi de descontracção. Não negamos que foi um prazer vê-lo assim e associar toda uma outra imagem ao mito de génio recluso que havíamos criado nas nossas mentes.
Os The Smile provam que projectos paralelos podem ser tudo menos redundantes ou desinteressantes. A saudade dos Radiohead é agora um pouco menor.