A poesia chilena de Pablo Neruda

por Lucas Brandão,    3 Novembro, 2017
A poesia chilena de Pablo Neruda
Biblioteca do Congresso Nacional do Chile / Wikimedia Commons

Pablo Neruda é um dos poetas mais sobejamente conhecidos da América do Sul. O chileno cultiva uma grandeza inestimável naquilo que é o seu caudal literário. Toda a poesia que redigiu durante os seus 69 anos de vida serviram para que arrecadasse um Prémio Nobel da Literatura (1971), e cativasse, com a sua cálida mística de um amor profundamente sentida, uma multitude de públicos. A sua vida, recheada de peripécias e de causas, não se deixou temer por alguém que procurava o conforto do amor no desconforto de viver tudo intensamente.

Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto nasceu a 12 de julho de 1904, em Parral, na Región del Maule, no Chile. A sua mãe morreu logo no primeiro mês de vida do pequeno, vítima de uma tuberculose, assumindo esse lugar de agente maternal a madrasta, a quem chamaria mamadre. A sua infância decorreu em torno de uma ampla e faustosa gama de elementos e de contextos naturais, na região da cidade de Temuco, que incluía lagos, montanhas, bosques e rios, concedendo-lhe a plataforma desejada para um exponenciar lírico. Com 13 anos, já escrevia, lançando o artigo “Entusiasmo y Preserverancia” no jornal local de Temuco, “La Mañana”. A poesia também pouco tardou em conhecer o público, escrevendo, em 1919, dois anos depois, a coletânea “Crepusculario” (1923). Participando ativamente em vários concursos e atividades literárias, travou conhecimento com a célebre autora Gabriela Mistral.

Aos 17 anos, decidiu criar um pseudónimo, de forma a evitar o desagrado do pai por ter um filho exclusivamente devoto e dedicado à poesia. Surgiu, assim, o nome de Pablo Neruda. As suas origens foram discutidas como relacionadas ao conto de Arthur Conan DoyleA Study in Scarlet” (1887), onde o detetive Sherlock Holmes ouve um concerto de um par de músicos, cuja violonista tinha, como apelido, Neruda. 1921 levou-o a sair da sua zona de crescimento para a capital chilena, Santiago do Chile, onde começou a estudar pedagogia em francês. No entanto, a sua poesia era o que mais se destacava na sua orla de prazeres, levando-o a alguns prémios primaveris, e que levariam à sua participação em revistas, como a “Juventud”.

“Crepusculario”, que chegara às bancas, tornou-se célebre entre as mais altas patentes da literatura nacional, seguindo-se “Veinte Poemas de Amor y una Canción Desesperada” (1924), onde deambula pelas vertentes do amor juvenil e pueril, nas conjunturais naturais, físicas e emocionais. Implícito, sempre esteve um querer catapultar-se, a partir de uma toada modernista, para uma renovação formal e vanguardista, que se viria a consumar em outras obras de menor relevo, incluindo “Anillos” (1926), escrita com o compatriota Tomás Lago. Um ano depois, começaria a sua saga por todo o mundo, a partir do início da sua carreira de diplomacia. Assim, viajaria pelo sudeste asiático, para além de ter vivido em outros países hispanófilos, como Espanha ou Argentina. Conheceria, assim, nomes, como o autor argentino Héctor Eandi, e os escritores espanhóis Rafael Alberti e Federico García Lorca. Perante as crescentes influências surrealistas, empregou-as naquilo que considerou a sua “poesia impura”. Todo o hermetismo e a metafísica a estas associadas levou-o a um livro demarcado dos demais por uma complexidade que não se tornou familiar na sua literatura, resultando em “Residencia en la Terra” (1935).

Entre los labios y la voz, algo se va muriendo.
Algo con alas de pájaro, algo de angustia y de olvido

“Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada” (1924)

Nos anos 30, logo no primeiro ano deste intervalo de tempo, casou-se com a holandesa Maruca Reyes, conforme a cunhava. O casamento alongar-se-ia por, somente, seis anos, provindo a filha Malva, em 1934, que morreria com nove anos, por padecer de hidrocefalia, já após o divórcio formal dos pais, em 1942, um ano depois do sucedido. Em 1935, seria diretor da revista “Caballo Verde para la Poesía”, convidando vários dos amigos com quem havia convivido em Espanha, e que faziam parte da célebre Generación del 27, avessa ao infindável fluxo de correntes artísticas e à associação da poesia à política e à sociedade, incluindo, por exemplo, o malogrado García Lorca. Malogrado, pois faleceria logo no início na Guerra Civil Espanhola, que mobilizou Neruda ao comprometimento com as forças republicanas. Daqui, resultaria a obra “España en el Corazón” (1937), repleta de um idealismo e de um espírito de combate bastante desenvolvidos. Este conflito levá-lo-ia, também, a travar conhecimento com o célebre poeta mexicano Octavio Paz, provindo de um país querido ao chileno, mas com quem estabeleceria algumas crispações ideológicas.

No seu regresso ao Chile, contudo, a sua personalidade literária derivou para a envolvência em preocupações sociopolíticas. 1939 levou-o a ser cônsul especial para a imigração espanhola, na cidade de Paris, pelo próprio presidente chileno Aguirre Cerda. Nesse período, foi responsável pelo projeto Winnipeg, que encaminhou dois mil imigrantes espanhóis de França ao Chile, naquilo que foi o pleno eclodir da Segunda Guerra Mundial. Depois, seguir-se-ia, enfim, o México, onde publicou o laudatório “Canto General” (1950, que seria traduzido para dez idiomas), celebrizando o presente, o passado e o futuro de todo o continente americano, e imbuído de um realismo socialista que o levava a essa glorificação dessa extensão. Neste, destaca-se o famigerado poema “Alturas de Machu Picchu”, retratando os dores e amores daqueles que construíram e habitaram a cidade, através de vários pontos de vista. Ao todo, são 250 poemas, organizados por quinze ciclos literários, que foram redigidos enquanto Neruda vivia na clandestinidade no Chile, perseguido por pertencer aos quadros do Partido Comunista do Chile, oposto à nova orientação governamental empreendida pelo presidente Gabriel Gonzálvez Videla.

Só em 1943 é que voltaria ao seu país, casando-se com a artista argentina Delia de Carril, ou la Hormiguita, num matrimónio declarado ilegal pela justiça do país, por não considerar lícito o seu primeiro divórcio. Dois anos depois, atingiria o pináculo da literatura nacional, ao receber o Premio Nacional de Literatura. O seu interesse político e social pela nação ganharia outro trago nesse ano, tornando-se eleito senador em duas províncias do país, e associando-se ao Partido Comunista, mesmo com a presença dos seus dois grandes rivais, também poetas, Vicente Huidobro e Pablo de Rokha. No ano seguinte, as eleições presidenciais seriam vencidas pela Alianza Democrática, que reconduziriam Videla ao poder, fonte de grande repressão perante os trabalhadores mineiros, sendo contestado por Neruda no Senado. A ilegalidade na qual vivia o autor foi despoletada, precisamente, por esta dissensão, consolidada por uma lei de defesa permanente, que levou à proibição do partido onde estava afiliado. Perante a censura aplicada aos meios de comunicação, publicou artigos no estrangeiro, sensibilizando-o para além de proferir inflamados discursos em pleno Senado.

Acusando o líder governamental de ligações a nazis e às instâncias governamentais norte-americanas de então, para além de oportunismo e de ganância, Neruda exilar-se-ia, após receber uma ordem de detenção contra si. Tudo isto sem antes deixar tudo por escrito no jornal venezuelano “El Nacional”, com um artigo designado “La Crisis Democrática de Chile es una Advertencia Dramática para Nuestro Continente”. Estas mexidas dar-se-iam em 1949, viajando pelo país de forma clandestina até alcançar a Argentina, por onde ficou no início do ano de 1950. Em abril, move-se, de forma incógnita, para Paris, sendo apoiado por amigos, como o pintor espanhol Pablo Picasso. Pela Europa, viaja por inúmeros países, especialmente no lado oriental do Muro de Berlim, que dividia o continente em orlas de influência; para além de se deslocar à própria União Soviética e à Índia. Entretanto, participa nos Congressos do Movimento Mundial de Partidários da Paz, recebendo o Prémio Internacional da Paz em 1950, atribuído pelo seu poema “Que Despierte el Leñador”; e o Prémio Estaline, no ano de 1953, pela consolidação da paz entre os povos que procurou. Após viver em Itália com a sua futura esposa Matilde Urrutia (a quem dedicaria a obra “Cien Sonetos de Amor“, de 1959, dividido nas quatro partes do dia), regressaria ao Chile um ano antes, em 1952, com grande efusividade.

Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde, 
te amo directamente sin problemas ni orgullo: 
así te amo porque no sé amar de otra manera, 

sino así de este modo en que no soy ni eres, 
tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía, 
tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño.

“Cien Sonetos de Amor” (1959)

Liricamente, havia escrito “Las Uvas y El Viento” (1954, onde inclui uma elegia a Estaline), e “Odas Elementares” (1954), sucedendo-se ao anónimo “Los Versos del Capitán” (1952), repleto de simples e temáticas construções poéticas dispostas em categorias do sentimento. Notável, seria também “Estravagario” (1958), numa anti-poesia atípica no repertório de Neruda, marcando uma mudança de rumo da sua escrita. Ainda em 1954, ofereceu uma considerável fatia do seu património à Universidad de Chile, incluindo livros, jornais, discos, e até exemplares de moluscos.

Os anos 60 trouxeram importantes reconhecimentos internacionais, tornando-se doutor Honoris Causa na Universidade de Oxford, em Inglaterra, para além de se tornar membro académico da própria Universidad do Chile. Em 1966, após o falecimento de Maruca, pôde selar matrimónio com Urrutia, numa sessão privada na sua residência na Isla Negra, em território chileno, onde contém as suas coleções de espécies animais. Nomeado, em 1969, membro honorário da Academia Chilena de la Lengua, foi indigitado como pré-candidato à presidência do país, acabando por renunciar em detrimento de Salvador Allende. Após a vitória deste, Neruda voltou a assumir funções de embaixador, agora em França.

A década seguinte traria uma surpresa para o chileno, consagrando-o com o Prémio Nobel da Literatura logo no ano de 1971. Este chegou às suas mãos por todo o trabalho desenvolvido até então, numa poesia que dá vida ao destino e aos sonhos de um continente, através da força elementar dos seus versos. A sua personalidade tornou-se, cada vez mais, notabilizada nos olhares internacionais, sendo homenageado, no final de 1972, no Estadio Nacional, em plena capital do seu país. A saúde não lhe favoreceria no ano seguinte, obrigando-o a recuar na embaixada chilena em França. A realidade social tornar-se-ia ainda mais turbulenta com o golpe militar de 11 de setembro, sincronizado com o degradar do estado de saúde do poeta. Vítima de um cancro da próstata, partiu no dia 19, aos 69 anos. A sua residência seria vandalizada e saqueada por forças associadas ao general Augusto Pinochet, que assumiu o poder de forma ditatorial no seguimento desse golpe. Postumamente, ficou “Confieso que he Vivido” (1974), que compila a espiral de memórias que criou nas suas viagens, para além do que deu de si às causas, como ao resgate de republicanos espanhóis da Guerra Civil, e nas próprias convulsões no processo do exílio. Para além disso, deixou “Libro de las Preguntas” (1974), que enumera uma série de perguntas sobre o mundo e quem o habita, de forma lírica, embora não lhes confira respostas.

Imortalizada fica(ria) a figura de Pablo Neruda para o mundo, celebrizada nos quatro cantos da sua circular descrição. A música, a literatura e o cinema (o filme “Il Postino”, de 1994, adaptado de um romance do chileno Antonio Skármeta) fizeram-lhe honras de reconhecimento, associando-o a um dos maiores literatos sul-americanos de todos os tempos. A memória reveste-se de uma sensibilidade apurada, tanto para a realidade social na qual habitou, como para o mais belo e genuíno da existência humana. Complementado por uma paixão pela natureza e pelos gatos – a quem dedicou uma ode – Pablo Neruda sempre se fez presentar com o amor pelas causas e pelo mundo, dançando ao som dos suspiros dos Andes, que o lançavam de rapina para o mundo. Imortalizada fica(ria), desta feita, um coração revestido e preenchido com o esplendor da América do Sul.

Te amo sin saber como, ni cuando, ni de donde. te amo directamente sin problemas ni orgullo: asi te amo porque no se amar de otra manera, sino asi de este modo en que no soy ni eres…

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