Entrevista. Pilar del Río: “A guerra é um fracasso do senso comum, da racionalidade e do humanismo”

por Ana Monteiro Fernandes,    14 Janeiro, 2023
Entrevista. Pilar del Río: “A guerra é um fracasso do senso comum, da racionalidade e do humanismo”
Pilar Del Río / Fotografia via Fundação José Saramago

“José e Pilar” (2010), de Miguel Gonçalves Mendes, voltou às salas de cinema como forma de celebrar o centenário do Nobel português, José Saramago, em 2022. O autor completou, dia 16 de Novembro do ano passado, cem anos e a Comunidade Cultura e Arte (CCA) entrevistou Pilar del Río sobre a Fundação, José Saramago, feminismo e a predisposição humana para a guerra sem esquecer, claro, como foi a experiência de abrir as portas às câmaras de Miguel Gonçalves Mendes [Trata-se da entrevista que se segue]. O realizador de “José e Pilar” também respondeu às questões colocadas pela CCA sobre a experiência de realização do filme, a sua passagem pelo Brasil, as diferenças cinematográficas entre Portugal e o Brasil e de que forma se poderia impulsionar o documentário e cinema em Portugal. Uma vez que os recursos moneterários escasseiam e a realização é um acto caro, Miguel propôs uma maior sinergia entre o meio e, até, a existência de um departamento para a divulgação e internacionalização do documentário, como uma coopertativa que visasse, até, a partilha de recursos ou material. [Podes ler a entrevista já publicada aqui]

O documentário José e Pilar retrata o momento da ideia de criar a Fundação José Saramago. Após este tempo, a fundação tem conseguido tornar mais próxima a memória de Saramago dos portugueses. Afirma inclusive à agência Lusa que “há mais leitores e carinho por Saramago”. Acha que o fruto deste resultado se deve em muito ao trabalho desenvolvido pela Fundação ou também pelo facto da actualidade ir ao encontro das temáticas da obra do Saramago?

Que a Fundação tenha podido colaborar para que José Saramago continue presente na vida dos portugueses e não só, é uma realidade. Também é verdade que a cultura portuguesa tem mais presença porque a Fundação actua não só em Portugal mas, também, fora de Portugal. O tempo passa, porém, contrariando o avançar do tempo, o esquecimento não leva a melhor. 

O filme chama-se José e Pilar. Logo pelo título depreende-se que vai dar destaque aos dois, Saramago e Pilar. Como encarou esta ideia de se dar a conhecer o lado mais pessoal dos dois? 

O filme José e Pilar não desvenda a intimidade de José Saramago, mas a sua quotidianidade e o processo de escrita de um livro. É verdade que quando estava a escrever a Viagem do Elefante, Saramago esteve doente e, durante algum tempo, internado. Isso, de alguma forma, está reflectido no filme, mas é sobre todo este processo de escrita, como se chega a uma ideia, como se trabalha, como se escreve, como se sofre. 

“José e Pilar”, filme de Miguel Gonçalves Mendes, em Lanzarote

Ao longo do processo de gravação do filme era fácil esquecer-se que a câmara estava lá? E ser-se natural nos momentos, por exemplo, em que os dois estavam em casa, a ter uma conversa entre amigos ou a preparar a agenda? Ou, por outro lado, a câmara acaba sempre por condicionar o comportamento natural da pessoa.

Quando a câmara estava em casa significava, apenas que havia uma série de cabos pelo meio, assim como uma série de instrumentos e pessoas, mas não condicionava a vida de um homem maduro como José Saramago, nem a vida de casa. Ninguém se comportava de forma diferente por estar com uma câmara à frente. A câmara é que tinha de seguir os passos da casa, os passos de quem habitava a casa, e não eram os habitantes do lar que seguiam a câmara, por isso, o filme tem esta veracidade e força.

Numa conversa sobre as presidenciais americanas que o documentário retrata, a Pilar acabou por brincar que o seu feminismo era para compensar a falta de feminismo de algumas/uns. Acha que quando se fala de feminismo, ainda temos uma visão muito eurocêntrica sobre este tema? Precisamos de ouvir outras vozes feministas de outros continentes, por exemplo?

Precisamos de ouvir outras vozes feministas de outros continentes, não somos eurocêntricos na Fundação e não devemos ser eurocêntricos no mundo. Recentemente, na tomada de posse do governo do Brasil viu-se, claramente, não só no discurso de Lula mas, também, em outros discursos, como o feminismo é dizer igualdade entre homens e mulheres, como é referenciar a crítica ao patriarcado que está, permanentemente, presente.

Fundação José Saramago / DR

O último Prémio Saramago foi entregue a Rafael Gallo, escritor do Brasil. Acha que faz falta estabelecer uma maior cooperação, a nível cultural, entre Portugal e os restantes países de língua portuguesa?  Acha que ainda há muito a fazer a esse nível?

Trata-se de um elemento importante para o conhecimento e abordagem das culturas de língua portuguesa. Digo as culturas, não a cultura, mas as culturas que se expressam em português, no entanto, sempre é  bom colaborar e fazer mais. O Prémio Saramago tem esse objectivo, fazer com que os escritores de Angola, de Moçambique, do Brasil, de Cabo Verde e de Portugal se possam sentir unidos.

No documentário mostra o excerto de um discurso da Pilar, que passa na TV, acerca da guerra do Iraque, em que diz, “Não à Guerra”. Saramago também tem esta asserção, “culturalmente, é mais fácil mobilizar os homens para a guerra que para a paz. Ao longo da história, a Humanidade sempre foi levada a considerar a guerra como o meio mais eficaz de resolução de conflitos, e sempre os que governaram se serviram dos breves intervalos de paz para a preparação das guerras futuras. Mas foi sempre em nome da paz que todas as guerras foram declaradas. É sempre para que amanhã vivam pacificamente os filhos que hoje são sacrificados os pais…” Como vê o crescimento da extrema-direita tanto em Portugal como no mundo?

A guerra, também esta guerra que estamos a sofrer, neste momento, na Europa, a guerra da Ucrânia, é um fracasso: é um fracasso da humanidade, é um fracasso do senso comum, é um fracasso da racionalidade e do humanismo. Uma guerra, qualquer guerra, nesta altura, é regressar ao tempo das cavernas, quando os seres humanos não se falavam e resolviam tudo à marretada. É um fracasso, assim o disse José Saramago e assim se interpreta o não à guerra que percorreu várias cidades, ante milhões de pessoas. A Fundação está pelo não à guerra, todas as guerras, não há uma única guerra santa, nenhuma o é e, claro, a guerra vem amparada pela hegemonia e pela progressiva consolidação da extrema direita no mundo, os nazis e fascismo. Não lhes bastou os anos 40, continuam a existir agora. É o sistema? Pois sim, é o sistema. Vai continuar a haver guerra porque precisam de destroçar e destruir para construir logo. É o sistema, é o capitalismo, e não os afecta que morram vários milhões de seres humanos. Não os afecta porque não são eles que vão morrer, estão bem resguardados nos seus palácios ou refúgios enquanto morrem outros seres-humanos.

Esta entrevista teve o contributo de Rui André Soares.

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