A oeste nada de novo
É de um rombo no interior da névoa envolvente à escura noite que me surpreende o cozinheiro, a bater numa panela. Nunca o tinha visto tão afastado da tenda. Oferece algo para comer, o que me vejo forçado a recusar. Não estou bem do estômago há dois ou três dias. Olha para mim com um ar incrédulo, mas só eu sei o que estes dias na linha da frente me têm custado.
Um outro soldado do nosso regimento ri, exageradamente, com um ar demoníaco. Goza com a recusa. Aponta a espingarda para mim.
— Assim não vais lá, rapaz.
O frio húmido quase corta a pele. Mal sinto os pés, que bato com força na gravilha para ativar a circulação. Um dos novatos aparece ao pé de nós, de olhar perdido. Ponho-lhe a mão no ombro e tento acalmá-lo.
— Miúdo, vai devagar. Não tentes ir a todas, é demasiado perigoso.
O ombro força a libertação, porém eu carrego.
— Estás a ouvir?
O barulho é demasiado para que ele ouça e, além disso, parece com pouca vontade de o fazer. Deixo-o ir. Seja o que Deus quiser.
Um cavalo passa a correr, desvairado. Tropeça ao longe e cai sem amparo. Logo se levanta fingindo que nada se passou. Impossível não se ter magoado. Parece anestesiado. O meu camarada continua a rir e a cantar, e atira-se às cavalitas do cozinheiro.
De súbito fico isolado e ao relento, pelo que decido regressar ao centro da ação. Ao chegar, vejo pessoas a arrastarem-se, desfiguradas. Nota-se que estão nisto há dias. Um tipo que parece um índio entrega-me um cantil. Não consigo evitar uma cuspidela.
— Cachaça não é água — diz ele, numa voz rouca.
Estou tão cansado que me limito a seguir o grupo, tenho a vista pesada e o pensamento lento. Pareceu-me ver um tanque ao longe, mas não reajo. O fogo da alvorada ofusca-me a visão. Afasto-me, a custo, preciso de apanhar ar. É o muro de uma casa em ruínas que me ampara quando as entranhas se reviram. Uma voz desconhecida sobressai no murmúrio constante.
— Isso foi forte!
Viro o pescoço e encontro o cavalo de há pouco. Sorrio. Tenho um gosto amargo na boca, mas estou aliviado. Sigo com ele.
Alguém grita “Tiro ao Álvaro!” e eu baixo-me, por instinto, para deixar passar um longo caixão castanho, que dois homens mal-encarados transportam. A base da tumba raspa a minha cabeça, por sorte é de cartão.
Um tipo de óculos, magríssimo, interpela-nos jurando ter acabado de chegar do planeta Renhex, mas não ouço o resto da conversa porque uma mulher pintada de azul agarra-me o uniforme e puxa-me para dançar.
— A cor dessa cidade sou eu — diz-me ao ouvido, momentos antes de desaparecer. Corro atrás dela, mas dou por mim num emaranhado de gente estranha aos saltos e aos gritos: um quadro vivo de Miró num filme de Kusturica. O sol vai alto quando um palhaço qualquer me obriga a beber cerveja de uma assentada. Agora não me nego a nada.
Ao sol do meio da tarde, jaz no chão o meu camarada, de farda desfeita e espingarda de plástico junto ao peito, inerte, quando termino o almoço. O cozinheiro passa por mim, em passo apressado, acho que nem me vê.
Sob um calor invernal despropositado, dirijo-me até casa, a pé, com uma peruca encarnada que alguém trocou pelo meu capacete.
Caiu na cama em Fevereiro de 2018, nesse dia em que a cidade estava tão intranquila que o jornal se limitou a assinalar nada haver de novo a Oeste.
Caiu com a cabeça para diante, estendido no colchão, e adormeceu de imediato. A cara estava uma lástima, porém exprimia uma espécie de contentamento por ter sobrevivido à quinta noite do Carnaval de Alcobaça.