Hoje é dia de relembrar “Animals”, dos Pink Floyd

por José Malta,    23 Janeiro, 2018
Hoje é dia de relembrar “Animals”, dos Pink Floyd
Capa do disco “Animals”, dos Pink Floyd

Na música, a década de 70 do século XX foi fortemente marcada pelo domínio de uma série de bandas que reinventaram o rock tornando-o progressivo, um estilo baseado no rock psicadélico mas algo mais sinfónico, tornando-se em alguns casos próximo de uma ópera (a chamada ópera rock). Se há banda que dominou por completo esta década, não só no modo como reinventou o rock mas também como atingiu um sucesso estrondoso que lhes valeu um reconhecimento universal e certamente eterno, são os Pink Floyd.

Depois de uma busca árdua pelo sucesso que apenas fora atingido com o seu oitavo álbum em 1973, Dark Side of The Moon, e que vendeu 45 milhões de cópias, sendo considerado por muitos o melhor álbum rock de todos os tempos, e em 1975 com o seu nono álbum, Wish You Were Here, uma espécie de homenagem depois do sucesso a Syd Barrett, fundador da banda que fora afastado em 1968 devido a problemas com o LSD e que desde aí se tornara quase que um líder espiritual, era altura de continuar o trabalho desenvolvido de forma a prolongar o sucesso. O décimo álbum dos Pink Floyd não teria um nome tão poético e sublime como os anteriores e o título seria apenas e só uma palavra. Animals, seria assim o nome do álbum lançado a 23 de Janeiro de 1977 sob uma liderança cada vez mais notória por parte do baixista e também vocalista Roger Waters. Após dois trabalhos de sucesso, bastante cooperativos, e músicas onde os solos extraordinários e a voz de David Gilmour bem como as teclas e voz de Richard Wright e a percussão e bateria de Nick Mason eram essenciais, a hegemonia de Roger Waters sob os Pink Floyd era cada vez mais evidente. Isso foi demonstrado não só neste álbum, mas também no álbum seguinte, The Wall, uma ópera rock de dois discos lançada em 1979 que teria um impacto tão grande que valeria um filme baseado no conteúdo do próprio álbum e tours extremamente produtivas e rentáveis.

Animals é inspirado na famosa obra de George Orwell Animal Farm (O triunfo dos porcos) e tal como o álbum anterior, Wish You Were Here, é apenas composto por cinco faixas embora algumas de grande duração: “Pigs on The Wing (Part One)”, “Dogs”, “Pigs (The Three Different Ones)”, “Sheep”, “Pigs on The Wing (Part Two)”. A obra de George Orwell escrita em 1945, que é uma crítica ao modo como Estaline liderava a União Soviética e ao próprio Estalinismo, retrata uma quinta onde os animais expulsam o ser humano e gerem a sua quinta por si sós, impondo uma série de princípios quase utópicos. Os porcos, animais descritos como os mais inteligentes, lideram a quinta e existe uma alusão de cada personagem/animal a uma identidade real do contexto retratado. O porco que acaba por liderar a quinta, Napoleon, representa Estaline, líder da União Soviética; Snowball, o porco expulso da quinta devido aos seus ideais antagónicos a Napoleon, representa Leon Trotsky, o adversário de Estaline na disputa pela liderança da União Soviética após a morte de Lenine e que após a derrota exilou-se no México; Mr. Jones, o dono da quinta, expulso pelos animais, representa o Czar Nicolau II que abdicou durante a revolução bolchevique em 1917; os cães representam a polícia política da União Soviética; as ovelhas, que repetem tudo aquilo que lhes dizem, representam o povo dominado pela propaganda, e por aí adiante. Acontece que em 1977 a União Soviética, já sem Estaline, ainda existia mas outras transformações e consequências chamavam mais a atenção no mundo ocidental. Na Grã-Bretanha, durante meados dos anos 70, os acontecimentos inspirariam Roger Waters em adaptar este livro à época, à semelhança do que Aldoux Huxley fez com Brave New World tendo publicado 26 anos depois Brave New World Revisited. Só que George Orwell não teve tempo de o fazer pois falecera em 1950 vítima de tuberculose, mas Roger Waters estaria apto para adaptar a obra ao momento actual através de um álbum de rock progressivo bastante cativante e acima de tudo crítico e pertinente. As analogias a cada animal diferenciavam-se mas estes seriam os mesmos, embora relacionados com diferentes elementos e seres humanos na sociedade. O desemprego, o maior foco na industrialização, os contrastes sociais bem como o surgimento de ideais neoliberais que viriam a ter uma enorme influência no mundo durante os anos seguintes, inspiraram Roger Waters na adaptação desta obra ao contexto da época. Outro factor importante que inspirou o músico foi também o aparecimento, devido essencialmente a questões de cariz social, dos movimentos punk que teriam como principal alvo abater o rock até à altura desenvolvido (desde o rock n’ roll até ao então rock progressivo) impingindo o Punk Rock que, mais do que um movimento musical, seria um movimento cultural. Daí que o rock, que até à altura se teria desenvolvido a partir das suas raízes originais, tivesse sentido necessidade de se defender em relação a um movimento que parecia ter necessidade de acabar com este. Os Pink Floyd souberam defender-se, e bem, com Animals, que apesar de não ter tido um sucesso tão grande como os álbuns anteriores, teve um impacto notório e um nível de vendas bastante considerável.

Sendo todas as letras do álbum escritas por Roger Waters, embora “Dogs” com a ajuda do companheiro David Gilmour, a ideia logo na primeira canção de meter porcos a voar fez com que o porco se tornasse um símbolo dos próprios Pink Floyd, sendo lançado em muitos dos seus concertos (e em grande parte dos concertos de Roger Waters após a sua saída em 1984) um porco gigante, por norma insuflável, de modo a sobrevoar sobre os espectadores provocando a histeria total. Sendo os porcos o principal animal do livro e a capa do álbum consistir num porco a sobrevoar a Battersea Power Station em Londres, o toque dos Pink Floyd foi importantíssimo para mistificar uma espécie de suínos que nos é bastante familiar: o porco. A primeira e última faixas do álbum, “Pigs On The Wing”, são canções em forma de balada dedicadas a Carolyn, mulher de Roger Waters na altura. A ideia de colocar os porcos a voar (que é romântica por si só) surge associada à expressão popular que remete para uma hipótese improvável: “Isso só quando as galinhas tiverem dentes e os porcos tiverem asas”, o que torna esta noção, no que toca aos porcos, bem verdadeira.

Segue-se então “Dogs”, segunda faixa com uns esplendorosos 17 minutos em que o ritmo de balada se mistura instantaneamente com o rock progressivo. A música é inspirada no cão enquanto animal e no modo como determinada classe de seres humanos se poderia associar aos cães, à semelhança da metáfora de George Orwell no seu livro. Porém, os cães de George Orwell não serão iguais aos cães de Roger Waters, pelo menos na analogia. Estes cães assemelhavam-se a homens de negócios obcecados pelo dinheiro, que eram vistos como sabujos e que ganhavam terreno na sociedade dos anos 70. Isto é notório logo no primeiro verso da canção: “You got to be crazy, gotta have a real need”, e em outros tantos ao longo da música, como: “And when you lose control you’ll reap the harvest you have sown. Sendo o Homem comparado ao cão, animal condicionado pelo próprio ser humano, significa que este se deixa condicionar por si só, arrastado por algo mais forte como a música evidencia: “Dragged down by the stone”. Existem fortes frases dentro da música que envolve uma sinfonia progressiva deslumbrante onde todos os instrumentos são facilmente identificados.

Se são os porcos que começam e acabam o álbum, estes têm que também estar presentes no meio. Daí que a terceira faixa seja “Pigs (The Three Different Ones)”, onde uma série de grunhidos acompanham a música e cuja letra se inicia logo com uma frase que remete para o final de Animal Farm, onde o porco e o ser humano são impossíveis de se distinguirem um do outro: “Big man, pig man/ Ha ha charade you are”. Não remetida para aqueles que dominavam a União Soviética, mas sim para outro tipo de políticos que surgiram no mundo ocidental entretanto. A música faz alusão a Mary Whitehouse, uma política conservadora dos anos 70 na Grã-Bretanha especialista na propaganda cristã e acusada de vários actos de manipulação e censura políticas e também à própria Casa Branca dos Estados Unidos, nomeadamente ao presidente Gerald Ford (embora Roger Waters tenha desmentido tal analogia com este último numa entrevista anos mais tarde). A música contém versos com críticas muito descaradas à política inglesa e que podem ter diferentes interpretações: “Hey you, White House/ Ha, ha, charade you are (…) “Mary you’re nearly a treat/  Mary you’re nearly a treat/ But you’re really a cry”, pois, tal como na obra de Orwell, os porcos são análogos à classe política. As novas políticas e os métodos de propaganda assentariam que nem uma luva em Animal Farm, muitos seriam aqueles que facilmente entrariam no sistema de maneira quase cega com escassa informação, tal como outro animal também presente na obra.

Como tal surgem as ovelhas, “Sheep”, seres que na fábula de Orwell repetem o que lhes é dito constantemente, nomeadamente, e de uma maneira simplificada, que o ser humano é um animal a evitar e que tudo o que não tenha duas pernas é confiável “Four legs good, two legs bad”. Em Animals representam aqueles que seguem cegamente um líder, dominados pela propaganda repetitiva que viria a prevalecer no final dos anos 70. O balir das ovelhas acompanha esta canção que se assemelha a um rebanho a andar a grande velocidade devido ao ritmo da música. O rebanho, que muitas vezes é associado figurativamente a uma religião onde os fiéis são as ovelhas que seguem aquele que é o seu pastor, a principal figura da sua religião (embora esta analogia esteja mais relacionada com o Cristianismo), está presente também no meio da música com a citação bíblica do “Salmo 23” enunciada por meio de uma voz transfigurada (nos concertos essa voz é feita pelo baterista Nick Mason) e com algumas alterações satíricas. Tal como “Pigs (The Three Different Ones)”, a canção ultrapassa os 10 minutos de duração, em que a qualidade se consegue sobrepor à quantidade.

Hoje, 41 anos depois de Animals dos Pink Floyd e mais de 70 de Animal Farm de George Orwell, a quinta mantém-se com os mesmos animais mas com diferentes seres humanos a representá-la. Embora a obra tenha tido uma crítica dirigida a uma política específica, a analogia pode ser feita a outras políticas e políticos. Os cães podem ser outros mas continuam à caça, as ovelhas podem ser outras mas continuam a seguir sem pensar aquilo que os slogans e os media dizem, e os porcos podem ser outros… mas continuam a triunfar. Tal animal simpático e até ilustre na nossa gastronomia pelos melhores motivos, não merecia esta cruel comparação. Ainda assim seria bom terminar uma crónica sobre este álbum que hoje celebra 41 anos com uma das últimas performances de “Pigs (The Three Different Ones)”. Durante Setembro e Outubro de 2016, Roger Waters actuou no México onde fez questão de dedicar a canção àquela que é a figura política do momento, com imagens a acompanham a música e frases que surgem durante o solo final, terminando com uma evidente conclusão.

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