Os sonetos humanos de Petrarca
Petrarca é uma das principais influências da escrita latim, muito por via de ter sido dos primeiros literatos a redigir neste idioma. Vivendo no século XIV, cresceu nos primeiros passos do Renascimento, e seria motivado pela descoberta das cartas do romano Cícero, sobre as quais trabalhou e legou para as gerações futuras. Desse trabalho, é-lhe cunhado o nascimento do humanismo literário, e a fundação dos sonetos poéticos. Partindo da “Idade Negra”, conforme chamava à Idade Média, emancipou-se entre a delicadeza e a gentileza de préstimos memoriais dos tempos antigos.
Petraca nasceu na cidade de Arezzo, região na Toscânia italiana, com o nome de Francesco Petrarcco. O futuro autor cresceu na zona de Florença, antes de se mover para o Avinhão, acompanhando a migração do Papa Clemente V. Foi no centro europeu que viria a estudar Direito, na Universidade de Montpellier e na de Bolonha, embora o interesse pela literatura latina e pela escrita permanecessem despertos. O desencanto pelo que havia estudado até então foi motivado pela manipulação legal pela qual os guardiões da propriedade que iria herdar, em Florença, a reivindicaram.
Entre os seus amigos, encontrava-se o célebre autor Boccaccio, para quem escrevia com regularidade. Após a morte dos pais, voltou a viver em Avinhão, região francesa, onde trabalharia em vários escritórios clericais, e onde obteria o tempo para redigir o seu primeiro livro, uma epopeia em latim sobre o general romano Cipião Africano. “Africa” tece um elogio a este e ao seu exército, que triunfou na Segunda Guerra Púnica, perante a invasão do cartaginense Aníbal ao território romano. Com a obra, tornou-se um dos notáveis europeus daquele tempo, sendo laureado poeta e coroado senador em Roma. Perante estas honras, não se manteve fixo no seu país, viajando pelo continente e escalando o Mont Ventoux, nos Alpes franceses. Neste período, foi encontrando manuscritos em Latim, que o ajudaram a desvendar conhecimento advindo de autores gregos e romanos, com traduções de Homero e uma coleção de cartas de Cícero, a “Epistulae ad Atticum”.
Foi perante a sensação de ignorância que sentia da parte dos seus contemporâneos, em plena Idade Média, que classificou esta como a Idade Negra. Não obstante, foi também no catolicismo que sustentou aquilo que fazia, inspirando-se, por exemplo, na escalada que fez no Mont Ventoux, que efetivou por prazer, mas sem deixar de gratificar aqueles que o impulsionaram. As vistas que perspetivou do seu alto levaram-no a que a leitura de “Confissões”, de Santo Agostinho, obra que levou consigo, o fizesse sentir como se de uma alegoria a aspirar a uma melhor vida se tratasse. O sentido do seu renascimento completa-se na descida, no regresso para o vale da alma, como ele próprio a caraterizou, vindo do auge da contemplação humana.
Esta deambulação entre o tradicional e o moderno perseveraram na sua escrita, que prosseguiu com base no norte de Itália, como um académico e um diplomata, sediado no hemisfério eclesiástico. Em 1361, tornou-se cânone numa vila nas redondezas de Pádua, mas passou a viver em Veneza, por força da peste negra, ao lado da família da sua filha, Francesca, após a morte da sua amada, a francesa Laura, a grande paixão da vida do poeta, embora frustrada. Após algum tempo em viagem, regressou a Pádua, onde até 1374, ano em que partiria, se manteve em contemplação religiosa. O testamento de Petrarca cedia os pertences mais pessoais aos seus familiares e amigos, e os manuscritos sobre os quais trabalhou durante a sua vida a bibliotecas de Pádua e de Veneza.
Os anjos eleitos e as bem-aventuradas almas
cidadãs do céu. no primeiro dia
do passamento da senhora, a rodearam.
cheios de afeto e de admiração“Que luz é esta e que beleza nova”?
diziam-se mutuamente; “alma assim fulgente
do mundo incerto a estas paragens
jamais chegou aqui todo este tempoEla, contente por ter mudado de habitação
iguala-se, pois. aos mais perfeitos seres;
mas… instante a instante ela se volta,Olhando se a sigo e parece isto esperar:
e eu, anseios e pensamentos todos, ergo aos céus;
porque a ouço pedir que me apresse.
Naquilo que foi o trabalho literário de Petrarca, a obra mais sonante é a sua coleção de poesia “Canzoniere”, um agrupamento de mais de trezentos poemas em italiano vernacular, resultado das influências do latim, escritos durante quarenta anos, dentro dos quais a maioria em forma de sonetos. A organização do livro dispõe duas partes, em que a primeira concerne à vida da sua companheira Laura, e a segunda o pós-morte desta. Para além também da antologia “Trionfi”, Petrarca prosseguiu a sua redação, nomeadamente em Latim, no que toca a ensaios, cartas, poesia e demais trabalhos académicos. Dentro destes, destacam-se “Secretum Meum”, em que se perspetiva perante Santo Agostinho, discutindo com ele o conceito de fé e de devoção divina, num diálogo muito pessoalizado; “De Viris Illustribus”, uma coleção por terminar de biografias de figuras emblemáticas da Grécia e da Roma Antigas, para além de personagens da bíblia e da mitologia; “De Vita Solitaria”, em que defende uma vida de contemplação e de solitude; “De Remediis Utriusque Fortunae”, um grupo de diálogos em latim sobre o gosto, o intelecto, o discurso e o estilo, envolvidos numa argumentação com humor e sapiência; e a tradução dos sete salmos confessionais “Penitential Psalms”.
Para lá deste manancial, também publicou vários volumes de correspondência, ligando-se a já quem havia partido, como os autores Virgílio e Séneca. Estes núcleos epistolares foram reunidos em duas obras, denominadas “Epistolae Familiares” e “Seniles”, inspiradas pelas cartas de Cícero. Os recetores dessa correspondência não foram revelados, embora fossem cúmplices com quem sumarizava a sua filosofia de vida. Na base desta inspiração, esteve Laura, que conheceu numa igreja do Avinhão, que o rejeitou por já se encontrar ligada matrimonialmente. Esse caudal lírico permaneceu num tom mais exclamatório, e que subsistiu perante as tentações carnais que sempre deteve. Ainda assim, num tom de idealização e de perfeição das suas formas físicas e passionais, imbuiu-se de tom trovadoresco, das típicas cantigas de amor e de amigo, reforçando a saudade e a dor que detinha pela sua ausência, e divinizando a sua figura. Os conflitos internos perpetuaram-se nesta impossibilidade de alcance, por mais que se afincasse na busca do amor, e que prolongaram os paradoxos dos seus sentimentos.
Foi nestes termos dialéticos que Petrarca se foi batendo por toda a sua poesia, lutando consigo mesmo perante as ambivalências da sensualidade e do misticismo, do sagrado e do profano, em que a moralidade religiosa tentava perseverar. Com os sonetos herdados do poeta Giacomo da Lentini, com as quadras com rimas interpoladas e cruzadas e os tercetos a contar com a mesma, para além de utilizar o encavalgamento entre unidades semânticas, de um verso para o outro. Isto foi o percurso métrico daquele que foi um dos primeiros humanistas, e aquele que enunciou a dádiva, por parte de Deus, do intelecto e da criatividade aos seres humanos, para estes os potenciarem ao máximo. Para além disso, e reivindicando o estudo ético e moral da Antiguidade Clássica, muniu o pensamento humano e a ação de um renascimento destes preceitos, que não entravam em conflito com a crença católica do poeta.
Dos sonetos de Petrarca, movimentaram-se forças adormecidas do sentimento e do pensamento humano, do alto dos seus conflitos e diálogos, consigo mesmo, com outros da sua estima e até com os que já tinham partido. O seu legado chegaria aos célebres nomes de Luís de Camões ou de William Shakespeare, potenciadores máximos do soneto poético, assim como a compositores musicais. Entre a religião e a moral, não se coibiu de advogar a honra maior do caráter humano, na sua independência criativa, como ator dos heroísmos que retratava para trás da sua geração. Em suma, Petrarca deu significado e lirismo, através das suas dores e dos seus esplendores, a uma lufada de versos e estrofes, que se viu ser poema na genuína absorção de um sentido lema.
Se amor não é qual é este sentimento?
Mas se é amor, por Deus, que coisa é a tal?
Se boa por que tem ação mortal?
Se má por que é tão doce o seu tormento?Se eu ardo por querer por que o lamento
Se sem querer o lamentar que val?
Ó viva morte, ó deleitoso mal,
Tanto podes sem meu consentimento.E se eu consinto sem razão pranteio.
A tão contrário vento em frágil barca,
Eu vou para o alto mar e sem governo.É tão grave de error, de ciência é parca
Que eu mesmo não sei bem o que anseio
E tremo em pleno estio e ardo no inverno.