“Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, de Chantal Akerman: um manifesto feminista
Este artigo pode conter spoilers.
Aos 15, após ver Pedro, o Louco (1965), de Jean-Luc Godard, Chantal Akerman decidiu tornar-se realizadora e em 1975, com apenas 25 anos de idade, revolucionou o cinema avant-garde com o filme Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles. Em 2022, esta obra tornou-se líder no pódio da Sight and Sound na lista dos “Melhores Filmes de Sempre”, apurada de dez em dez anos por críticos, curadores, programadores e académicos, ultrapassando o clássico Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock.
Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, que ficará disponível na plataforma de streaming Filmin a 8 de Março, é um retrato social tirado com sensibilidade, coragem e sentido crítico.
O filme acompanha três dias na vida de Jeanne Dielman (Delphine Seyrig), uma viúva, bem-parecida, que mora com o seu filho e se prostitui quando este se encontra na escola durante o dia. No seu apartamento, localizado no Quai du Commerce, Jeanne leva a sua vida numa procura quase patológica por controlo. A rotina adensa-se nos pequenos gestos das tarefas domésticas que se repetem no seu quotidiano. Fazer a cama, lavar os pratos, arrumar a casa, fazer compras, preparar as refeições, lavar o corpo, comer, dormir. No dia seguinte, despedir-se do seu filho, fazer babysitting durante breves horas, mais um encontro com um homem desconhecido que termina ao cair da penumbra sobre o pequeno apartamento. Depois, colocar no bule, perfeitamente alinhado ao centro da mesa da cozinha, o pagamento.
No seu filme de estreia, Hotel Monterey (1972), Akerman absorve o espectador através de uma atmosfera visual hipnotizante, na qual uma serenidade inquieta — quase em jeito de Edward Hopper — ocupa a tela. Em Jeanne Dielman, a realizadora reproduz parte dessa atmosfera, mas desta vez, serve-se do tempo para oprimir e subjugar o espectador à inevitabilidade de uma sociedade patriarcal. O interminável ritual mesquinho das tarefas domésticas compõe a ordem do dia, o que torna o clímax do filme uma reviravolta impetuosa, um movimento radical, um ato de amor próprio, de libertação para com a sua própria vida e, em última análise, de empoderamento. O ritmo da montagem destila, até à última gota, a monotonia presente na ação das personagens e arrasta-nos pelo marasmo do quotidiano numa assombrosa e exaustiva demanda por controlo e significado.
É inevitável, ao olhar para a forma do filme no seu enquadramento social, constatar que Jeanne Dielman é o cruzamento arquétipo do realismo com o avant-garde. O filme atua em larga escala ao aproximar-se do espectador pela sua especificidade e trivialidade quotidiana, o seu objetivo central é comunicar, de forma universal, uma certa individualidade e despertar, em cada um, algo maior que a própria consciência, uma ressonância emocional revigorante. Através desta aproximação, do macro ao micro, Akerman forja uma crítica através experiência cinematográfica, que transparece tanto o carácter arrojado e impiedoso do cinema de Godard, como o traço bruto e crítico do realismo de Vertov.
Se por um lado o propósito do filme é revelar em celuloide tudo aquilo que o male gaze não alcança, por outro é também a sua tenção captar toda a essência da natureza feminina e a violência do pensamento, duas noções invisíveis no cinema mainstream. Os takes intermináveis parecem convocar a ideia de que, perante a insensibilidade do imaginário masculino, a ideia de “mulher na sociedade” não existe a não ser enquanto objeto de desejo, no estatuto de consumidora/cliente ou no papel de mãe/cuidadora. Também no cinema comercial, a mulher tem sido representada como um adereço ao heroísmo masculino. A representação de Jeanne e o estudo desta personagem — que é simultaneamente a provedora do seu lar, quem cozinha, cuida do filho e se prostitui — formulam um ensaio sobre classe social e papéis de género tão indispensável quanto as obras de Beauvoir ou bell Hooks. Jeanne Dielman é, da produção à execução, um manifesto feminista em película.
Em conjunto com a diretora de fotografia Babette Mangolte e a montadora Patricia Cani, Akerman transpõe para o ecrã/tela um permanente e calado estado de inquietação em cerca de três horas de puro cinema. Para isto, a realizadora não apresenta uma figura feminina forte, a idolatrar, ou uma supermulher destemida, implacável e emancipada. Em vez disso, Akerman propõe, através da forma experimental, uma alegoria ao sentido da mulher na sociedade em que vivia. Dielman coloca arte no mínimo que faz, do mais ínfimo gesto ao cozinhar às cartas que escreve para a sua irmã e é nesse gesto, tão modesto quanto virtuoso, que encontramos a personagem e, em consequência, a realizadora, uma mulher que tenta prevalecer e vingar num mundo submetido à condição masculina. Jeanne Dielman é esse ato de libertação, um testemunho que declara uma mudança de paradigma e o ciclo, que até então parecia interminável, pode, finalmente, reinventar-se.
A influência do cinema de Akerman é palpável no trabalho de grandes cineastas contemporâneo, seja no olhar íntimo e demorado ao retrato social no Roma (2018) de Alfonso Cuarón ou na voracidade do espírito reivindicativo de Céline Sciamma em Retrato de uma Rapariga em Chamas (2019), que ocupa o lugar 30 da Sight and Sound, e foi igualmente realizado, captado e montado por mulheres.
A obra de Akerman, marcada pela coragem, prima, igualmente, pelo seu rigor e singularidade técnica. A realizadora, adepta da paisagem urbana, utilizava o rigor geométrico da cidade para enquadrar as suas histórias, as linhas-guia de pontes e escadarias conduziam sempre ao mesmo ponto de fuga: as suas personagens. Já a montagem, nem sempre acompanha as figuras humanas, pois os planos perduram mesmo após estas saírem de cena, quase como se os seus pensamentos ainda ecoassem pelas paredes ou ruas. A movimentação de câmara é escassa ou inexistente, quando acontece, nunca é em plano subjetivo, handheld ou através de steadycam, mas antes em travellings à boleia de um Dolly, precisos e morosos. Na duração infinita dos seus planos está a consequência de viver, o inevitável aborrecimento que nos é atribuído à nascença e com o qual parecemos já não saber conviver. Jeanne Dielman é o extremo exemplo do uso do tempo, uma autêntica arma nas mãos de Akerman, cujo silêncio é a pólvora e o gatilho da montagem. Disparado o corte, surge o alívio da monotonia e a agonia de uma nova sequência, tão ou mais provocante que a anterior. Uma nova cena, um novo silêncio, uma nova inércia. De tão incisiva, a rutura temporal de Jeanne Dielman parece ter sido atingida, inclusivamente, pelo célebre Cléo das 5 às 7 (1962), de Agnès Varda, (ocupa a 14.ª posição na sobredita lista da Sight and Sound) e contagiada pela tão ilustre Belle de Jour (1967), do mítico Luis Buñuel.
O silêncio é, igualmente, um elemento bastante importante no cinema de Akerman que vale a pena destacar. Ao invés de diálogos, a realizadora utiliza gestos da rotina para comunicar o que as personagens têm a dizer, desta forma, as falas são utilizadas para expor e não tanto para expressar, pois as suas intenções e sentimentos são manifestados através das entrelinhas da ação. Jeanne Dielman é, também, uma carta de amor à mãe da realizadora, que, segundo a mesma, era uma figura em permanente silêncio, os seus gestos perduram, agora, entre os planos demorados do filme.
Jeanne Dielman consiste, reutilizando as palavras de Andrei Tarkovski, num “mosaico feito de tempo” cujo painel é composto por silêncios, demoras e repetições para conjugar a busca pelo controlo nas minúcias da rotina. A protagonista deseja, mais do que tudo, esse controlo e, ao obtê-lo, o filme acaba.
Na lista da Sight and Sound, entre os melhores filmes de sempre encontram-se, ainda, títulos como Vertigo, Citizen Kane, Tokyo Story, In the Mood for Love e 2001: Odisseia no Espaço. A subida de Jeanne Dielman ao topo é de enorme relevância não só para o cinema de vanguarda feminista, como para toda a sétima-arte e talvez surja para reafirmar uma nova mudança de paradigma.