Entrevista. Maria do Rosário e Aldina Duarte: “O Fado não vive sem poesia”

por Magda Cruz,    21 Março, 2023
Entrevista. Maria do Rosário e Aldina Duarte: “O Fado não vive sem poesia”
A editora, poeta e escritora Maria do Rosário Pedreira (esquerda) e a fadista Aldina Duarte (Foto: Magda Cruz)

Maria do Rosário e Aldina Duarte estão unidas pelo fado. Trabalham juntas há mais de uma década. Maria do Rosário escreve a letra e Aldina interpreta o fado. Neste episódio do podcast “Ponto Final, Parágrafo”, conhecemos melhor o casamento entre poesia e fado, lembramos o disco “Romance(s)”, em que ambas trabalharam, e falamos do livro que assinam juntas: “Esse Fado Vaidoso”, publicado pela Quetzal. As autoras revelam que pode vir a ser publicado um segundo volume desta coletânea de poemas. Como é hábito, há a sugestão de um trio de livros — e neste caso, a dobrar, uns da poeta, escritora e editora, outros da fadista. Neste dia mundial da poesia, conhecemos a ligação destas artes: “O fado é uma canção que não vive sem letra”, dizem nesta entrevista.

Magda Cruz: O que distingue a poesia e o fado?

Maria do Rosário Pedreira: Para mim, que não sou uma especialista do Fado — talvez seja mais uma especialista da poesia — o Fado não vive sem poesia. Temos é vários tipos de poesia. Penso que é uma canção que não vive sem a letra, as palavras. Portanto, diria que esse casamento é feliz e obrigatório. Embora nós, muitas vezes, em espetáculos de Fado, vejamos entre exibições dos intérpretes instrumentais belíssimos e ultra bem interpretados por guitarristas e outros instrumentos, penso que o Fado é uma canção que não vive sem letra. É deste casamento que nasce esta canção. Agora, o que tem de se lhe dar é uma interpretação muito própria… porque um cantor até podia cantar com determinada melodia e determinada letra e não ser capaz de fazer disso um fado. Penso que o intérprete é aquele que lhe dá o ritmo, o cunho, do fado.

MC: E a Maria do Rosário escreve cada letra para cada intérprete. Por exemplo, um fado só para a Aldina interpretar.

MRP: Sim, porque as pessoas são todas diferentes: têm reportórios diferentes, idades diferentes, umas são homens, umas são mulheres. Portanto, aprendi logo com a primeira letra que fiz, que foi chumbada e que foi pelo Carlos do Carmo, que disse “Ah, não posso cantar isto que se vê logo que é de uma mulher” (risos), que eu percebi que nos temos de adequar a quem vai cantar a música. Não só tem de soar verdadeiro quando é fado, como, enquanto nós, num livro, temos muito tempo para ler e reler o mesmo texto — com idades diferentes, em tempos diferentes, com disposições diferentes — o que acontece com qualquer canção é que tem de ser entendida enquanto está a ser cantada e ouvida. Se não for entendida pelo ouvinte é porque alguma coisa falhou. Tenho sempre de pensar que ela tem de resultar naquela voz, naquela pessoa, com aquela idade, com aquela vivência…E, por isso, até prefiro escrever para pessoas que conheço porque consigo adequar também as palavras àquilo que sei sobre aquelas pessoas.

MC: Aldina, desde cedo que os poetas compreenderam como se escreve para Fado. Lendo o vosso livro, “Esse Fado Vaidoso”, percebemos que Amália canta Alexandre O’ Neill, Almada Negreiros, David Mourão Ferreira. Carlos do Carmo canta Almeida Garrett, Antero de Quental, Bocage. Houve sempre uma sinergia…

Aldina Duarte: Usando esses exemplos, há duas coisas muito importantes a distinguir que são: o Alexandre O’ Neill n’ A Gaivota, por exemplo, é um poema que está feito para uma melodia que não é a do Fado tradicional. E isso muda completamente a linguagem a toda a técnica de letras para Fado. É igual a uma canção. Nesse tema do Carlos do Carmo gravou do Almeida Garrett, que é o “Era assim”, no Fado Cravo, já é outra história. É um fado de sextilhas. (…) A escrita e a linguagem mudam. Acho isso porque uma coisa é haver um espartilho e outra é não haver. (…) São dois desafios diferentes, enriquecedores…ainda que neste livro, há poetas que só estão porque fizeram uma letra para um fado porque houve quem compusesse para elas. Essas regras mudam completamente a linguagem. A musicalidade obriga a isso. Isso agrada-me muito. (…) Se fosse compositora também achava piada a compor para todas as formas possíveis poéticas.

MC: É como um escritor escrever para vários géneros.

MRP: Exatamente. E há outra coisa diferente no nosso livro, “Esse Fado Vaidoso”, que é: há pessoas que claramente escreveram… poetas como o David Mourão-Ferreira, Teresa Rita Lopes, até a Agustina [Bessa-Luís], romancista que escreveu para a Mísia… escreverem porque lhe vêm pedir, mas há uma coisa que é o poeta que nem sonha que está a ser cantado em Fado, como o Camões, por exemplo. A riqueza da imaginação e do trabalho do próprio intérprete, que vai aos livros buscar aquilo que poderá interpretar e cantar.

MC: Uma tarefa muito mais difícil…

AD: É, mas se formos aos clássicos como por exemplo o Almeida Garrett, o fado cravo interpretado pelo Carlos do Carmo, o próprio fado já tem a estrutura das sextilhas, portanto, aí é mais uma questão de ter olho.

MC: Ouvir a música antes de ser tocada.

AD: Exatamente. E depende até mais do intérprete. É ele que se imagina a cantar aquela história, para além de a querer contar. Eu lembro-me de, durante muitos anos fazer esse tipo de pesquisa em poetas antigos e já mortos (sobretudo do século XIX e princípio do século XX), para a primeira fase da obra do Camané, os primeiros quatro ou cinco discos…e, era uma busca que me seduzia muito. Acaba por ser misterioso, de repente, uma coisa feita no fim do século XIX caber que nem uma luva numa melodia do Fado tradicional. Acho comovente até.

O livro em destaque no episódio: “Esse Fado Vaidoso”, de Maria do Rosário Pedreira e Aldina Duarte, edição Quetzal (Foto: Magda Cruz)

MC: A intemporalidade joga a favor…

AD: Não é só isso. Estamos a falar, se pensarmos à época, de uma arte que era, maioritariamente de uma classe muito rica (os poetas do século XIX)

MRP: Elitista, também…

AD: Que tinham acesso a toda uma educação e uma mundividência, que era completamente descrepante da vida das pessoas mais pobres. Então, de repente pensar que uma arte profundamente elitista, do século XIX, que é a poesia, cabe que nem uma luva numa melodia que nasce de pessoas que, maior parte delas, eram muito pobres e não tinham acesso a qualquer tipo de formação musical — era tudo intuitivo — acho lindíssimo! Lembro-me que foi a primeira comoção que tive: “Caramba, então agora o Almeida Garrett cola que nem uma luva com o [Alfredo] Marceneiro?” (risos)

MDP: É verdade… E outra coisa que é muito curiosa é quando, às vezes, há uma sensação de aquilo pode ser cantado, mas é preciso introduzir alterações. Por exemplo, um soneto não se consegue cantar em quadras, mas é fantástico como vemos a inteligência do fadista, que é capaz de cozinhar versos novos a partir daqueles que já estão escritos para conseguir acrescentar aos tercetos um outro verso e transformar um soneto num fado de quadras. Deu muito trabalho porque nós tínhamos de procurar os poemas e, às vezes, os fados tinham outros títulos…não tinham os mesmos versos no mesmo sítio…

MC: A pontuação, a letra maiúscula…
MRP: Sim, e às vezes até faziam coisas como as estrofes não estavam na mesma ordem ou era uma montagem de dois poemas do mesmo autor num fado…Foi complicado, mas, até certo ponto, até nos mostrou como o próprio artista tem um sentido artístico de tal modo apurado que é ele próprio capaz de ser poeta. Isso é muito interessante.

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“Ponto Final, Parágrafo” é um podcast sobre literatura, conduzido por Magda Cruz, na ESCS FM em parceria com a Comunidade Cultura e Arte. Já conta com mais de 60 entrevistas a quem escreve e a quem lê. Pode ser ouvido em todas as plataformas de áudio.

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