‘Que Horas Ela Volta?’: um desafio às famílias, às classes sociais e ao comodismo
‘Que Horas Ela Volta?’ foi candidato brasileiro ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2016, e é uma obra séria e humana da realizadora Anna Muylaert, a primeira mulher desde há 30 anos a representar o Brasil na “corrida aos Óscares”. Sendo um dos filmes brasileiros que mais tinta fez correr nos últimos anos não podíamos deixar de o olhar com atenção redobrada.
Este filme dá às mulheres o seu protagonismo num grito de revolta quando o mundo do cinema está sobrelotado e entupido de masculinidade excessiva. De resto, não nos parecem inocentes algumas atitudes machistas, carentes e exasperantes dos homens ao longo do filme no que a este tema diz respeito.
O filme traz-nos Val, empregada doméstica de uma família abastada que por incidências da vida fica a trabalhar em São Paulo enquanto a filha, Jéssica, fica a ser criada pelo pai no interior do país. Certo dia Jéssica vem para São Paulo por precisar de fazer uns exames para entrar na faculdade e fica a viver com ela na casa dos patrões. O facto de Jéssica ter sido criada pelo pai com um distanciamento enorme em relação a Val, sua mãe, trouxe uma indiferença e impessoalidade entre uma filha e a mãe que não é reconhecida enquanto tal. Um desapego notório demonstrado cada vez que Jéssica trata a mãe como Val, ou seja, pelo seu nome próprio, de forma a salientar ainda mais a impessoalidade e falta de ligação emocional entre ambas. Já Fabinho, por oposição, apesar de filho da patroa de Val é nesta que vai procurar o ombro e o colo de uma amiga. O que é uma mãe? A que está lá e nos educa, nos cria e nos faz crescer ou alguém que o sendo nunca existiu enquanto tal na vida da pessoa?
Em oposição a Val que quer criar ligações emocionais com a filha temos uma família (os patrões de Val) a jantar mas com os seus três elementos a mexerem nos telemóveis sem prestar atenção nem falarem a ninguém. Qual das situações a mais criticável? O afastamento “natural” causado pela vida ou o afastamento causado por nós mesmos; o afastamento causado pelo “artificial”.
‘Que Horas Ela Volta?’ salienta as restrições impostas à classe empregada, uma subalternização constante de Val que até perante a sua filha, que não via há anos, se vê tornar não mais que uma mera empregada em certas ocasiões. À tal constância mais que denotada ao longo do filme vai-se intrometer Jéssica provocando um confronto entre rebeldia (Jéssica) e servidão (Val) e um rompimento com o usual e rotineiro. No final uma exímia cena por parte da realizadora utilizando Val na piscina (simbólica aqui por uma cena anterior no filme) vai dar-nos uma emancipação que tanto desejávamos.
Num filme com excelentes interpretações das duas protagonistas Regina Casé é facilmente adorável para o espectador enquanto Camila Márdila faz, por outro lado, um óptimo trabalho a ser odiada. ‘Que Horas Ela Volta?’ é um filme que não se esconde, dá a cara sobre o que se propõe criticar e é claro nas mensagens que passa. É sem dúvida um desafio às famílias e ao que isso significa, um desafio às classes sociais e ao seu comodismo de parte a parte.
A obra realizada e escrita por Anna Muylaert é portanto um filme que merece a nossa admiração por não recorrer a subterfúgios narrativos.
Este filme vai ser exibido na RTP2, dia 15, por volta das 22h55