“Sombras Brancas”, de Fernando Vendrell, ou o esquecimento da palavra
“Isto de alguém se recomeçar assim depois do nulo, é algo que deslumbra e ultrapassa”.
José Cardoso Pires
Numa semana em que estreiam não um, mas dois filmes portugueses — Nação Valente, de Carlos Conceição, e Sombras Brancas, de Fernando Vendrell — importa recordar que ambos nascem de um período ligado à memória de um povo que viveu meio século de uma ditadura e soube revoltar-se. Isto foi há quase meio século. Há que recuperar esse espírito e descobrir estes filmes.
Sobre Sombras Brancas, reconhece-se em Vendrell o gosto pela evocação histórica, em particular, a personalidade autoral. É assim que cinco anos depois de Aparição, focado na vida e criação de Vergílio Ferreira, o produtor e cineasta se lança a um período, e obra particular, de José Cardoso Pires. O argumento foi escrito em parceria com Rui Cardoso Martins, tomando como base o derradeiro período da vida do autor de O Delfim, A Balada da Praia dos Cães, Dinossauro Excelentíssimo ou Alexandra Alpha, em que este sofre um AVC, aos 71 anos, conseguindo, embora, escrever uma derradeira obra, o livro de crónicas De Profundis, Valsa Lenta, editado em 1997, um ano antes da sua morte. Pois é precisamente esse dilema vindo das profundezas de um autor cuja vida foi lidar com as palavras que o filme acompanha.
Nesse sentido, apetece dizer já é o seguinte: é que entre o risco da adaptação de vida e obra de um autor, sempre sujeita à abertura, bem como à cedência e intromissão de uma obra num filme, Vendrell opta, e bem, pela simplicidade e eficácia de um gesto límpido de cinema, contornando eventuais problemas. Isto para além de ser um filme que lida com a doença, não só na ficção, mas também com o momento invulgar de saúde pública global vivido pela produção do filme durante o segundo confinamento da pandemia.
Aliás, é insólita a primeira cena com aquele braço que irrompe das entranhas da terra, como que a prenunciar um cliché de género ao cinema de terror. Mas não. É o corpo estremunhado do pesadelo Rui Morrison a encarnar o escritor português durante o pesadelo que desligou do mundo impossibilitando de reconhecer os familiares e mesmo a linguagem. É claro que Sombras Brancas não é Persona, de Bergman, apesar de lidar com os mesmos dilemas de uma pessoa criativa que perdeu a sua identidade e passou a viver nas ‘sombras’. Aliás, a intenção de Vendrell estará, por ventura, a milhas da de Bergman. Seja como for, este é um filme que vale por si. É um cinema eficaz (e não televisão), escorreito. Mainstream é certo, talvez que poderia até ser mais comum no nosso tímido panorama de estreias.
Um dos trunfos do filme reside na tremenda e consistente prestação de Rui Morrison, seguramente uma das suas melhores, desde logo no acerto como molda e espelha as sombras daquele corpo e daquela mente que perdeu o fio à meada da memória. É, de resto, milimétrico o seu registo de interioridade psicológica, igualmente distendido e seguro nos momentos de boémia. Uma prestação que tem até na réplica de Rafael Gomes um acerto justo ao Cardoso Pires. Isto em pleno período modernista, alimentando pela verve pelo marialvismo de uma Lisboa cinzenta, cuja proximidade com a censura e a PIDE aguçava todo o engenho. Justamente na altura em que Cardoso Pires escreveu contos Histórias de Amor, no início dos anos 50, uma obra liminarmente sublinhada a traço grosso pelo lápis azul da censura. Será até num dos momentos das suas ‘sombras brancas’, que o autor se encontra com o amigo Alves Redol, uma referência à corrente neorrealista que muito influenciou a sua obra.
Injusto seria não referir o acerto do restante elenco em que assenta parte da eficácia do filme. Desde logo, pela candura de Natália Luiza na evocação da esposa Edite (ou carinhosamente, Esquilo), à procura da memória do marido, ou mesmo Ana Lopes na versão em que conhece aquele que viria ser o companheiro de vida, nos diferentes momentos.
Curiosa também a curta ‘aparição’ da personagem Alexandra Alpha (Maria João Bastos) ou de Soraia Chaves, como a médica que assiste o escritor. Além do tremendo e provocador apontamento de Rogério Samora (na sua derradeira contribuição antes da sua morte em Dezembro de 2021), durante uma tertúlia de boémia, no papel do ator Artur Semedo, no momento em que se recorda a personagem de Palma Bravo, um dos grandes momentos de Samora no cinema, precisamente no filme de Fernando Lopes, O Delfim, talvez a grande obra-prima de Cardoso Pires. Mais até que A Balada da Praia dos Cães, levada ao cinema por José Fonseca e Costa, em 1987.
Sombras Brancas é um filme à altura da ambição que se propõe, ou seja, traçar com eficácia um recorte paradoxal da vida de José Cardoso Pires e sobre o seu esquecimento da palavra. Nesse sentido, é uma ideia inteiramente conseguida.