Longa jornada para a noite
As semelhanças entre a “Longa Jornada Para a Noite” e o nosso país são chocantes. Nesta peça semi-autobiográfica de Eugene O’Neill, é retratado um dia de uma família do início do século XX. A trama passa-se em torno do casal Tyrone e seus filhos: a mãe, viciada em morfina para aliviar as dores, e por ela gradualmente consumida, encontra-se numa espiral de ruína; o pai, típico sovina desmedido, recusa veementemente qualquer despesa; os dois filhos, alcoólicos e sem rumo claro na vida, agem como o produto perfeito da disfuncionalidade familiar. Neste magnum opus de O’Neill, o dia avança em direcção ao crepúsculo como metáfora para a decadência bastante evidente da família e dos seus pilares outrora sólidos. Assim como as relações entre os Tyrone são constantemente corroídas num pano de fundo dramático, à boleia de um vício que tenta amenizar a dor, também a nossa decadência comum parece não ter término visível. A morfina que nos dão, seja o anúncio de micro-apoios ou espantalhos que levantam, entorpeça-nos, mas não é suficiente para conseguirmos ignorar a mais do que visível deterioração das instituições políticas e económicas. A nossa dor é bem maior do que a potência de uma singela dose.
O quasi-falhanço da nossa economia é notório, principalmente nos tempos recentes, em se observa uma clara degradação das condições de vida do cidadão comum. Existe um desajuste entre estrutura económica e trabalhadores, o que resulta num desacoplamento entre salários, inflação e produtividade. Existe uma crise habitacional gritante, vincada pela ausência do Estado nas soluções oferecidas, particularmente agravada no caso dos jovens que não conseguem sair de casa dos pais. Existe uma crise na educação, onde o choque entre os paradigmas de um ensino do século XX, preparado para formar trabalhadores, e um ensino do século XXI, que deve formar cidadãos, é cada vez mais conflituoso, não ignorando as parcas condições e meios dos profissionais. Existe uma sub-orçamentação crónica no serviço nacional de saúde, que se reflete na incapacidade de resposta dada e nos escassos incentivos para que os profissionais se retenham no sistema público. Qualquer morfina que nos é dada só é capaz de nos abstrair temporariamente — as contradições inerentes ao nosso sistema são tão sobejamente agudas que se torna impossível ignorar a nossa decadência, cada vez mais próxima de ser permanente. Estamos, verdadeiramente, numa longa e penosa jornada para a noite.
Contudo, os principais responsáveis por esta deterioração parecem já nem se importar com a nossa percepção da realidade — a dose de morfina que nos têm dado é tão fraca que já não entorpece nem um pouco. Em todo o lado, ouvimos e lemos que o país está a crescer e que apenas precisamos de esperar um pouco para que tal se reflicta na nossa vida. O país cresce em PIB per capita, mas para quem e à custa do quê? É preciso dizer claramente que o país não cresceu, de todo, para a maioria e é dúbio que ainda venha a acontecer. Muito pelo contrário: o crescimento que pavoneiam aos quatro ventos somente foi possível à custa da pauperização da vida dos cidadãos, ancorado numa excessiva dependência de actividades extrativistas e com fraca produtividade, como é o caso do turismo. É, inclusive, incompreensível esta aposta inconsequente neste sector. Como actividade que oferece péssimas condições e baixos salários, e que impede a evolução da nossa economia para um novo estado de desenvolvimento, o turismo é apenas o reflexo do falhanço de todo um sistema que aparenta estar conformado. Tal como o chefe da família Tyrone, os nossos dirigentes preferem uma actividade que gera retornos de curtíssimo prazo para alguns e condena a maioria a um ciclo vicioso de ruína. Só se entende este foco desmedido no turismo por uma única razão: querer mostrar aos turistas a triste e patética peça que é a vida do cidadão comum.
As culpas no cartório distribuem-se de forma quase equitativa entre aqueles que nas últimas décadas foram os dignitários da nossa democracia, apesar de alguns bons resultados e patamares atingidos. Ainda assim, é perfeitamente claro que nos últimos meses ocorreu um corroer sem precedentes nas nossas instituições. Um exemplo disso são os certificados de aforro. É possível que o governo se tenha aproveitado da baixa rentabilidade oferecida pelos bancos para diminuir a sua, apesar da suspeita permissividade e influência de grupos económicos na decisão. Todavia, os produtos financeiros do Estado deveriam ser força motriz para a subida da rentabilidade oferecida pelos privados, numa lógica de competição — não o contrário. Não se compreende, tampouco, que num país em que as maiores instituições bancárias possuem lucros recorde, sejam dispensados trabalhadores e, simultaneamente, oferecidas das mais baixas taxas de juro da Europa. É, também, inconcebível que o banco público não tenha um mandato social capaz de responder aos apelos e necessidades da população. O contrato social rege-se entre cidadãos e governo, não entre governo e entidades económicas “livres”. Seria preciso uma dose cavalar de morfina para tudo fosse esquecido. Haverá dúvidas de que estamos a entrar na noite?
Tudo isto é característico de uma ausência de responsabilidade, respeito e sentido de Estado. Ocorre, recorrentemente, uma instrumentalização clara das instituições, com portas giratórias apenas desde o interior. Não existe nem representatividade, nem vontade de auscultar a sociedade civil nas decisões que influenciam o nosso futuro. Existe um aparente amadorismo, que não se concebe ser possível quando os titulares dos órgãos representativos figuram nos lugares cimeiros da nação há décadas. Em demasiados momentos, não se vislumbra um único adulto sério.
Quando o sistema democrático não se corrige a si próprio, por não ter capacidade nem vontade de o fazer, e quando uns quantos instrumentalizam lugares efémeros, é apenas natural que a decadência dê lugar ao colapso. A história já nos mostrou inúmeras vezes que uma população entre a espada e a parede opta por remédios milagrosos que são piores do que a maleita. Alguém desesperado não é livre, nem poderá fazer uma escolha consciente, mas os nossos dirigentes parecem querer manter singelas e inúteis doses de morfina ao invés de eliminar por completo a dor.
Quando a Longa Jornada Para a Noite está prestes a terminar, a inquietação atinge o seu zénite: a matriarca dos Tyrone sucumbe, por fim, à morfina, e inicia uma viagem sem regresso, em que perde inclusivamente a sua alma. Para o bem de todos, espero que este estado de governação termine bem antes da última dose. Caso contrário, estaremos igualmente condenados à decadência sem retorno.