Woody Allen está constipado
Sessão especialmente atribulada do cineasta norte-americano na Cinemateca, que meteu jornalistas numa sala à parte e deixou gente com bilhete de fora. Na segunda parte, o realizador falou dos filmes da Marvel, dos humoristas de hoje e de como “Manhattan” é um dos seus piores filmes.
Nos idos de 1965, o escritor Gay Talese tinha uma encomenda: fazer um perfil de Frank Sinatra. O problema é que o cantor, já com 50 e poucos anos, estava meio constipado e acabou por não aparecer. A solução encontrada foi entrevistar toda a gente à volta de Sinatra, de amigos à família, e imaginá-lo, construindo um texto sobre uma das figuras norte-americanas mais emblemáticas da música . Mas sem nunca, em tempo algum, falar com ele. O perfil saiu na revista Esquire com o título “Frank Sinatra has a cold” (“Frank Sinatra está constipado”) e é visto como uma das peças jornalísticas do “New Journalism” mais reputadas de sempre. Nessa altura, Woody Allen já tinha passado, com distinção, no teste de escrever para um dos programas de comédia mais respeitados da altura, o “The Sid Caesar Show”, ao lado de nomes como Mel Brooks ou Neil Simmon. Experimentou stand-up, teve sucesso, mas a figura franzina e de pequenos óculos de massa, agarrou-se à máquina de filmar logo que pode. A ela e à de escrever: prova disso são os cinco livros humorísticos lançados, sendo o último, o “Gravidade Zero”.
Mais de 50 anos depois, e com uma carreira única no cinema — “Annie Hall”, “Manhattan” ou “Match Point”, são 58 obras, é escolher —, que viaja entre a realização, o argumento e a representação, o realizador anda pela Europa a dar concertos aos 87 anos e a promover o seu mais recente filme, inteiramente falado em francês, “Golpe de Sorte”, estreado no Festival de Veneza. A sombra do alegado caso de abuso da filha da sua ex-mulher, Dylan Farrow, que terá ocorrido em 1992 — e da relação que manteve com a filha adoptiva de Farrow, Soon-Yu Previn —, que já o levou a ser cancelado nos Estados Unidos da América, tem andado também na sua bagagem. Há dois anos, quebrou o silêncio de 30 anos durante uma entrevista, negando todas as acusações, depois da HBO ter estreado um documentário polémico (“Allen vs Farrow”) sobre todo o enredo. Nunca foi condenado de qualquer crime.
“Só estou teoricamente farto dos filmes da Marvel porque nunca vi nenhum. Não gosto daqueles orçamentos, é uma indústria que não tem nada a ver com o cinema como forma de arte”
Nada disto é imaginado e está já muito bem comentado. O que não seria de esperar, era que Woody Allen viesse à Cinemateca Portuguesa, a propósito do seu mais recente livro “Gravidade Zero” (editado pela Edições 70, Almedina), conjunto de crónicas para a New Yorker, falar com Ricardo Araújo Pereira sobre isto. Isso e que desse dois concertos nesta última semana, em Lisboa e no Porto, mais a sua trupe da The New Orleans Jazz Band. Esta quinta-feira, perante uma plateia com quase 200 pessoas na sala Félix Ribeiro, o cineasta de Bronx deixou tudo em pratos limpos. Apelidou Mia Farrow de “vigarista”, criticou as plataformas de streaming, reforçou a sua inocência e garantiu que, assim que tiver tempo e dinheiro, estará a filmar em Lisboa o seu último e derradeiro filme. Tomates lançados, feministas do movimento #MeToo a quebrar a segurança da Cinemateca e uma orquestra improvisada no fim, com Woody Allen a sair da sala de clarinete na boca. Memorável.
Tudo isto poderia constar de um novo filme do realizador e faria a imprensa nacional crescer muito num só dia, mas não é verdade. De todo. A história do que aconteceu e desta reportagem é outra.
Acontece que os jornalistas que se inscreveram para a sessão — onde não haveria direito a perguntas e em que os operadores de câmara e os fotógrafos só puderam gravar durante dez minutos — tiveram de assistir à conversa na sala ao lado da principal, a Luís Pina. Salvo raras excepções e honrosos convidados, quem foi para a Cinemateca em regime laboral, acabou presenteado com uma transmissão de streaming aos soluços. Outros com bilhetes ficaram a ver navios. Houve quem, sem lugar para sentar, se sentasse onde não era suposto. Foi preciso, por isso, fazer todo um novo tipo de jornalismo, num misto de imaginação, humor e factos a escaldar. As instituições envolvidas, dentro do caldeirão instalado de pessoas sem bilhete a entrar, tentaram controlar a tensão da sala ao lado: afinal, todas as restrições vinham da equipa do realizador. As pessoas esperaram horas para ver Woody Allen, mas o espectáculo estava lá fora. Onde está uma máquina de filmar quando precisamos de uma?
Com meia hora de atraso, Ricardo Araújo Pereira terá alegadamente falado sobre uma máquina de escrever, da marca Olympia, referida noutro livro de Allen, “A Propósito de Nada”, onde o argumentista terá escrito dezenas e dezenas de caracteres. Também se trocaram umas palavras sobre o porquê de ter ido parar à comédia. “Alegadamente” porque a Comunidade Cultura e Arte, fruto da gravidade zero que se sentia no cantinho dedicado à imprensa, não pode garantir a pureza da citação. Antes, o diretor da Cinemateca, José Manuel Costa, tinha pedido para as pessoas não filmarem, não fazerem perguntas e ouvirem. “Guardem este momento”. Como, onde? Na imaginação?
Depois de vários protestos, a confusão acalmou. Jornalistas abandonaram a sala, pessoas que se diziam jornalistas mas não eram também, a plateia ria-se com cada frase do realizador, RAP lá ia ficando cada vez menos nervoso e vestindo a pele de entrevistador. Junto da imprensa, responsáveis do festival Folio, igualmente envolvidos no evento, confessaram que a negociação da vinda de Woody Allen tinha sido muito complicada. Inicialmente, a ideia seria a conversa só ser vista por 50 pessoas. Pode ser que num futuro próximo a sessão seja disponibilizada, mas antes, terá de ser editada. Pensar-se-ia que podia ser pelo conteúdo dito na sala, mas suspeita-se que, com tão parcas condições de streaming, a gravação terá de ser enviada para um grande estúdio em Hollywood.
Com melhores condições e menos jornalistas, foi possível ouvir o que Woody Allen tinha para dizer nos últimos 20 minutos, sem interrupções. “Só estou teoricamente farto dos filmes da Marvel porque nunca vi nenhum. Não gosto daqueles orçamentos, é uma indústria que não tem nada a ver com o cinema como forma de arte”. Passou-se por livros de Eric Idle, relembrou-se Groucho Marx, uma “das suas grandes inspirações”, fez-se conta à quantidade de judeus na comédia e refletiu-se sobre como ter e viver da piada pode ser bem vantajoso. “Ajuda a tirar a tragédia da vida, não a longo prazo, mas por momentos”. Houve muita comédia nesta tarde de quinta-feira, para mais tarde recordar.
Woody Allen relembrou o início de carreira ao lado dos comediantes e guionista do “The Sid Caesar Show” e de como adorou os tempos em que fez stand-up, carreira dura e “assustadora”. “Gostei mas foi muito assustador. Não quereria fazê-lo para sempre. Ou seja gostei, mas não assim tanto”. A sorte, sempre a sorte, foi que um dia alguém lhe passou 24 mil dólares para fazer um filme. O cinema nunca mais lhe saiu da vista. Nem as opiniões mais controversas, como desdramatizar o beijo de Rubiales, ex-presidente da Federação Espanhola de Futebol, a uma das jogadoras da seleção. Não o disse em Portugal. Aí, para uma plateia sempre do seu lado, só fez mossa aos humoristas do presente. “Não vejo muitos comediantes de agora. Os com quem cresci eram muito bons. Não acho que, hoje em dia, alguém seja tão bom”.
A seguir à conversa, quem quisesse recostar-se mais um pouco na Cinemateca, poderia assistir a “Manhattan”, um dos filmes que Woody Allen menos gosta. Para quem queria um convite para ficar, saiu enganado. “O criador é sempre o pior juiz da sua obra, acho sempre os meus filmes maus. Sobre este, em particular, cheguei a dizer aos estúdios para não o estrearem, que faria outro filme de borla para eles, a verdade é que se tornou num sucesso mundial”. Não acederam ao seu pedido, como se viu. “Chegou a um ponto em que tive de me manter em silêncio”. O cineasta norte-americano ainda falou do seu mais recente filme, “Golpe de Sorte”, sobre a importância da sorte na nossa vida. Woody Allen, diz, teve muita. Nos segundos finais, um homem da plateia perguntou-lhe quando vem filmar a Lisboa. “Quando tiver uma ideia que só pode ser cá filmada”, respondeu. É ver se teremos mais sorte de o ver em condições numa próxima vinda.