Entrevista. Luís Campos. “O resultado de bilheteira não deve ser o único factor para dizer se um filme é relevante ou não”

por José Paiva Capucho,    28 Setembro, 2023
Entrevista. Luís Campos. “O resultado de bilheteira não deve ser o único factor para dizer se um filme é relevante ou não”
Luís Campos / Fotografia de Jose Pinto Ribeiro

Luís Campos é fundador de um festival de cinema, professor, produtor independente e criador da Matiné, guionista e realizador. Na últimas semanas, é provável que o tenha encontrado nas várias sessões de workshops e de pitchs no Cinema São Jorge, a propósito do Guiões. O que talvez não saiba, não por culpa sua ou do Luís Campos, é que o autor, em 2022, apresentou e publicou uma tese de doutoramento intitulada “O Passado e o Presente de uma Cinematografia Resistente”. Uma análise detalhada num período entre 2004 e 2019 que olha para a relação entre a baixíssima quota nacional de filmes estreados em sala comercial do país e o sistema de apoios de financiamento do Instituto do Cinema e Audiovisual. O valor é mesmo irrisório: entre os 3 e os 3,1%, muito abaixo da média europeia que se situa nos 15%. Uma tese com dados reveladores de uma realidade que demonstra que, por exemplo naquele período de quinze anos, dos 488 filmes lançados no país, 238 foram produzidos por um “grupo restrito de 20 produtores que mais apoio beneficiou do ICA” entre 2004 e 2019.

“O grande conselho é: se querem começar, preparem-se para dez anos de tentativas para encontrar sustentabilidade. Enquanto o realizador, fazendo uma curta, com apoio de uma câmara municipal ou algum investimento privado, se tiver um bom resultado num festival, poderá com mais facilidade começar o seu processo de financiamento. Para o produtor isso não acontece. Se conseguir colocar um filme em Cannes ou Veneza, vai estar a competir com outros que já meteram 50 filmes nesses festivais.”

Mas essa não é a única conclusão. Há pontos positivos: maior produção de filmes e maior presença em festivais. Há, no entanto, muito trabalho por fazer. Ainda. E Luís Campos, numa longa conversa com a Comunidade Cultura e Arte, deixou bem claro que a sua intenção nunca foi lançar mais achas para uma fogueira de um sector que parece nunca se querer unir. Acredita que, seria importante que as instituições ligadas ao cinema e ao audiovisual e as duas facções — a do “cinema de autor” e “cinema comercial” — olhassem, com olhos de ver, para o documento que construiu durante cinco anos, a par de outros relatórios que já saíram, como o da Olsberg ou do ISCTE. Melhorar o sistema de escolha dos júris do ICA, repensar os critérios de avaliação dos vários concursos, trabalhar melhor num equilíbrio entre o peso dos festivais e o peso do resultado em bilheteira nacional, são algumas das sugestões que deixa. Um raio-x que acabou e acaba sempre por prejudicar os mais jovens. “O problema da concentração de renda é que há pouca democratização no sector. O surgimento de novas empresas em Portugal tem sido muito difícil. Têm sido muito poucos os casos de novas produtoras que surgiram e concorreram a financiamento, apesar de ter aparecido uma ou outra”, refere.

Luís Campos já passou por Amsterdão, Londres e Bélgica. Tem agora uma filha e conseguiu garantir, apenas por um ano, a sustentabilidade financeira da sua empresa. Nasceu na Covilhã, passou por Barcelona e rodou quase todos os programas de formação para jovens talentos de festivais internacionais. O amor pelo cinema vem desde pequeno, quando alugava cassetes VHS num clube de vídeo ao fundo da rua, próximo do snack-bar dos pais. Não tem medo das palavras e de criticar quem precisa de ser criticado. Mas quer estar do lado de quem contribui para a criação de uma verdadeira indústria do cinema no país. No fim, deixa um conselho. Não para realizadores. Não para guionistas. Mas para uma peça fundamental de tudo isto: os produtores. “Se querem começar, preparem-se para dez anos de tentativas para encontrar sustentabilidade”.

“Há produtoras que desistiram completamente do ICA porque sabem que não vão conseguir apoios”

Porque é que decidiu fazer uma tese sobre a produção cinematográfica portuguesa?
É a soma dos anos em que, primeiro, estive como entusiasta do cinema, depois como estudante e, por fim, como profissional, aspirante a realizador ou em funções de desenvolvimento na indústria. E também como membro de júri do ICA, o que me deu uma perspectiva de 360 graus, de alguém que tenta viver do cinema, de quem tem atividades ligadas ao sector e que, de alguma forma, teve a experiência de estar num contexto de concursos do ICA, na lógica da avaliação.

Do lado do sistema.
Do lado da regulamentação do sistema, de ser ou não eficaz, e dos meus dez anos em que vivi fora, da realidade com que contactei de outros países e dos seus modelos de funcionamento. Esta ideia para a tese não foi imediata. O meu doutoramento permitia fazer um projecto audiovisual e a minha ideia era fazer algo da minha autoria ligado à ficção. Com o desenrolar da investigação, comecei a afunilar. Coincidiu com a minha experiência como júri em 2018 e 2019, comecei o doutoramento em 2017 e percebi que nunca tinha havido um estudo exaustivo sobre os apoios da produção e criação do ICA. Percebi que havia essa necessidade. 

Encontrou alguma resistência por  parte das instituições? Ou dos criadores?
Em termo das instituições, não. Nunca houve qualquer entrave. O meu estudo incidia em documentos que estão publicados, quer no ICA, quer também nos arquivos da RTP. Quis mesmo que a investigação incidisse em documentos disponíveis e não ter de ir além disso. Talvez por isso é que não terá havido nenhuma resistência. Da parte do ICA, até foram tendo conhecimento que o estudo estava a ser feito. Quando lancei alguns dados nas redes sociais, as reações de algumas pessoas foram distintas, da forma como se reviam e como tinham interesse em usá-los a nível ideológico. Só que tentei levantar factos apolíticos, acho que não revelo uma posição minha, mas sim a minha preocupação quanto à quota de mercado ser tão reduzida e o que está ao nosso alcance para melhorar esse lado. Esse dado é problemático.

“Também usei dados europeus que desmistificam a ideia de que, por sermos um país pequeno, temos de ter quotas pequenas. Basta olhar para a Dinamarca ou para a Chéquia. Esse discurso tem sido repetido, de que o tamanho impossibilita que a quota seja diferente ou reforçada.”

Algumas das críticas que fazem, é que existem países com uma quota nacional parecida. Não é uma realidade só nossa. O que se responde a isso? 
Primeiro, fiz uma contextualização histórica, como nasceram os vários institutos portugueses, do impacto que teve numa produção mais livre e importante para a nossa cinematográfica. Senti que era preciso fazê-la para perceber como chegamos a 2004, e de como melhorámos alguns índices, por exemplo. Em muitas coisas, de facto, o sistema melhorou: nível de produção, quantidade de filmes produzidos, nível de funcionamento também. Embora existam autores nos anos 90 que, com a inflação e a entrada do Euro, digam que o ICA atribuía mais dinheiro. Não sei se é bem verdade, mas existe essa opinião de quem anda há mais tempo activo no meio. A quota de mercado, por outro um lado, não cresceu. Até tem vindo a diminuir. Depois, a comparação com a realidade de outros países, não foi muito desenvolvida por falta de meios e tempo, até para balizar no ICA. Também usei dados europeus que desmistificam a ideia de que, por sermos um país pequeno, temos de ter quotas pequenas. Basta olhar para a Dinamarca ou para a Chéquia. Esse discurso tem sido repetido, de que o tamanho impossibilita que a quota seja diferente ou reforçada. Quando lancei os primeiros dados estávamos a falar da directiva europeia, quanto as plataformas de streaming deviam investir, se o dinheiro ia para o ICA ou não.

Com cartas abertas e tudo mais. Um momento tenso.
Sim, sim. Essa primeira publicação criou reacções das duas fações quando o que pensei, talvez até de forma ingénua, era que os meus dados pudessem unir o sector. Houve uma abordagem de um jornalista, que até me desagradou, que quase quis forçar uma menção de uma entidade, que depois foi usado num artigo ofensivo para as entidades mencionadas. Ainda tenho dúvidas sobre a real intenção desse artigo.

Esses comentários são sintoma do sector?
Em relação à notícia, sim. A deturpação dos factos de um sistema que tem as suas fragilidades. É um reflexo da quota nacional também ser tão baixa. Há um certo afastamento em relação às últimas duas ou três décadas do cinema português. Este documento pode servir para atacar o sector ou para o melhorar.

Mas não pode acontecer o estudo ficar só pelas redes sociais? Como se sabe, a cultura, apesar do ruído que pode originar, tem pouca atenção mediática.
Qualquer pessoa que queira consultar a tese, pode fazê-lo. Ainda antes de ser publicada, houve um convite de quem organiza os Caminhos do Cinema Português, só que não aceitei porque a tese não estava defendida. O convite não voltou a acontecer, teria muito gosto em debater o meu estudo.

E os Novos Encontros do Cinema que decorreram no Centro Comercial Vasco da Gama?
Não fui convidado para debater este ano, mas aceitei o convite para participar como tantos outros. Comparando com os relatórios encomendados do ICA, do ISCTE e da Olsberg, acho que o meu pode trazer uma análise mais transversal.

A tal “solução holística” que saiu do relatório da Olsberg.
Sim, sim. O da ISCTE aborda a questão do sucesso das produções nacionais em festivais internacionais, que é um dado muito importante, mas não deve ser o único. Tem sido a norma no modelo de financiamento.

“A exploração e o resultado de bilheteira não deve ser o único factor para dizer se uma obra é relevante ou não.”

Só que esse debate ainda não aconteceu.
Não. No contexto do festival Guiões, não fomos a tempo útil para promover esse debate. Somos uma estrutura pequena, gostávamos de debater com várias instituições, do Ministério da Cultura ao ICA, para perceber como é que estes estudos vão ser considerados, até porque está a ser discutido o Plano Estratégico do ICA.

Que ainda não é conhecido.
Não. Houve a dissolução do governo, a secretaria de Estado do Cinema e do Audiovisual caiu, que era quem estava a liderar esse processo. Gostámos de promover esse debate, promover uma consulta pública destes documentos.

Falemos da concentração de renda num pequeno número de produtoras portuguesas entre 2004 e 2019.
Esse foi o aspecto que gerou mais reacções.

Certo. O produtor Luís Urbano, da Som e Fúria, diz que é redutor olhar para essa concentração se não tivermos em conta a legendagem dos filmes portugueses, a influência do cinema norte-americano e o subfinanciamento crónico do ICA. Qual é a relação que existe entre essa renda e a quota nacional ser tão baixa?
A minha leitura não é científica sobre essa pergunta, mas o meu estudo baliza os apoios à produção e criação, os filmes apoiados e os resultados que tiveram. Claro que há todo um contexto cultural, de exibição e distribuição. O Luís tem razão, sobre o domínio norte-americano no mercado europeu. Quanto à legendagem, não sei se será tanto por aí. Os filmes serem dobrados em Espanha ou Itália permitem uma maior facilidade de adesão às propostas. Cá estamos habituados às legendas desde a fase inicial da produção cinematográfica. Há quem defenda que esse é um dos pontos para a baixa quota. Acho que há outros. Sobre os apoios, o que o estudo mostra é que a maioria deles, estando concentrado num número restrito de produtoras, não contribuiu directamente para o aumento da quota. Se só considerarmos os filmes que tiveram apoio do ICA nesse período, chegamos a uma quota de 1,5%.

Se olharmos para os que fizeram mais de 100 mil espectadores durante os quinze anos que estudou, só quatro foram financiados pelo ICA.
Exacto.

Parece até mais chocante.
Tudo isso tem o seu lado subjetivo e a sua complexidade. A exploração e o resultado de bilheteira não deve ser o único factor para dizer se uma obra é relevante ou não. Mas olhando para as quotas, as políticas em curso, ao longo destes 15 anos, não contribuíram para um aumento da quota nacional. Aumentou-se, sim, a produção e uma maior presença em festivais. Quase duplicou.

Claro que também existe esse público de festival, que pode ser repetido quando há mais de uma secção, mas ainda assim.
Esses filmes têm acesso a um mercado internacional nem sempre bem trabalhado. Há um acesso a mercado art house, de nicho, em que Portugal se tem especializado. O que tentei sinalizar é: o papel do ICA aí tem sido muito pertinente e deve ser incentivado futuramente. Mas há todo outro lado, de incentivo ao crescimento da quota, que foi desprezado pelo ICA nesse período. Pode-se regulamentar melhor o concurso, melhorar a escolha de júris.

“Olhando para as quotas, as políticas em curso, ao longo destes 15 anos, não contribuíram para um aumento da quota nacional. Aumentou-se, sim, a produção e uma maior presença em festivais. Quase duplicou.”

Uma das grandes críticas.
Sim, está sempre na boca das pessoas. Quem não ganha, acha que a culpa é dos júris. Vou mais além. Questiono se quem escolhe quem é apoiado tem um determinado número de ferramentas que sejam as mais eficazes.

Como a relevância cultural como critério.
Ou o peso curricular que continua a ser determinante. É avaliado pelo sucesso em festivais, e aí a cinematografia é muito forte. Depois, o resultado da exploração comercial, que não é tão forte. Se os filmes fizerem 100 mil, são um sucesso, mas, tradicionalmente, esses dois critérios que deviam ter o mesmo peso não têm. Os festivais são mais determinantes. Se pegarmos no caso de um realizador com três filmes acima dos 100 mil espectadores, comparando com um que tenha filmes em festivais, a da lista prioritária da ICA, essas seleções têm mais peso do que o número de espectadores.

Agora já é difícil chegar aos 100 mil espectadores. Há realizadores mais antigos como António Pedro Vasconcelos que já nem chega.
O apoio automático era de 20 mil espectadores e passou para 10 mil. Os números têm sido muito baixos, agora já se nivela por baixo. Mas não deve ser esse número a determinar se é mais interessante mas tem de haver um papel de intervenção do Estado porque o nosso mercado não funciona. Será que o “Pôr do Sol” devia ter apoio do ICA ou devia ter investimento privado? Idealmente, seria o privado, ressalvando os apoios do ICA para propostas mais arriscadas e que não têm tanto financiamento no mercado. A questão é que esse espaço não existe. No cinema, há uma deficiência no mercado em que o Estado devia intervir. E historicamente, sobretudo nesses 15 anos, o Estado não tem tido um papel activo. Muito poucas foram as produções, com apoio do ICA, que tiveram um bom resultado de exploração comercial.

Vamos a provocações. Nesse período, só quatro filmes do ICA terem conseguido ultrapassar 100 mil espectadores nesses 15 anos. Isto não dá razão aos autores do dito “cinema comercial” quando se queixam de que aquele instituto público só apoia “cinema de autor”?
Sim, porque de facto é o que tem prevalecido. Temos o exemplo desses quatro filmes, claro, são casos pontuais. O filme do António Variações circulou pouco em festivais mas conseguiu 300 mil espectadores e andou dez anos para conseguir um apoio com múltiplas candidaturas.

Também há a comparação entre o “Tabu” do Miguel Gomes, que foi um sucesso lá fora e até comercial, e o filme da “Amália”, que ia ser um grande box office e não foi além fronteira.
Com o nível de concessão e produção, é difícil prever os resultados a priori. Nem nos EUA sabem se um filme vai correr bem ou não. O papel do ICA também é tentar prever esse resultado, porque se há projectos que têm essa ambição e as capacidades aparentes para ter uma óptima circulação em sala, isso pode ter impacto. Portugal tem uma cinematografia muito forte orientada para o cinema de festivais. De inovação artística, mais conceptual, não tão orientada para a exploração comercial. Mas tenho pena que não exista esse lado, porque melhorava tudo: a relação com o público, os índices de trabalho, o interesse internacional sobre a nossa capacidade de produção.

“Os festivais são mais determinantes. Se pegarmos no caso de um realizador com três filmes acima dos 100 mil espectadores, comparando com um que tenha filmes em festivais, a da lista prioritária da ICA, essas seleções têm mais peso do que o número de espectadores.”

Os remakes como “Pátio das Cantigas” foram sucessos indoor, mas não forma além fronteiras.
Mas só os que vão além fronteiras é que devem existir? Defendo que não. Se colocarmos em números, devíamos ter 60 com ambições a festivais e 40 com impacto nacional. Ou num período transitório, durante cinco anos, para tentar incentivar filmes para público infantil ou filmes de género, para criar uma relação sustentável com o público, por exemplo. 

É possível resolver essa questão até com esta clivagem dentro do sector? As plataformas de streaming, apesar de não terem sido bem recebidas em parte no início da discussão da diretiva europeia, tem agora aceitação junto de vários produtores e autores com quem vou conversando.
A diversificação de fontes de financiamento é sempre positiva. Vai surgir mais diversidade e entidades distintas que concentram a renda do ICA. Claro que podemos dizer que é uma liberalização do mercado e pode desvirtuar. Pode ocorrer uma americanização da nossa cultura, como disseram sobre “Rabo de Peixe” (Netflix). Acho que estes conteúdos devem existir mas não devem ser a norma. O problema da concentração de renda é que há pouca democratização no sector. O surgimento de novas empresas em Portugal tem sido muito difícil. Se sabemos que há uma recorrência de concentração de renda num número restrito de produtoras, com orientação específica no tipo de obras que produz, cujo o regulamento existente fortalece a consistência dessas produtoras ao longo dos anos, entramos num ciclo em que se fecha cada vez mais a porta a novas produtoras. Têm sido muito poucos os casos de novas produtoras que surgiram e concorreram a financiamento, apesar de ter aparecido uma ou outra.

O que fazem é partir para apoios lá fora.
Sim. Há produtoras que desistiram completamente do ICA porque sabem que não vão conseguir apoios. As novas entidades que surgiram, de que faço parte, vêm de realizadores que conseguem apoio do ICA em nome individual, abrem entidades para beneficiarem delas, ou abrem a sua própria entidade e esse apoio vai para aí. O João Salaviza, o Ico Costa, têm feito assim. É uma forma de ter acesso a financiamento. O mesmo projecto candidato pelo realizador com outra produtora pode ter mais força na candidatura do que o mesmo projecto com a sua própria produtora. A argumentação que se faz ao ICA é igual, mas as ferramentas de avaliação sao diferentes. De um lado, avalia-se o currículo do realizador e do outro é o currículo da produtora. Se for uma nova produtora, estará em competição com outras com dezenas de filmes. A profissionalização do produtor foi muito necessária em Portugal. Nos anos 80 e 90, houve um problema com as dívidas dos produtores ao Estado. O dinheiro estava quase todo parado nessas dívidas.

Essa figura é muito importante.
Não só em Portugal. O produtor acaba por ter o papel de determinar a existência de um filme ou não. Cá, acho que podiam haver melhorias. Um papel activo do ICA para trazer mais entidades. 

Sinto que há um certo receio de colocar o dedo na ferida no sector por causa do risco de, no dia seguinte, já não haver trabalho. Este estudo causa incómodo também por causa disso?
Não deveria causar incómodo. Acho que há um sistema que é tradicionalmente defendido por um número restrito de entidades que, de forma correspondente, têm sido muito beneficiadas pelo ICA. Esses produtores teriam interesse em pensar nos dados que apresento. Admito que possa haver desconhecimento mas não desinteresse sobre a minha tese. 

“O filme do António Variações circulou pouco em festivais mas conseguiu 300 mil espectadores e andou dez anos para conseguir um apoio com múltiplas candidaturas.”

É que o Luís falou da “falta de diálogo” e “totalitarismo” nas suas publicações.
Sim, quando o estudo estava a ser feito houve essa clivagem. Duas facções, uma das produtoras que ganham apoio do ICA contra as que não ganham. Há excepções nos dois lados. A existência dessas duas fações, cada uma a rumar para seu lado, vai fazer com que o buraco seja cada vez maior. Mas há pontos de interesse comuns, se não partir dos próprios agentes do sector não sei quem poderá estimular.

O Luís escreveu que se sentia como um outsider na indústria. Depois de fazer a tese, de sair da Spi, de criar a sua produtora, mesmo que não tenha criado anticorpos, ainda se sente?
Acho que tenho feito um percurso muito independente, vivi dez anos fora de Portugal. Nasci na Covilhã, com nove anos fui para Portimão, voltei para estudar cinema na UBI. Em 2008, com 23 anos, fui viver para Barcelona fazer o INovArte, segui para Londres, trabalhei em restaurantes, tentei trabalho nas produtoras, não consegui, depois cheguei a Amsterdão, vivi com o meu irmão, trabalhei um ano e meio em call centers e dei aulas de cinema, onde estive até 2017. Tudo isto permitiu-me desenvolver o projecto da minha empresa, lançar o laboratório Plot, o festival Guiões e outros projectos. Estive também uns meses na Bélgica, o erasmus para jovens empreendedores, na SavageFilm e em São Paulo, na RT Features, onde acompanhei o desenvolvimento de projectos. Desenvolvi esse lado profissional. Antes de voltar, em 2017, fui selecionado para o Berlinale Talents, e conheci o Mário Patrocínio, da Bro Cinema, quando essa produtora estava a crescer no mercado publicitário, e queria criar um departamento de cinema e televisão, com aquisição de direitos e contratação de guionistas. Começo a colaborar com eles e nesse período começo a tese de doutoramento na UBI. Essa colaboração correu bem até que entrei nas funções de coordenar os projectos de cinema e televisão onde estive até outubro de 2022, que coincidiu com a data de conclusão da tese. O convite da SPi surgiu depois do reconhecimento dos meus projectos e fui para o departamento de conteúdos. Saí da Bro, já tinha a Matiné activa, onde já projectava estar a full time em algum momento, mas iniciei funções na SPi. Só que isso ia coincidir com o nascimento da minha primeira filha e com a preparação da minha primeira longa metragem, que já tinha algum financiamento assegurado. Decidi não continuar, iria retirar o tempo que ia precisar para o que procurava. Ainda bem que tomei essa decisão. Este meu percurso foi feito pela tal independência. Nunca fiz parte de grupos. Fui convidado para ser júri do ICA por iniciativa da SECA (Secção Especializada do Cinema e Audiovisual, alguém indiciou o meu nome, mas não sei quem foi.

Por vezes é a melhor assim.
Pois. Não foi por pertencer ao que quer que seja. Sinto-me capaz, pelos conhecimentos que adquiri, fiz vários programas lá fora, do Rotterdam Lab ao Locarno Match Me, que me deram ferramentas para aplicar num papel de produtor. Quero construir um caminho com a minha própria produtora. Por isso, sim, sinto-me capaz. Se poderia ser mais fácil? Claro. Sou um exemplo de pessoa que tem vindo a conseguir alguns apoios do ICA como jovem autor, não sendo assim tão jovem. Já tenho quase 40 anos. Acho que uma revisão estrutural das medidas poderia permitir que jovens na casa dos 20 anos pudessem ter mais facilidade de acesso a financiamento. Já dei aulas a algumas instituições e no atual estado das coisas, se fosse dar uma palestra para aspirante a produtores…

desistiam todos.
O grande conselho é: se querem começar, preparem-se para dez anos de tentativas para encontrar sustentabilidade. Enquanto o realizador, fazendo uma curta, com apoio de uma câmara municipal ou algum investimento privado, se tiver um bom resultado num festival, poderá com mais facilidade começar o seu processo de financiamento. Para o produtor isso não acontece. Se conseguir colocar um filme em Cannes ou Veneza, vai estar a competir com outros que já meteram 50 filmes nesses festivais. A competição curricular é muito castradora para novas entidades e castradora para o sector em Portugal.

Consegue garantir a sustentabilidade da sua empresa nos próximos tempos?
Para um ano. Já passou meio ano e não sei se vou conseguir estender essa sustentabilidade. Recebi um apoio parcial do ICA, onde concorri para 250 mil euros nas Primeiras Obras. Não consegui. Um dos autores que ganhou teve alguma documentação irregular, e o regulamento determinou que os outros dois abaixo na tabela, onde estava, seriam parcialmente apoiados porque estavam empatados ao nível da pontuação. Consegui 125 mil euros que, para longa, é muito curto. A média de financiamento da União Europeia anda pelos 2,5 ou 3 milhões. Em Portugal são 600 mil a um milhão de euros. mas permitiu-me montar uma estratégia criativa que vai tentar viabilizar a produção desse filme. Não sei se vai ser possível estender. É muito difícil construir o caminho de uma produtora, mas acho que tenho capacidade para o fazer.

“Portugal tem uma cinematografia muito forte orientada para o cinema de festivais. De inovação artística, mais conceptual, não tão orientada para a exploração comercial. Mas tenho pena que não exista esse lado, porque melhorava tudo: a relação com o público, os índices de trabalho, o interesse internacional sobre a nossa capacidade de produção.”

Se é complicado ser guionista em Portugal, mais complicado fica ser guionista, produtor e realizador.
O modelo de produtor que identifico como o que está a ter melhores resultados internacionais, não é possível encontrar em produtores em Portugal. Infelizmente é recorrente as histórias de quem não desenvolveu boas relações com produtores, onde houve desrespeito pelos projectos ou difíceis questões financeiras. A nossa realidade ainda permite uma capacitação generalizada dos produtores activos em Portugal. Há quem esteja muito bem instalado nos seus ofícios. Há espaço para estimular novas pessoas. Fui virando produtor por necessidade e não por apetência profissional ou desejo. Entretanto, adquiri competências para viabilizar os meus projectos.

O seu caminho seria mais fácil se se mantivesse na SPi?
Depende. O meu caminho como realizador e produtor? Não sei. São estruturas que já têm redes de contactos, já está tudo muito bem definido. Têm um histórico muito consistente. A visibilidade de um projecto pode ser mais rápida. Acho que não reside só nisso. A curiosidade da procura insaciável de novos autores é importante para um produtor, a capacidade de relação internacional também. Hoje em dia, ao contrário do que acontecia antigamente, a globalização permite desempenhar este trabalho com estruturas muito pequenas.

Falemos do festival Guiões. Portugal tem um problema crónico com a escrita de guiões?
Concordo. Se te perguntar se me consegue identificar dez guionistas que só trabalham como guionistas, não é fácil.

A lista de guionistas ainda é mais pequena do que os outros produtores de que falávamos.
Sim. Nunca houve um relevo dado ao papel do guionista em Portugal. O meu estudo aborda muito rapidamente. Merecia outro mais a sério sobre o papel dos guionistas na nossa cinematografia. Surgiram alguns nomes recorrentemente que permitiram definir a profissionalização do meio. As telenovelas veio fazer um pouco esse trabalho. Agora, com as plataformas, as séries dão um impulso a esse lado. A nova directiva europeia deu esse cunho, um interesse mais generalizado pelo ofício da escrita. O festival Guiões nasce por duas razões: na altura, tentava apresentar os meus projectos e as produtoras não tinham interesse em ler. O Guiões dá palco a talento que possa chegar mais facilmente a produtores. Por outro lado, a capacitação dos profissionais na escrita. O festival nasce em 2014 e o Brasil já estava a ter um boost na procura de guião. Em Portugal ainda nem sequer estamos próximos hoje em dia. Dá-se uma atenção ao guião no Brasil que não se dá cá. A cinematografia está orientada para o realizador e não para o projecto escrito. Dou um exemplo, sem desfazer o talento, a qualidade e a diferenciação pela obra do Pedro Costa. Como é que um guião dele pode ser avaliado por um júri? Pode escrever um guião mas a forma como filma é que determina a mais valia artística. Não é um sistema de financiamento que avalia o texto por si só. Fez com que os produtores profissionais que trabalham com o ICA não tivessem urgência na procura de guiões mas sim por realizadores. Têm vindo a surgir alguns nomes no guionismo, mas o impacto sente-se mais no Brasil do que em Portugal.

“Dou um exemplo, sem desfazer o talento, a qualidade e a diferenciação pela obra do Pedro Costa. Como é que um guião dele pode ser avaliado por um júri? Pode escrever um guião mas a forma como filma é que determina a mais valia artística.”

Há talento, por isso.
Sim, sim, ano após ano reforço essa convicção. Continua a haver dificuldade em que esse talento seja visto. Fazendo um balanço de nove anos do Guiões, para os guionistas, tem sido um sucesso tremendo. Dos guionistas profissionais, não tanto. Há alguma resistência ao festival por estranho que me custe.

É medo de perder o lugar?
Não sei se será. Se é acharem que a formação das atividades de partilha não acrescentam. Tenho pena. Gostava que os guionistas profissionais portugueses participassem no Guiões. No Brasil já não acontece tanto assim e falo muito no país porque é outro dos países onde o festival se insere. O que me entristece nestes nove anos é também não conseguir trazer os produtores ao festival. Somos mais consultados por produtores no Brasil, que querem fazer novas conexões. 

Já abordou os portugueses?
A todos. 95% deles sabem da existência do Guiões. Alguns já passaram por cá. Outros nunca tiveram interesse.

“A profissionalização do produtor foi muito necessária em Portugal. Nos anos 80 e 90, houve um problema com as dívidas dos produtores ao Estado. O dinheiro estava quase todo parado nessas dívidas.”

O guião também tem importância relevante na quota nacional.
Tem, tem. Em Portugal existem muitos públicos. Tem faltado muito o meio termo. Temos propostas muito comerciais derivadas de produtos narrativos, sem grande qualidade artística, uma ou outra cara conhecida. Depois, há o outro lado: cinema muito erudito, cinéfilo, que não comunicam tão bem com o público em geral. Tudo o que vai no meio, depende muito do guião para contar uma boa história de uma forma inovadora. O papel do guião é fundamental para que isso aconteça. O Guiões tem tentado preencher essa lacuna. Acho que ainda estamos longe e dos resultados que poderá ter no sector.

Como é que um rapaz da Covilhã se apaixona pelo cinema?
Foi muito cedo. Vivia no cimo da rua, a meio os meus pais tinham um snack bar, e no fim havia um clube de vídeo, onde literalmente todos os dias ia buscar VHS. Gravámos muito. Tenho dois irmãos mais velhos com gosto pelo cinema, tal como os meus pais. Acontecia na escola primária. Via de tudo. Desde os Indiana Jones aos Rain man, etc.

Havia discussão?
Conversas, sim. Quando estreou o “Exterminador Implacável 2” não pude ir porque era muito pequeno. Quando chegamos a casa, falámos todos sobre o filme e pude imaginá-lo. Quando passou na televisão, conquistou-me ainda mais. O meu gosto sempre foi muito diversificado. Entro na universidade de cinema, abri os horizontes, para a história do cinema, desde os primórdios norte-americanos, o expressionismo alemão, neo-realismo, nova vaga francesa, cinema da República Checa ou da Polónia, o cinema do mundo começou a ganhar muito mais peso.

Os pais nunca o tentaram demover?
Não. Estavam cientes do risco que corria mas, quando fui escolher o curso de ensino superior, a minha mãe estava comigo e tomámos conhecimento na hora, que tinha aberto um curso de cinema na Covilhã. Ela sempre soube do gosto que tinha por cinema. Andava um pouco perdido, a minha mãe sabia desse gosto e como sabia que tinha um filho determinado e foco, empurrou-me. Claro que acha que influenciou uma decisão que podia vir com uma dose de dissabores e frustração, mas estou-lhe grato por ter seguido este caminho. 

“Há um sistema que é tradicionalmente defendido por um número restrito de entidades que, de forma correspondente, têm sido muito beneficiadas pelo ICA. Esses produtores teriam interesse em pensar nos dados que apresento.”

Um guião de um filme recente de que tenha gostado?
Sem consultar o Letterbox, fica difícil. Gostei muito do “Openheimer”. É um trabalho consistente do Christopher Nolan. Muito visionário, não gosto de tudo o que faz, mas acho que é um dos melhores guiões que fez até agora. Qualquer filme do Almodóvar dá sempre a volta à cabeça. Consegue ter uma abordagem artística sustentada mas tem um lado meio Hitchockiano, com pontos de viragem na história, que, em termos de guiões, são muito eficazes na forma como envolve o espectador.

Que avaliação faz da edição do Guiões deste ano?
Foi uma edição que ultrapassou as expectativas em termos de participação e que afirmou a sua relevância no setor do cinema e audiovisual lusófono. Participaram mais de mil pessoas no total das atividades propostas pelo festival, com mais de uma dezena de nacionalidades representadas e muitos encontros de negócios realizados. Estou certo que iremos colher os frutos desta edição ao longo dos próximos anos, numa forte demonstração de vitalidade da criatividade lusófona.

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