Entrevista. Aurora Almada e Santos: “Com a criação de uma Comissão da Verdade do Colonialismo Português ficaríamos a conhecer aspetos da história que ainda são ‘obscuros'”
Ao longo dos últimos meses, assistimos à multiplicação dos pedidos de desculpa pelos crimes perpetuados por países europeus durante os anos do colonialismo — desde António Costa pelo Massacre de Wiriamu, levado a cabo por soldados portugueses em Moçambique no ano de 1972, ao Rei dos Países Baixos pelo passado esclavagista do seu país. Apesar de ser previsível que os pedidos de desculpa continuem a aumentar — recentemente, Marcelo Rebelo de Sousa referiu que Portugal deve pedir desculpa pelo seu papel na escravatura transatlântica — as desculpas por si, ainda que louváveis, servem de pouco. O questionamento do passado colonial de Portugal continua a ser um tabu, os silenciamentos da História mantêm-se, o colonialismo continua a ser celebrado em monumentos nas nossas cidades e a total ausência de reparações aos países colonizados fica aquém dos danos sofridos pelas suas populações. É evidente que são necessárias novas soluções para ultrapassar estes obstáculos — algo como um processo de consciencialização e confronto com a memória coletiva que abranja toda a sociedade.
Há um ano, Aurora Almada e Santos, Investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, explicava que o pedido de desculpas do Primeiro-Ministro português em Moçambique “poderia ter tido um maior alcance com o anúncio da criação de uma comissão conjunta, entre Portugal e as antigas colónias, para o estudo dos diferentes massacres que ocorreram durante a dominação portuguesa. Com o aproximar do cinquentenário das independências das antigas colónias africanas, uma tal iniciativa seria uma oportunidade para o apuramento dos crimes cometidos contra as populações, à semelhança das comissões de verdade e reconciliação criadas em diferentes países, como a África do Sul, a Argentina, a Bolívia, o Brasil, o Chile, o Paraguai e o Uruguai.” O tema de uma Comissão da Verdade para o colonialismo português não é novo, mas continua a ser uma discussão silenciosa — ou silenciada. Numa conversa com Aurora Almada e Santos, falamos sobre a importância de criar esta Comissão, quais seriam os seus objetivos, quem deveria ser ouvido e como reunir tantos países diferentes na mesma mesa para discutir um assunto que não se costuma discutir: o passado.
A Comissão conjunta que propôs no seu ensaio, que incluiria Portugal e todos os países africanos que foram colonizados, seria algo inédito na história das Comissões da Verdade por duas razões — por um lado, por ser uma Comissão internacional e não apenas nacional; por outro lado, por incidir sobre os crimes perpetuados por um império colonial. Nunca houve este tipo de reconhecimento e investigação por parte de um país colonizador, seja em parcerias internacionais ou por si próprio. Neste contexto, como é que imagina a Comissão da Verdade do Colonialismo Português?
Quando escrevi originalmente sobre a importância da criação desta comissão conjunta, estava a pensar num projeto que agregasse tanto Portugal como os países africanos. Com esta Comissão, ficaríamos a conhecer aspetos da história portuguesa que ainda são “obscuros” — não só por falta de interesse em conhecê-los, mas também porque há casos em que a própria documentação desapareceu e só existe na memória das pessoas. Assim, as próprias pessoas que sofreram às mãos do colonialismo português seriam incluídas neste processo — por exemplo, pessoas cujo pai foi morto e cuja mãe ficou a cargo de vários filhos que teve de criar sozinha, sem apoio e meios de subsistência. Existiria assim um processo que abrangeria as experiências pessoais, iria além das “grandes massas”, individualizaria as pessoas.
“Ao contrário dos Países Baixos, onde o Primeiro-Ministro e o Rei já pediram desculpas pelo seu papel na escravatura, Portugal mantém-se em silêncio. No entanto, Portugal foi o país que — de longe — traficou mais seres humanos. Esta consciencialização está a faltar na sociedade portuguesa e essa Comissão teria, assim, uma vertente educativa.”
E que tipos de questões deveriam ser abrangidas por esta Comissão? Qual seria o seu escopo? Restringir-se-ia aos massacres conduzidos pelos soldados portugueses em África?
Em primeiro lugar, seria abordada a questão dos massacres — a comissão deveria investigar os inúmeros massacres que existiram durante o colonialismo português. Nós ouvimos falar nos massacres de Pidjiguiti (1959), Batepá (1953), Mueda (1960), Wiriamu (1972) — que são os mais conhecidos — mas houve outros, com diferentes escalas. Durante as chamadas “campanhas de pacificação” em África houve episódios com muitas mortes. Ou, por outro lado, inúmeras pessoas morreram durante as ações portuguesas de “reconquista do Norte” no início da guerra colonial em Angola. Em segundo lugar, a Comissão também se deveria debruçar sobre os inúmeros ataques ou interferências que Portugal fez nos países vizinhos das suas colónias — no Senegal, na Guiné-Conacri, nos Congos… A operação “Mar Verde”, que teve lugar em Conacri no ano de 1970, é bastante conhecida — mas não existe qualquer documentação sobre o assunto. Porque não chamar pessoas que tiveram algum tipo de envolvimento nestes ataques e procurar esclarecer estas situações? Uma terceira questão a abordar pela Comissão da Verdade seriam os assassinatos, em particular dos líderes dos movimentos de libertação africanos. O caso mais conhecido é o de Amílcar Cabral, do PAIGC, mas também existe o caso de Eduardo Mondlane, da FRELIMO — dois casos em que o envolvimento do Estado Português nunca foi esclarecido. Por fim, deveria também ser abordada a história das pessoas que sofreram os mais diversos tipos de repressão na guerra colonial às mãos do exército português ou da PIDE — por exemplo, a questão dos aldeamentos e relocação das pessoas. Deve ser questionado o que é que este processo implicou para estas pessoas. A demonstração desta dimensão humana — do peso que o colonialismo português teve na vida de pessoas que ainda estão vivas e que vivem com a consequência destes atos — está a faltar na sociedade portuguesa. É uma sociedade que vive constrangida pelos muitos silenciamentos relativos à sua própria história.
Ou seja, esta Comissão da Verdade abrangeria os diferentes tipos de crimes perpetuados pelo estado português apenas durante o passado recente?
Quando escrevi sobre esta Comissão estava a pensar numa história mais recente de Portugal — ao longo do século XX, que coincide com a guerra colonial. Mas, ao longo dos últimos meses, tenho repensado esta posição. Dada a dimensão que Portugal teve no tráfico atlântico de escravos, porque não estender esta Comissão mais atrás no passado? Ao contrário dos Países Baixos, onde o Primeiro-Ministro e o Rei já pediram desculpas pelo seu papel na escravatura, Portugal mantém-se em silêncio. No entanto, Portugal foi o país que — de longe — traficou mais seres humanos. Esta consciencialização está a faltar na sociedade portuguesa e essa Comissão teria, assim, uma vertente educativa. Apesar de haver muita coisa que não podemos recuperar, é sempre possível sempre recolher e disponibilizar esta informação sobre o passado da escravatura ou da guerra colonial para toda a sociedade.
“Há, de facto, uma tentativa de trazer para o debate a questão do passado colonial português e de ultrapassar os silenciamentos na sociedade portuguesa — mas são muitas vezes esforços dispersos, circunscritos a um determinado grupo ou a esforços individuais, que às vezes não chegam ao conjunto de toda a sociedade ou que são mal interpretados.”
Em termos logísticos, esta Comissão apresentaria alguns desafios, uma vez que implicaria um esforço conjunto entre diferentes países. Como é que imagina a sua arquitetura? Cada país investigaria a “sua parte” e depois reuniam-se todos para definir um consenso historiográfico?
Primeiro, deveriam ser criadas pontes entre Portugal e cada um dos outros países envolvidos, numa lógica bilateral — com a Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique. Depois, por exemplo, poderia criar-se um grupo mais alargado em que estariam representantes de todos estes países para chegar a conclusões mais abrangentes sobre o que foram as colónias portuguesas em África. É preciso ter em conta que houve muitas semelhanças mas também muitas diferenças nestas colónias. O próprio regime colonial português estabelecia estas diferenças — por exemplo, o Estatuto do Indigenato que apenas se aplicava a certos territórios, a questão do trabalho forçado que predominava em São Tomé e Príncipe, ou o emprego da população no seio da administração colonial portuguesa, como em Cabo Verde. Ou seja, houve diferentes formas e níveis de repressão das populações. É por isso necessário ter atenção a estas particularidades quando observamos o “todo” — que poderá ser feito através desta conjugação de relações bilaterais com uma organização conjunta de todos países, articulando os particularismos de cada colónia com os pontos comuns a todos os territórios.
Isso leva-nos à questão da “Reconciliação” — muitas das Comissões da Verdade são, também, Comissões de Reconciliação, como foi o caso da África do Sul após o apartheid. Há muitas “reconciliações” a ser feitas no contexto do colonialismo português — seja reconciliações internas, como é o caso dos silenciamentos em Portugal, ou reconciliações internacionais entre Portugal e os países que foram colonizados…
A reconciliação seria um elemento a ter em conta nesta Comissão, embora não ache que seja tão urgente entre os estados. Nota-se que os países africanos e Portugal, após um curto período que se seguiu ao 25 de Abril, acabaram por estabelecer relações cordiais a nível estatal, sem grandes fricções em torno do passado. Contudo, a reconciliação a nível pessoal será muito importante, há muita gente que sofreu na pele a repressão colonial, que sentirá necessidade deste processo de reconciliação e de confrontação com o perpetrador de violência — e disso tirar algum apaziguamento e justificação ao qual foi sujeito.
Criar a Comissão da Verdade iria previsivelmente abrir um debate — que já começa a existir, mas de forma algo dispersa — sobre o questionamento do passado colonial português…
Há, de facto, uma tentativa de trazer para o debate a questão do passado colonial português e de ultrapassar os silenciamentos na sociedade portuguesa — mas são muitas vezes esforços dispersos, circunscritos a um determinado grupo ou a esforços individuais, que às vezes não chegam ao conjunto de toda a sociedade ou que são mal interpretados. Neste sentido, a Comissão serviria para trazer para a atualidade esse debate, dar-lhe uma outra estrutura e torná-lo numa preocupação central da sociedade portuguesa — algo que não existe hoje.
“Nunca é tarde demais para se reconhecer e procurar perceber o que aconteceu no passado. Para mais, tendo em conta que independências aconteceram há menos de cinquenta anos, há muitas pessoas que presenciaram este processo, que sofreram, que ainda estão vivas. Por esta razão, não passou tempo demais.”
A questão das restituições de artefactos por Portugal aos países africanos, cada vez mais discutida, estaria englobada pela Comissão da Verdade? Ou seria apenas um debate “colateral”?
Na verdade, o tema das restituições já começou a ser tratado — alguns museus já estão a fazer um levantamento dos artefactos que têm, da sua proveniência e da forma como chegaram aqui a Portugal. Falta é saber o seguimento deste levantamento. Tenho as minhas dúvidas que o passo da restituição seja dado por Portugal. Nesse sentido, a Comissão poderia ser importante — por exemplo, através da elaboração de algumas orientações dirigidas ao Governo português, esclarecendo que atitudes é que deviam ser tomadas.
Considero que a questão dos artefactos tem uma grande importância. Vejamos o caso de Cabo Verde, de onde eu sou originária, que não tem um museu nacional. E haverá ainda mais artefactos de países como Angola, Moçambique e Guiné aqui em Portugal — não vejo porque não podem estar nos seus próprios países para estes conhecerem partes da sua história e até potenciar o seu turismo cultural.
É previsível que várias pessoas questionem o timing de criação desta Comissão — dirão que já passaram demasiados anos desde o fim do colonialismo, que não vale a pena levantar estes temas passado tanto tempo, que “o passado deve ficar no passado”. Como respondemos a estas críticas?
É importante ter em conta que há outras Comissões da Verdade que abordam épocas ainda mais distantes — vejamos o caso da Austrália, onde se organizou uma Comissão que incluiu eventos que remontam ao tempo da sua própria colonização — muito anterior ao século XX! Nunca é tarde demais para se reconhecer e procurar perceber o que aconteceu no passado. Para mais, tendo em conta que independências aconteceram há menos de cinquenta anos, há muitas pessoas que presenciaram este processo, que sofreram, que ainda estão vivas. Por esta razão, não passou tempo demais. Nos próximos anos, vamos assistir a vários eventos — a comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, das independências dos vários países africanos e o centenário da morte de Amílcar Cabral — que tornam este um momento galvanizador para se trazer à luz esta Comissão e toda a reflexão que nos proporcionará.
Põe-se também a questão da preservação da memória – há muitas pessoas que viveram os tempos do colonialismo, a guerra colonial, as independências, que ainda estão vivas e podem contar a sua própria história…
É muito importante o facto de ainda existirem pessoas que têm memórias. Há uns anos, falava com um investigador guineense que tem os seus cinquenta e poucos anos. Viveu no tempo da guerra colonial na Guiné e contou-me que viu coisas horríveis quando era uma criança — é apenas uma de muitas pessoas vivas que têm memórias e que podem contribuir.
Que tipo de memórias e testemunhos é que podem ser abrangidos por esta Comissão da Verdade?
As memórias serão diversas e dependerão muito da relação mais próxima ou mais afastada que as pessoas tinham com a administração colonial portuguesa, o seu envolvimento na luta pela independência, o seu nível económico, se viviam num ambiente urbano ou rural, as especificidades internas de cada território… Estes particularismos são precisamente uma das questões que esta Comissão poderá trazer — por exemplo, poderá questionar-se que tipo de influência é que a África do Sul, ainda no regime do apartheid, terá tido no governo português em Moçambique?
E quem conduziria a investigação científica desta Comissão?
Diria que deve ser incluído um grupo mais abrangente possível, de diferentes áreas — desde cientistas sociais, como historiadores, antropólogos, sociólogos, a psicólogos, juristas e até políticos. Estamos a lidar com questões que têm de ser vistas de diferentes perspetivas e saberes.