Ano Agustina: as imponências religiosas, históricas e femininas de ‘O Mosteiro’
Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.
Agustina Bessa-Luís, conhecida pelo seu percurso literário entre as margens do Douro, sempre se caraterizou por uma metafísica muito própria, que nunca descurou o valor feminino e o seu entrosamento com a acentuação divina. No entanto, não faz da mulher entidade divina, mas verdadeiramente humana. A sua humanidade expressa-se nos valores, sabores e dissabores que proporciona das suas ficções, mas que se contextualizam em realidades muito verídicas. É nesta sucessão, nesta dialética da estrutura material religiosa e da imaterialidade da alma, que chega O Mosteiro, originalmente redigido em 1980, agora reeditado pela Relógio de Água. Em torno desse mosteiro que titula a obra, orbitam os percursos genealógicos de mais uma família duriense, com várias ramificações para fora dessa região, que, no entanto, nunca a abandonam de verdade.
Não obstante, são as personagens masculinas que acabam por ser acompanhadas, desde as suas peripécias pueris até aos alcances da mocidade académica, na azáfama da urbe. Exemplo disso é a personagem de Belchior, cuja educação foi vincada pela sua mãe e tias, à luz de uma recente vida de adulto com paixões e perturbações, também elas orientadas pela figura feminina. Tudo em torno da imponente existência do mosteiro, norteadora de paixões e de consagrações da emoção e da experiência, com o Douro ali tão perto.
Perto desse mosteiro, surge-nos o viveiro, fonte residencial de todas estas ligações familiares, entretecidas entre Aurora, Matilde e Assunta, as figuras imaculadas desta obra agustiniana. Os galanteios percorrem as redondezas da sua casa, mas são poucos aqueles que conseguem mexer com o estatuto quase santificado das senhoras, que vêm os seus familiares crescer e seguir percursos diferentes. De Belchior – Belche para os que o vão conhecendo melhor – derivamos para o seu pai, Salvador, que se perde na luxúria, e para os emigrantes que passam por aquelas redondezas, muitos deles no rescaldo do impacto bélico da II Guerra Mundial. É no pedestal salazarista do campo, para lá da articulação das influências britânicas associadas à cidade do Porto, que paixões se cruzam, de forma mais ou menos platónica, e que mexem com as idades e com as peculiaridades de cada personagem. A tentação de acompanhar a evolução moderna vinda do exterior é existente, e consegue congregar vários dos populares daquele meio. Porém, também nos deparamos com irredutíveis figuras do viveiro, que viu a família Teixeira a desdobrar-se para o mundo. É nesta que emanam as três obstinadas e consagradas mulheres, imunes às aspirações de fora e enraizadas às inspirações de dentro.
De súbito, o mosteiro muda de configurações, embora sem nunca perder a sua identidade, a sua mística. Toda a narrativa não esquece a evidência arquitetónica e religiosa do mosteiro de São Salvador. A história de Portugal abrange e povoa naqueles que são os novos inquilinos do espaço, que se transforma num albergue para aqueles que vivem mais no sonho e na loucura do que na realidade tangível e na preocupação quotidiana. É na genealogia da família Teixeira, desentroncando de Assunta, Matilde e Aurora, que se contextualiza a destacada presença de Belche, o filho de Salvador, inspirada figura de letras e de humanidades. A trajetória sebastiana reforça o vínculo com a história do país, ali, naquele espaço do Douro, que nunca perde de vista o mundo enquanto os seus viajam. É assim que Belche vai preenchendo a sua riqueza empírica, cruzando-a com a austeridade de valores do tio José Bento, que havia sido oficial militar. D. Sebastião é a eterna figura mítica e mitológica de Portugal, nos seus mais diferentes vetores, nas inspirações dos seus vastos setores. Agustina infere a história de Portugal nos rostos dos consagrados Teixeiras, que visitam e avistam aqueles que povoam o seu percurso de vida com a força de caráter inerente a esta genealogia.
As descrições que Agustina proporciona sobre o tempo, o espaço, as personagens e as circunstâncias entre estes três elementos enriquecem-se com o olhar atento e sentido de quem é do Douro. Algumas personagens partem, para rumos diversos e distintos, para lá da materialidade geográfica e metafísica. Ficam, porém, eternizadas na memória genealógica, retomada e recontada nos breves diálogos das personagens, pelas quais percorrem vibrações e seduções goradas e partidas. A roupagem dos anacronismos vêm o tempo seguir o seu natural decurso, aplaudindo no silêncio da emoção esquecida, do sentimento que nunca se tornou consolidado. A proeza do mosteiro permanece como o rosto de São Salvador, nas covas que o Douro saúda à distância do que banha. No seu interior, permanece também o lastro das estórias e histórias do espaço religioso, que dá fundamento a que a escrita de Belche, de formação académica aprumada e estrangeirada, se desenvolva, ao mesmo tempo que permanece nas encruzilhadas dos amores dispersos.
Agustina cruza a História com a trama, que é narrada e datada dos anos 80 do século XXI. A história turbulenta entre as três últimas dinastias da monarquia portuguesa, entre a de Avis, a Filipina e a Bragantina, acompanha o nascimento e desmoronamento do mosteiro, o dito e afamado mosteiro. Os protagonistas associam-se com os da História, com aqueles que pontificam as exigências dos tempos, com as supressões feitas pelos espaços, que viram o sangue, o suor, as lágrimas, os medos e as glórias prostradas no terreno. A religião é a do caráter, a da superação constante de personagens, como Assunta, Aurora e Matilde, e a racionalidade de Belchior e de José Bento, por vezes contrastantes, mas não tão errantes como Salvador. A imponência de Josefina ajuda a que o mosaico da memória permaneça e prevaleça pela História, especialmente pelos que a vivem e revivem eternamente.
“O Mosteiro” surge como um cruzar das histórias de São Salvador de Travanca e do seu mosteiro, narrando as histórias e memórias do seu percurso cronológico. Tudo num intervalo de tempo muito concreto, nos anos 80 do século XX, desvendando um interesse pelo conhecer e desvendar do passado para a compreensão do presente. Novamente a força do caráter feminino ressoa na badalada provinciana, que tão bem preenche a análise existencial e humana, para além de todas as suas relações com a terra e com o mundo. É assim que Belche, narrador e historiador de causas e memórias, é o rosto que Agustina Bessa-Luís assume para a expressão do seu registo literário, tão caraterístico e singular, que a define como um vulto proeminente do escrever em português em solo lusitano.