Marco da Silva Ferreira: “A dança veio numa altura certa, se tivesse sido mais tarde já não seria possível”
Marco da Silva Ferreira encontrou na dança a sua forma expressão, comunicação, prazer e fruição da sua sensibilidade, mesmo que esta tenha apenas chegado à sua vida aos 16 anos, não obstante a prática de desporto, a prática física, não ser uma desconhecida para si. “Dependendo dos estilos de dança“, como explica, o bailarino e coreógrafo refere que “há corpos que precisam de ser moldados, há trabalhos que precisam de ser um bocadinho cumulativos à medida que o corpo se vai formando“, mas complementa que, no seu caso, “se calhar, se fosse aprender dança muito cedo, não tirava partido de tudo aquilo que estava a receber e, se calhar, a minha atenção era muito mais baixa. Acredito que veio numa altura certa, numa altura limite, caso tivesse sido mais tarde, já não seria possível“, afirma. A expressão pelo corpo acaba por ter, sempre, um pendor político, mas reforça que, tal como uma árvore existe sem propósito, assim pode ser arte, mas que “podemos encontrar funções que lhe atribuímos, mas são coisas voláteis, são coisas que podem mudar“, considera. Relembra, contudo, que foi “uma criança ligada às artes, claramente — gostava muito de cantar e andava na música, era um bom palhacinho enquanto criança“, recorda.
A dança, os espectáculos, para si, são mais do que narrativas, são o trabalho sobre as “sensações, sobre sensibilidades ou sobre uma expressão que é subjetiva e, ao mesmo tempo, estamos a trabalhar sobre uma filosofia de corpo: esses lugares interessam-me muito porque são lugares que trabalham, ativam outras lógicas que não são as narrativas, nem são as semânticas, são as do foro da sensibilidade, da afetividade, das comunicações não verbais, das tensões invisíveis entre os corpos, das massas de coletivo, da expressão das emoções, sobre o ponto de vista da imagem, do som, da relação da imagem, do som e do espaço“, diz.
Hu(r)mano, Brother, Carcaça são os espectáculos da sua autoria e, dia 4 de Novembro, leva Bisonte ao Cineteatro António Lamoso, às 21h30. Trata-se de regresso à cidade natal que o viu nascer e crescer, Santa Maria da Feira.
Como foi para um rapaz de Santa Maria da Feira interessar-se por dança e seguir esse interesse?
A passagem para a dança foi uma transição tardia, sobretudo, porque apesar de ter sido uma criança ligada às artes, claramente — gostava muito de cantar e andava na música, era um bom palhacinho enquanto criança — a dada altura, houve um período a nível escolar, também fruto de ter sido vítima de bullying na escola, em que acabei por me fechar um bocadinho mais e, consequentemente, acabei entrar numa actividade desportiva que me validasse um bocadinho no meio dos meus colegas de turma, no 2.º ciclo, no 5.º, 6.º, 7.º anos. Depois, estive uns largos anos a fazer natação de competição que me deram muito prazer inicialmente, mas que acabaram por entrar num lugar isolado e solitário. A dança vem pelos 15, 16 anos na procura de, exactamente, um lugar de não competição e de auto-expressão. Permitiu-me, através da prática do corpo, que encontrasse novamente prazer. Foi, então, um processo muito tardio, mas relativamente calmo, porque tive logo contacto com rapazes, com raparigas que já faziam dança muito ligada às danças de rua, ainda que na altura de uma forma muito tímida em Portugal, que fazia parte da cultura pop que acontecia na MTV, que acontecia na televisão. Não senti, então, o estigma, por exemplo, que se calhar poderia ter sentido se tivesse ido para danças de salão ou para ballet clássico, porque a dança na qual eu estava a querer entrar era uma dança cool, era uma dança que eu via os meus pares, da mesma idade, a fazer também, e encontrei logo um grupo de pessoas que me abraçaram, completamente, e treinávamos juntos e eu fazia aulas. Então, nos primeiros anos, foi uma progressão quase sôfrega, deliciosa, de fazer uma coisa super nova, descobrir que a conseguia fazer bem, também, porque aprendia rápido. De repente, comecei a dar aulas a crianças de dança, ao mesmo tempo que estudava e, depois, mais a adultos e adolescente. Quando se começa a dar aulas, também se começa a formar e a praticar de uma outra forma a dança, com uma olhar, também, um bocadinho mais externo, não a olhar como é que eu estou a fazer, mas como o outro está a fazer: como é que estabeleço uma comunicação, como consigo com que a pessoa faça de uma outra maneira, através de uma linguagem que nem sempre é fácil. Este processo foi acontecendo ao longo de anos: foi um processo entre os 16 e os 20, 23, talvez, e depois, aos 23, senti que estava já com um nível de bailarino que se podia profissionalizar. Aí é que começo a mudar um bocadinho o meu foco.
Há aquela ideia generalizada de que um bailarino tem de começar muito cedo, por uma questão de se habituar o corpo. Não sei se, aos 16 anos, sentiste que já era um bocadinho tarde, ou foi a idade certa.
Dependendo do estilo de dança que se faz, acredito que há corpos que precisam de ser moldados, há trabalhos que precisam de ser um bocadinho cumulativos à medida que o corpo se vai formando. Não descarto que um trabalho cedo tira partido de algumas coisas, como pode ser contraproducente noutras. No meu caso, acho que a ausência de expressão artística que tinha vivido, ao longo da minha fase pré-adolescente, levou a que quando fosse fazer dança, o fizesse mesmo porque queria, porque estava com uma vontade muito grande de conhecer, tinha um desejo enorme, e era quase um foco tão intenso que a aprendizagem e a submersão acontece de uma forma muito grande, muito rápida, também. Se calhar, se fosse aprender dança muito cedo, não tirava partido de tudo aquilo que estava a receber e, se calhar, a minha atenção era muito mais baixa. Acredito que veio numa altura certa, numa altura limite, caso tivesse sido mais tarde, já não seria possível.
“A ausência de expressão artística que tinha vivido, ao longo da minha fase pré-adolescente, levou a que quando fosse fazer dança, o fizesse mesmo porque queria.”
Durante o teu percurso houve uma transição de bailarino para coreógrafo, também. O que mais lhe interessa no processo de criar uma coreografia? Acaba por ser uma forma de se criarem novas linguagens?
Não sei se consigo afirmar que estou a criar novas linguagens com essa segurança, mas estamos a construir encontros. E, no meu trabalho gosto, muito, de trabalhar com os limites, quando um estilo de dança encontra outro estilo de dança, quando uma linguagem encontra outra e, portanto, o trabalhar sobre esses limites é, também, trabalhar sobre as definições, ou sobre as ressignificações. Quando digo uma palavra, ela tem um sentido e, ao fazer um estudo sobre essa palavra, por exemplo, vamos percebendo que ela não teve sempre o mesmo sentido, que teve conotações ao longo dos tempos, porque se encontrou, porque foi usada em diferentes contextos — acho que com a dança, comigo acontece a mesma coisa. Tenho muita interesse, ao pesquisar um determinado estilo, um determinado movimento ou uma determinada linguagem ou uma determinada dinâmica de movimentos, formas, perceber com o que é que ela está a conversar em paralelo e, por um lado, trabalhar sensibilidades, porque estamos a trabalhar sobre sensações, sobre sensibilidades ou sobre uma expressão que é subjetiva e, ao mesmo tempo, estamos a trabalhar sobre uma filosofia de corpo: esses lugares interessam-me muito porque são lugares que trabalham, ativam outras lógicas que não são as narrativas, nem são as semânticas, são as do foro da sensibilidade, da afetividade, das comunicações não verbais, das tensões invisíveis entre os corpos, das massas de coletivo, da expressão das emoções, sobre o ponto de vista da imagem, do som, da relação da imagem, do som e do espaço.
Para ti, portanto, é mais do que construir uma narrativa através do corpo.
Sim, mais do que isso, sim.
O corpo, a forma como este se exprime, pode comunicar uma intenção, uma mensagem, um statement?
Totalmente, sim. Pode-se encontrar tudo isso. Ou seja, encontra-se, muitas vezes, um statement, existe uma manifesto, existe uma afirmação. No meu trabalho existe, mas ela não é narrativa, nem é totalmente ligada à lógica. Às vezes é, exatamente, questionar essa tentativa de lógica, ou essa uniformização da lógica: os espaços misteriosos e os lugares que ainda não se sabem, ou que que são mais dúbios, cinzentos, que nos atravessam e para os quais nós ainda não temos explicação. Às vezes, quando se fala de amor, não se consegue definir amor assim tão narrativamente. O mesmo acontece quando se fala de morte, ou de vida, portanto, às vezes, são esses conceitos que estão a ser trabalhados em palco, são ideias, são perguntas e que, se calhar, nunca deixam de ser perguntas, mas não precisam de ser narrativas.
“Se calhar, se fosse aprender dança muito cedo, não tirava partido de tudo aquilo que estava a receber e, se calhar, a minha atenção era muito mais baixa. Acredito que veio numa altura certa, numa altura limite, caso tivesse sido mais tarde, já não seria possível.”
Com o espetáculo Bisonte pode-se afirmar que há um statement.
No Bisonte existe dança, mas existe um lugar, eventualmente, mais teatral da construção coreográfica, porque as coisas têm alguma consequência, têm uma evolução consecutiva, porque existe um processo de metamorfose, ao longo da peça, de escafandro para borboleta. Existe também palavra, algum texto: apesar desse texto ser poético, não é um texto narrativo, mas informa e dá algumas balizas sobre o que se trabalha ali, também, sobre que ring é aquele. Como este trabalho provém de um cruzamento com algumas coisas mais autobiográficas, acabo por conseguir encontrar sujeitos, ações, contexto, então, tudo isto dá um bocadinho mais de leitura, de um canal de comunicação com quem vê, em que existe uma viagem consecutiva, causal. Mas também existe muito espaço para se pensar, “eu não sei se estou a perceber isto”, porque quando uma cena é instalada, quando uma situação é instalada, normalmente, ela é instalada para que se tire o tapete, para se fazer o volte face dela, para se ver o lado oposto, ou os desvios que ela cria. Não é para a colocar hermética, é para criar uma derrapagem.
E sempre tiveste esta relação ou esta vontade de expressão através da dança? Engraçado que a tua formação é, até, fisioterapia.
Sim, formei-me em fisioterapia, ao mesmo tempo que estava a fazer dança.
Hoive, sempre, então, este interesse pela actividade física.
Acho que a minha vida sempre me levou a ter uma prática física. Inicialmente, essa prática física foi ligada ao desporto, a uma motricidade e a uma construção de um mapa motor ligado à atividade física e ao desporto mas, também, ao trabalho regular contínuo, de responsabilidade do horário, de haver um compromisso entre mim e o meu corpo, e de uma ideia de progressão. Por um lado, isso é muito empírico, depois, existe um pensamento de saúde e de terapêutica, quase, de anatomia, fisiologia e de motricidade humana, do ponto de vista mais académico, da fisioterapia, que foi muito curioso. Foi muito interessante esse acrescentar, e ao mesmo tempo existe esta prática artística, emocional, desorganizada, meia caótica, de ler, sentir o mundo, de criar experiências, de fazer uma auto-reflexão das experiências, produzir material artístico a partir daí: tudo isso também é uma prática. Há uma atenção, há um aquecimento que se tem de fazer, há um olhar que precisa de ser praticado, há ferramentas que precisam de ser dominadas, técnicas, mas esse triângulo — desporto, saúde, academia e arte — criaram uma forma de olhar que não consigo expressar, totalmente, onde é que ela chegou, mas eu não consigo também ignorar que ela é estruturante.
Como é que caracterizarias a relação do movimento do corpo com o ritmo da música? A forma como o ritmo da música influencia o movimento do corpo? Já pensaste nisso?
Sim, muitas vezes, claro. Uso muito música nos trabalhos que faço e estou sempre a tentar encontrar qual é o tom certo: “Porque é que estou a escolher isto? Será isto uma vontade, um reflexo automatizado?” Quando ouvimos uma batida, é inevitável, ela ativa coisas mas, ao mesmo tempo, aprisiona, também, porque não nos permita acessar a outro tipo de dança e a outro tipo de expressão de movimento. Acho que os sons têm grande impacto na maneira como nós somos movidos. Muitas vezes, faço este exercício ao longo dos trabalhos que fui fazendo: por exemplo, no Brother criei cortes incisivos à música, quase como se fosse um erro, e os bailarinos continuavam a dançar, porque precisava, mesmo, de descolar e de criar uma nova atenção a quem via. Sobretudo, porque essas pessoas que estavam a ver, estavam a ouvir e, portanto, estavam ali numa fantasia, e quando há esse corte musical, é quase como se quebrasse a magia e voltamos a ser convocados a olhar para o movimento e para os corpos que estão ali, connosco, em cena. O trabalho do som também tem essa ginástica e, muitas vezes, sou provocador com a música e com a relação com o corpo: preciso de estabelecer um ponto comum, comunicante, e que nos coloca, a mim e ao observador, numa espécie de “ah, estou a perceber onde é que isto é, qual é o tempo, qual é o espaço”, ou seja, criar bases comuns neste canal de comunicação. Mas, muitas vezes, é para falar sobre outras coisas, não é só para criar uma figuração, ou uma reconstituição de um corpo a dançar aquela música normalmente: isso é um gatilho inicial, é uma muleta inicial, mas que para mim tem muito mais interesse, depois, criar estes desvios, ou criar estes cortes à música, em que depois se fica observar o corpo e o que é que ele está mesmo a dizer. Provocar o encontro daquela música com um outro, com uma outra textura sonora ou musical que não tem relação direta ou imediata, mas que são encontros ou improváveis, ou provocados, ou críticos. Quando eu no Carcaça, por exemplo, junto música electrónica com ritmos tradicionais, provoco encontro de melodias ou de texturas que são mais tradicionais como o Clubbing, de forma que, na verdade, isto não acontece ou isto não está a acontecer e, portanto, são perguntas. São perguntas de caráter sociológico e, ao mesmo tempo, político. Quando o fado, agora, da Ana Moura, por exemplo, encontra as suas relações com os PALOP, isto quer dizer coisas, fala sobre identidade, fala sobre cultura, fala sobre comunidades e sobre fluxos de movimentos que não são controlados, que nós não controlamos: que nós não controlamos também de que forma é que eles se transformam, mas que não podemos negar que eles existem, que se vão contaminar e que se vão entrecruzar. Portanto, com a dança e o som também faço isso, um bocadinho.
“A minha vida sempre me levou a ter uma prática física. Inicialmente, essa prática física foi ligada ao desporto, a uma motricidade e a uma construção de um mapa motor ligado à atividade física e ao desporto mas, também, ao trabalho regular contínuo, de responsabilidade do horário, de haver um compromisso entre mim e o meu corpo, e de uma ideia de progressão.”
Lá está, em Bisonte o contexto passa por um contexto urbano e em Carcaça há uma mistura com o folclore, como é ligar todas estas variantes e ramos da dança?
Fui pudico nesse trato porque o folclore português, a cultura popular portuguesa, acabou por ser manipulada pelo Estado Novo, portanto, eu queria, exactamente, procurar outras coisas anteriores a esta manipulação do Estado Novo e, também, ao mesmo tempo, falar sobre esta cristalização cultural que pode existir e, muitas vezes, é usada por governos autoritários e patriotas. No corpo, procurei trabalhar muito o trabalho de pés, o léxico de pés, de salto, de trote, de galope, que existe muito, também, no folclore português, e nos elementos de dança contemporânea que conheço, e que pratico no clubbing e nas battles, procurei um tipo de léxico, combinação de movimentos que se pudessem assemelhar ao imaginário tradicional do folclore português. Pratiquei muito esse tipo de passos e, depois, progressivamente, fomos aprendendo, também, algumas danças de folclore tradicionais e, a dada altura, já estávamos a misturar os dois léxicos, numa conversa entre elementos de dança do folclore, com um olhar provocador, com um olhar que procura meter o dedo na ferida, ao mesmo tempo que praticávamos as danças que conhecemos do clubbing de uma forma menos purista, ou seja, sem serem feitas, efectivamente, no clubbing ou com aquela música, ou com música sequer. Então, nessa conversa, encontrámos um tipo de dança, um tipo de organização entre os bailarinos em que, no fundo, estamos, claramente, num groove, num tipo de passos e de ritmos que parece uma espécie de eurodance, de techno ou de house, mas no segundo seguinte já parece que estamos num vira ou numa roda. Trabalhar, também, o folclore foi trabalhar a organização do grupo, porque as danças do folclore são, muitas vezes, danças circulares ou danças de cruzamentos: quando vemos um vira de quatro, ou um vira de oito, aquilo são umas linhas que se cruzam, há uma relação de frente a frente ou, muitas vezes, de linha ou de roda. Portanto, foi olhar, também, para essas organizações que vêm de uma forma muito intuitiva das pessoas se virarem umas para as outras, e procurar, coreograficamente, em placo, procurar estas geometrias, como outras, e criar tensões com estas geometrias.
A expressão do corpo também pode ser político, também tem um pendor político?
Tem sempre. Podemos, como artistas, não sermos nós a criar o discurso sobre ele, mas tem sempre um sentido político. Alguns artistas têm esse sentido, delineiam-no, sublinham-no, porque se querem marcar dessa forma e porque, para eles, é importante que o discurso seja lido de determinada maneira, portanto, provocam o discurso para ele criar impacto logo, a partir da sua origem, mas existem outros que vêm com anos de atraso, ou meses, em que o artista produz uma peça, que vem de uma urgência que sente, que não verbaliza directamente, mas constrói objectos sensíveis que percebem o contexto que ele vive. E depois pode haver teóricos e pensadores que fazem o trabalho de ligar este trabalho um bocado inconsciente e do foro do impulso, com o contexto social e político da altura. Acho que não conseguimos sair daí, ainda que ache que precisamos muito de lugares menos funcionais na arte, também. Pensar que arte tem uma função política é, igualmente, trancar a arte. Gosto, também, de associar, sempre, outros layers, pensar que arte tem várias funções e, às vezes, não tem função, porque uma árvore não foi criada com uma função, ela existe, e nós podemos encontrar funções que lhe atribuímos, mas são coisas voláteis, são coisas que podem mudar. Portanto, acho que é por aí.
Tens formação musical, salvo erro. Estudantes piano e violino, certo? Esse conhecimento musical também te é útil da dança ou na hora de criar uma coreografia?
Sou bastante sensível e conhecedor de música, no sentido de consumir muitos estilos de música, mas gosto de coisas que são muito experimentais, também. Sou muito curioso pela maneira como as referências de um determinado artista podem vir de há muito e, no trabalho recente desse mesmo artista, vemos essas referências antigas. Portanto, ao trabalhar com o Luís e o João senti, exactamente – no Carcaça em específico, mas nos Bisonte também – que existe esse cruzamento. Há uma fase em que está um Dj a lançar alguns sons da sua mesa, mas que está ligada a uma bateria electrónica tocada por um dos intérpretes no Bisonte: aquilo cria toda uma envolvência de um tecno house mas, ao mesmo tempo, há uns samplers de Verdi, de música clássica. Há, também, a relação que estabeleço com a Laurie Anderson, do Superman, uma artista contemporânea pós-moderna americana, com a Lambada cantada em auto-tune, no início da peça. A Lambada é uma música brasileira que fala de um desamor, de uma mensagem triste, mas a sua composição é alegre. Esses contrastes, para mim, são muito ricos – criar contrastes é criar profundidades. As coisas não têm uma única direcção, às vezes, é só criar um olhar que lhes permita ver outras direcções, ou que nos permita ter acesso a outros níveis de conversação. Quando se fala do folclore português, ou quando se fala da relação da euforia com a melancolia no Bisonte, como é que a melancolia vai desencadear estados de euforia? De onde vem? Porque é que a Lambada, que é triste, canta-se como uma música alegre? Precisamos de purgar o quê, precisamos de limpar o quê? Se calhar, eles têm mesmo relações. E não são contrastes, são sabores.