Rita Vian não quer deixar nada por dizer
Rita Vian é uma mulher de muitas palavras. O concerto que deu no Lux, em Lisboa, no passado dia 7 de Dezembro, em jeito de apresentação do seu primeiro longa-duração, SENSOREAL, começou logo pela palavrosa “Animais”, recheada de frases abundantes e vívidas, com uma entrega e dicção que devem muito à poesia urbana ou à cadência do rap. Os seus agradecimentos entre canções prolongam-se com pequenos detalhes e desvios que enriquecem o seu discurso, como se não quisesse deixar nada por dizer. As palavras parecem brotar de si como de uma fonte: de forma natural, ocasionalmente turbulenta e levemente imperfeita, o que as tornam ainda mais especiais. Queria ter o jeito com palavras que a Rita tem para poder explicar aquilo que a sua música tem de especial, mas ainda não assim não deixarei de tentar fazê-lo.
A maioria das suas letras são enganosamente simples, destiladas num estilo conversacional que evidencia uma clarividência incomum na música portuguesa (e não só). No fim, as ideias que as suas frases determinantes deixam em nós são muito maiores do que a mera soma das palavras que as compõem. Vejam-se os mantras de canções como “Temos Tempo” ou “Tentar Sempre” — em que a simples repetição de um par de palavras mostra-nos todas as suas dimensões, todas as diferentes perspectivas pelas quais podemos ver essas mesmas palavras. Em “Eu Deixo”, um dos momentos mais arrepiantes do concerto, “eu deixo” tanto é um aviso como uma expressão de tristeza, uma resignação, uma garantia e mais tudo aquilo que Rita Vian quiser.
Como se isso não fosse suficiente, ao vivo, a artista engrandece aquilo que vai cantando com gestos literais — “Tenho uma sensação fria no meio dos olhos”, e aponta para o meio da sua testa; “O lugar da tua perna ainda me tira o sono”, e levanta a perna, segurando-a com um ímpeto suave, entre muitas outras referências sensacionais. A tangibilidade que as suas histórias já têm em papel e em disco ganham uma terceira dimensão com esses pequenos gestos, espelhos de um quotidiano partilhado por qualquer um de nós naquela sala. Mesmo quando não representam nada em concreto, os movimentos das suas mãos marcam o ritmo e atribuem mais peso às palavras que ouvimos.
A certa altura do concerto, Rita agradece-nos por termos escolhido passar a noite consigo. Se a sua música muitas vezes acompanha o nosso dia-a-dia sem a atenção que merece — seja “a cozinhar, a limpar a casa, a conduzir” —, a nossa escolha consciente de parar e dedicar-lhe indivisa atenção ao longo de uma hora e dez minutos, como público, foi muito apreciada pela artista. Colocando-se no nosso lugar, fez todos os possíveis para corresponder às nossas expectativas. A jogar em casa, a uns meros 3 minutos de onde vive, Rita actuou perante uma sala praticamente cheia, no meio de família, amigos e admiradores expressos. Quando paro para comparar esta apresentação com a primeira vez que a vi ao vivo, em 2022, a diferença é notória. A segurança que agora demonstra em palco é reveladora de uma aparente confiança na sua arte, inteiramente merecida.
Um dos grandes desafios da música portuguesa contemporânea é honrar e reconfigurar o nosso património musical sem soar como uma mera pastiche revivalista. Nesse sentido, Rita Vian pega em elementos que soam familiares o suficiente, mas subvertidos ao seu universo intimista. O ritmo do refrão de “Trago” lembra um adufe rancheiro, pronto para ser acompanhado com um passinho de vira, mas com uma sensualidade inusitada. “Tudo Vira”, canção que terminou o concerto com mais um par de palavras já conhecido dos seus fãs, tem um sintetizador no seu refrão que é como uma melodia folclore minimalista. Entretanto, a canção mais animada do seu repertório, “Deixa-me” — escrita e produzida em colaboração com Conan Osiris — traz o bailarico para o século XXI com uma produção cheia de classe, altamente celebrada pelo público que, de resto, aplaudiu toda e qualquer canção que saísse das colunas da cave do Lux.
Outra coisa que frequentemente se reconhece no cancioneiro português é a pura emoção na voz, particularmente no que toca ao fado, que é uma clara influência na música de Rita Vian. Com um controlo invejável do seu vibrato e uma voz elástica, vai vergando as palavras às emoções, sejam elas devastadoras ou arrebatadoras. No primeiro lado do espectro, tivemos logo a terceira canção do concerto, a triste e esparsa “Ir Embora”, habilmente dedilhada na guitarra por Manel Ferreira. A certa altura, quase achamos que Rita começará a chorar enquanto canta, primeiro suavemente e depois com garra, “eu só quero ir, só quero ir, só quero ir, eu só quero ir embora”. Foi apenas o primeiro de vários arrepios da noite.
Num instante, tudo se passou, mas não sem passarmos pela intemporal “Sereia”, pela fumarenta e belíssima “Vida a Dois”, pela balsâmica ode à saúde mental “Cuido de Mim” e pelo gancho direito que é “Tua Mão”, canção de uma agressividade delicada, uma verdadeira pérola cujo poderio é fácil de entender, mas difícil de explicar. Por isso não o fazemos, simplesmente fechamos os olhos e tentamos abanar a cabeça ao sabor do seu ritmo metralhado. E, no fim, nada ficou por dizer.