Em ‘Veteran’ de JPEGMAFIA a música hip hop não tem limites
O hip hop é o género musical que mais sucesso tem visto nos últimos anos, e nunca houve uma oferta tão grande de música para os mais variados gostos dentro deste género. Mas há um ênfase na música trap, em termos de popularidade e oferta, que parece reger-se mais pela qualidade do seu instrumental do que o seu conteúdo lírico.
Consequentemente, as grandes músicas de hip hop que chegam às massas apresentam letras mais pobres, menos desenvolvidas, com as batidas a dominarem o espaço auditivo. Alguns tentam contrariar essa tendência, e um desses artistas é Barrington Hendricks, o rapper mais conhecido como JPEGMAFIA, que surge das profundezas do rap underground para mostrar uma abordagem fresca e pouco convencional a um género que parece cada vez mais “entupido” por música sem conteúdo. O seu objectivo é mostrar que mesmo num meio que privilegia a escrita vazia isso é só uma opção, é possível unir as duas componentes do hip hop e ambas serem apelativas. Para o mostrar, insulta tudo e todos com ironia e cruel humor distribuídos ubiquamente, parecendo querer alienar qualquer um que se “atreva” a ouvir a sua música, seja pelas letras tumultuosas e complexas ou pelos instrumentais que por vezes abraçam as tendências actuais sem descurar o que veio antes. No seu álbum de estreia Black Ben Carson, o rapper mostrou um conjunto de temas densos e mais longos, com barras potentes e agressivas a criticar o status quo da cultura hip hop e do país em que vive. Mas é em Veteran, álbum lançado este ano, que vemos JPEGMAFIA surgir verdadeiramente como um dos rappers mais interessantes da música experimental, com rimas meticulosas e flows variados envolvidos por instrumentais ocasionalmente desvairados de hip hop lo fi bem produzido no estúdio caseiro do artista americano de Baltimore.
Neste álbum, há um redemoinho de ideias e sonoridades que mostram distintivamente JPEGMAFIA. O artista desdobra-se numa multitude de géneros, combinando eficazmente várias influências como noise, música electrónica e música lo fi, sempre com o hip hop como base para tudo o resto. A tríade de temas que inicia o álbum mostra a versatilidade de JPEGMAFIA enquanto artista. Somos recebidos por “1539 N. Calvert”, uma das melhoras batidas de Veteran. Com um beat leve lo fi Peggy introduz o ouvinte ao álbum e à sua pessoa com muito braggadocio, num tom agudo e resoluto, e com barras a mostrarem-nos quem é. “Thug Tears” guia-nos de forma acolchoada para outro ponto no espectro da música hip hop, com um instrumental sedutor com momentos de maior abrasão e uma entrega distinta nos três versos que a compõem. E “Real Nega” arrebata o ouvinte com uma letra e flow esmagadores e violentos (“AR built like Lena Dunham/When I shoot, I don’t miss”), e um instrumental tribal cheio de força e complementado por uma sample “louca” de “Goin’ Down” do rapper Old Dirty Bastard, piscando o olho a outro exemplo de um artista à parte na história do hip hop. Este momento não é um caso isolado em Veteran: “DD Form 124” lembra “Eye”, do mítico Madvillainy de MF DOOM e com produção por Madlib, com uma voz feminina a dominar grande parte do tema e Peggy a discutir as dificuldades que enfrentou enquanto militar (“I’m doing favors for petty pay”, “I am more Hades/Than Heracles”)
Os instrumentais de Veteran revelam um artista que conhece bem o género que emula. “Macalay Culkin” presta uma homenagem ao boom bap e ao hip hop de outros tempos e “Panic Emoji” mostra que o artista não é alheio ao fenómeno trap. Mas ainda que navegue por esse estilo, fá-lo pelas próprias mãos: nesse tema, associa uma batida típica de trap a uma letra mais íntima sobre ansiedades, depressão, um estado de espírito nefasto e hábitos pouco saudáveis, uma aproximação da arte ao homem que a expressa. Em “Rainbow Six” vai mais longe, é um tema sinistro, auxiliado por uma sample suplicada que confere uma dor verdadeira às ameaças do trap, não tão polida e produzida como noutros temas deste género, como se a realidade turbulenta que serve de tópico para muitas das músicas de fosse aqui mostrada numa forma mais pura e sem sanitização. Nota-se o bom ouvido de Peggy mas também a sua vontade em construir para além do corrente, através de músicas como “Williamsburg”, de ambiente pesado e uma atmosfera perfeitamente dançável, ou da violenta “Baby I’m Bleeding”, uma tema de destaque em Veteran, em que é notória a destreza lírica do rapper, que rima por cima de algo tão pouco usual com uma intensidade acérrima.
Depois de ouvirmos Veteran, a conclusão é que no que toca à música de JPEGMAFIA tudo é possível desde que seja bem feito. “If I wanna spit straight bars and then put a country song in the middle of my shit and then turn it into an electronic song or something, I can do that”, disse o rapper numa entrevista. Não há regras que prendam as rimas, as batidas ou tudo o resto que se ouve no universo do álbum. Não é para todos mas qualquer fã acérrimo de hip hop consegue reconhecer valor neste trabalho. Está tudo lá: as barras bem estruturadas, as batidas inventivas e flows variados e adequados ao ambiente instrumental que complementam. É claro depois de o ouvirmos que JPEGMAFIA consegue rimar por cima de qualquer tipo de batida, ajustando-se ao ritmo ou à ausência dele sem nunca comprometer a qualidade lírica que caracteriza os grandes clássicos do hip hop. Ao mesmo tempo, produz temas de forma arrojada, abrasiva e muito pessoal, sem grande preocupação como é recebido: “Fuck a blog, fuck a fan, hope my record get panned/ Least I made you niggas dance”, ouve-se logo no início de Veteran em “1539 N. Calvert”. O que quer com a sua música é uma reacção, algo de intensidade favorável ou oposta despoletada pela sua música quebradora de limites e fronteiras sonoras. Quer que os ouvintes sintam algo em relação ao que ouvem. Porque o que ele sente, ainda que exagerado, transparece claramente na sua obra.