Wenger e a alegoria das relações humanas
Arsène Wenger vai deixar o Arsenal.
Nasci no ano de 1995, um ano antes deste treinador francês assumir o cargo de treinador do clube londrino. Acompanhei fielmente, até na qualidade de adepto, a relação de amor que Wenger estabeleceu com aquele emblema, umas das referências enquanto crescia. Os românticos do futebol, aqueles que escasseiam nos dias de hoje, suspiraram desde o primeiro dia com o futebol encantador e deleitoso que os magos da bola iam protagonizado. Não só dos Henries, dos Pires, dos Vieiras, dos Fábregas e dos Van Persies se fizeram as serenatas na Ópera de Highbury e na modernizada Emirates. Foram sinfonias que entoaram com jogadas de encher o olho, com aquele encanto que, nos primeiros tempos, ia gerando uma quantidade de troféus proporcional à seleção de sensações prazerosas que se ia sentindo enquanto se via aquele futebol.
Todos chorámos quando, em 2006, pela primeira vez na final da Liga dos Campeões, quase toda a equipa dos Invencíveis de 2004 (campeões sem perderem qualquer jogo) se digladiaram contra o ressurgente Barcelona, com a magia de Ronaldinho e Deco, com o brio de Xavi, com o virtuosismo pueril de Iniesta, com a raça de Puyol, com o faro de Eto’o. Chorámos porque vimos o Arsenal, aquela equipa que nos havia apaixonado de fio a pavio nos concertos britânicos, rumava à já prometida glória europeia, e o víamos fracassar. Com a adversidade de jogar com 10 durante grande parte do encontro, ainda se viram na frente do marcador. No entanto, o poderio emergente daquele Barcelona, que receberia o testemunho de equipa que nos enfabulava no mundo dos contos dos onze contra onze, seria demais para suportar uma história de fadas com obstáculos a mais.
Desde então, entre pontuais exibições que remontavam aos tempos de glória daquele fulgurante e asfixiante Arsenal, dispersou-se o sentido futebolistico. Havia-se dissipado aquela aura expoente, que o coração compreendia como a realização do seu compromisso com a felicidade. Os protagonistas foram partindo, e somente as memórias foram sendo preservadas. Aqueles que partiam para outros rumos nunca esqueceram, porém, aquele que os encaminhara para tamanho prazer em conduzir a bola para a baliza contrária. Esse homem tinha sido Arsène Wenger, o imortalizado treinador dos canhões londrinos. O mesmo que, desde 2005, só voltaria a sentir o sabor de um troféu após nove anos da última taça. Era uma seca muito profunda, que um português havia contribuído para que se prolongasse por quase uma década. Sim, aquele que havia aprendido a jogar com menos brilho para mais eficácia. Nem mais nem menos que José Mourinho, que sempre teve uma relação tensa com Wenger, daquelas que vamos tendo ao longo da vida, com as quais nunca encaixamos.
Em 2018, e na esperança de chegar ao tão ansiado troféu europeu, Arsène decide pôr um ponto final nesta conexão já rara no mundo do desporto, no mundo das equipas, no mundo da vida. Ligações por mais de 20 anos são cada vez menos comuns, muito por via de variáveis que não conseguimos controlar. Muitas delas movem-se por caprichos, mas também pela permanente falta de algo, pela permanente pressão exterior, pela exigência de quem somos ou do que o outro é. O burburinho aumentou quando a relação não conferia os frutos habitualmente frescos e maduros que dava nos tempos daquela espontaneidade maravilhosa. O burburinho que já começara há uns anos conheceu o seu término, com a tomada de uma decisão racional e concreta. Era a hora de cada um partir para o seu caminho. O que é isto mais do que qualquer relação humana? Não mais do que, ao invés de mover somente umas quantas pessoas, mover muitas mais. Paixões que consomem a atenção humana, que a mobilizam para uma identidade cada vez mais vincada a partir de elementos externos que internos. Por este caminho vertiginoso, também as relações humanas são mais de conveniência que de profunda e autêntica sintonia e entrega.
Arsène Wenger partiu e, com ele, os amparos do sonho que apontava o regresso daquele Arsenal invencível, intocável, intransponível, que sabia ser duro e pragmático, mas muito mais enleador e apaixonante, majestático e deslumbrante. Arsenal sem Wenger e Wenger sem Arsenal será uma realidade difícil de percecionar, muito por via da tão típica e tradicional habituação que vamos sentido naquelas ligações de longa data que a vida aceita e na qual se deixa ir, mesmo que à deriva. Se o Manchester United não respira a sua essência sem Sir Alex, se o Liverpool não a respira sem Gerrard, se a Juventus não o fará sem Buffon, se a Roma não o faz sem Totti; enfim, se demais instituições não se desconstruírem e aceitarem os seus novos caminhos, não saberão adaptar-se aos tempos e muito menos às novas formas de sentir e de amar. Por muito fulcral e fundamental, simples e prático que seja amar, o prazer da experiência, do imediatismo, da velocidade e da totalidade é cada vez mais exigente e individualista, mesmo que deseje tanto ou mais partilhar e ser feliz com outrem. Para o Arsenal e para Wenger, é uma nova página, uma oportunidade para viver de forma diferente, oportunidade essa que deve ser louvada e agradecida. Os tempos de mudança são sempre bem-vindos para aqueles que gostam de viver tudo, em tudo, com tudo, mesmo para aqueles que são imortais.