Dante e Benigni: o amor tem de ser forte e frágil, útil e inútil

por Ana Monteiro Fernandes,    20 Outubro, 2024
Dante e Benigni: o amor tem de ser forte e frágil, útil e inútil
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Há simplesmente acontecimentos costumeiros que nos acontecem na vida e mais vale aceitá-los. Porquê? Porque sim. Jornalisticamente, bem sei que este argumento de nada vale, mas a vida, além de notícias, é também ela feita de poesia que vem ter até nós e nos oferece a beleza que vale só por ela própria. Se a tentarmos explicar, infelizmente, essa beleza perde-se um pouco, a menos que já tenhamos aprendido a sermos nós próprios um poema, mesmo sem termos escrito um verso durante toda a nossa existência. Se a vida fosse justa, uma pessoa seria equivalente a um poema e seríamos todos detentores do segredo da poesia. Recordemos, também, as sábias palavras de Agostinho Silva: “Quando acabássemos deviam dizer, ‘morreu um poema’. Esse devia ser o objectivo da nossa vida.”

Enquanto não descobrimos esse segredo, como meros mortais, e caminhamos por entre uma selva escura, escutemos os especialistas, os poetas, porque só eles conseguem apanhar a poesia que já navega nas ondas do ar. “Palavras que naveguem nas ondas do ar” talvez seja a expressão certa, salvo seja a metáfora, porque o próprio Roberto Benigni também é da opinião de que toda a grande poesia deve ser lida em voz alta, porque vem do som cujas ondas de altura também circulam pelo ar, e remata: “Toda a poesia que não serve para ser lida em alta voz, não é uma grande poesia. É uma das regras mais antigas do mundo, o próprio facto de que a poesia seja cantada.”

Ora, quanto a mim, o que me costuma acontecer é que quando o lado da moeda da vida me pede mais poesia e, por conseguinte, mais discernimento, quem me costuma amparar é, nem mais nem menos, Roberto Benigni e as suas percepções sobre a vida – nunca me falhou. E como falar de Roberto Benigni é também falar de poesia, jamais poderíamos esquecer Dante Alighieri e a sua “Divina Comédia”, uma vez que o realizador d’A vida é Bela e d’O Tigre e a Neve, além de ser um devoto das palavras, partilha com o poeta a região da Toscana como berço e tem-se dedicado à declamação e várias palestras sobre “A Divina Comédia”.

Recentemente, durante uma semana de repouso, dei por mim a tentar ler esta obra e ainda não terminei, é facto. Assim como me entretive a ver algumas dessas palestras de Benigni que estão disponíveis. Por isso, como não tenho a leitura do livro conclusa, este texto serve mais um propósito de crónica, mas há algo, no entanto, que já posso dizer: além do lado religioso, “A Divina Comédia” é sobre a força motriz do amor que tem tanto de salvífico quanto de trágico, tanto de rebeldia quanto de fragilidade que pode doer, tanto de Céu como de Inferno. Benigni pegou no verso “Nenhuma maior dor do que a de recordar tempo feliz já na miséria” e, no meio da exuberância que lhe é característica, levou-o mais além através do seu cinema. Com isso, também se pode dizer que em toda a sua obra, principalmente em “A Vida é Bela” e “O Tigre e a Neve”, há toda uma dissertação sobre o papel do amor, o porquê do amor além da sua inutilidade quando somos levados a pensar que há amor desperdiçado ou que, afinal, não serviu para nada. A rebeldia de Benigni consiste em dizer, precisamente, o contrário, não há amor desperdiçado, não há amor inútil, não há amor que não funcione como boomerang. Vamos agora tentar perceber como isso se relaciona com a “Divina Comédia”.

Reza a história que Dante conheceu Beatriz Portinari ainda eram os dois crianças e, desde então, não obstante terem-se visto só mais uma vez e terem, os dois, seguido rumos distintos, com cônjuges diferentes, nunca mais Beatriz abandonou o pensamento do poeta. Quando a “Divina Comédia” foi escrita, já Beatriz não era viva, no entanto, na obra, é ela quem manda Virgílio guiar Dante através do Purgatório e Inferno, até este chegar ao Paraíso onde a sua amada está à sua espera. É desta forma que o florentino, que se coloca ele próprio como sujeito poético, inicia o seu texto lírico numa língua vulgar, a língua toscana, que constitui a base do italiano moderno: “No meio do caminho em nossa vida/eu me encontrei por uma selva escura/ porque a direita via era perdida/Ah, só dizer o que era é cousa tão dura/ esta selva selvagem, aspra e forte/que de temor renova à mente a agrura!”

O sujeito lírico sente-se perdido, não consegue sair da selva escura na qual se encontra e só o facto de a relembrar lhe é penoso. Ao tentar sair da selva encontra uma loba, uma pantera (na tradução de Vasco Graça Moura consta onça) e um leão que o fazem recuar outra vez. Eis que Virgílio, a pedido de Beatriz – após Santa Luzia a ter questionado se não faria nada por quem a amava tanto, depois da própria Santa Luzia ter sido incumbida pela própria Virgem Maria para interceder pelo seu devoto – lhe surge para o colocar de novo no rumo, na via certa, para poder sair da selva escura na qual se encontra e na qual corre o risco de se perder para sempre. Para isso, Dante teria de passar pelo Purgatório e pelo Inferno. Há um momento em que o florentino hesita e duvida se será capaz, se será merecedor desse empreendimento. Só após Virgílio lhe dizer que o guiaria porque Beatriz lhe o havia pedido, é que o poeta, então, ganha novo fôlego no seu rumo. Reparemos que aqui há três mulheres que intercedem por Dante, formando para isso uma potência feminina que o resgata. Por isso Benigni também diz que esta obra é, sobretudo, sobre a potência do feminino.

Há quem defenda, pelo menos assim o fez um tradutor e poeta estado-unidense da Divina Comédia, Robert Pinsky, que Dante estaria a passar por uma depressão na altura, daí a metáfora da “selva escura”, e escreveu a obra poética para regressar à vida e se salvar dessa depressão. Na tradução de Vasco Graça Moura consta como nota: “A selva representa simbolicamente os erros e desvios da condição humana.” Certo é que para alcançar o Paraíso e ver Beatriz, ou seja, para sair do estado em que se encontrava, teria de passar pelos círculos do Inferno. Benigni acredita mesmo que ele tenha estado naquele Inferno, mesmo que não estejamos a falar de um sentido literal, mas o que o fez então fazer este empreendimento? O amor que ainda sentia por Beatriz? A mesma Beatriz com quem Dante não pôde ficar na vida real? Qual então a finalidade deste empreendimento todo e da necessidade de passar pelo Purgatório e pelo Inferno? Porquê a sua salvação?

Pode-se dizer que Benigni utilizou este mesmo dilema ou estratagema para a realização d’A Vida é Bela e, de forma mais directa e premente, para a realização d’O Tigre e a Neve. Os protagonistas passam ambos por uma guerra e há uma abnegação por um amor que não atinge o seu sentido prático, que é o ficarem todos juntos no final. No primeiro caso, o pai abdica da vida num campo de concentração para salvar a família e estes poderem viver. No segundo caso, há um protagonista, Attilio de Giovanni, capaz de atravessar por uma zona de guerra para encontrar o único medicamento capaz de curar a mulher que ama e com quem sonha todas as noites, mas sem o intento ou sequer a tentativa de ficarem juntos, uma vez que a personagem feminina não lhe dá atenção nesse sentido. E mesmo assim acaba por dizer que se a pessoa que ama morrer, mais vale encartar este mundo, as estrelas, o céu, o sol, tudo, porque mais nada valeria a pena. Qual a utilidade destes estados emocionais então? Foi desperdício ou aproveitamento? Porque é que Benigni diz que não há amor desperdiçado quando sabemos que, muitas vezes, confundimos o amor com a necessidade de se ser amado, o amor com a própria ideia do amor. Quando sabemos que o amor, afinal, pode ser uma construção nossa?

Talvez a dificuldade em entender isto advenha do facto do amor, por si só, exigir um estado de fragilidade, um estado de vulnerabilidade que não pede por mais nada, ou não exige mais nada para existir, apenas está lá e sabemos que respira. Um estado de vulnerabilidade que tem tanto de leve como de peso porque nunca sabemos se a lágrima que vertemos por amor vai servir para regar um jardim ou vai cair em cimento puro. E mesmo que caia em cimento puro, nunca sabemos o que vai acontecer a seguir, apenas que a lágrima tem de cair, o que traz alívio e inquietação. Se ela não verter, então também o Paraíso não nos mostrou as suas estrelas e mais vale encartar o mundo, mesmo que o amor signifique saber deixar ir. Só o amor capaz de mover o sol e as estrelas é aquele que ama e ao mesmo tempo deixa partir, e é por isto que ninguém entende ou sabe o que é o amor.

Quando amamos dever-se-ia dizer, “nasceu um poema”, falta só aprender o que se deve fazer com isso, o que tem tanto de trágico quanto de belo. E assim, tal como Dante ousou chegar ao céu mesmo com a promessa de uma despedida, ao menos que façamos mover os corpos celeste uma vez na vida, para podermos então entender o que este verso significa: Não há “nenhuma maior dor do que a de recordar tempo feliz já na miséria”, mas também não há tão magnífica nostalgia. Há beijos, toques breves cujas lembranças duram uma vida inteira, mesmo que já não estejam ao pé de nós fisicamente. É a tal ideia de que uma centelha, mesmo que breve, pode deixar a sua marca e durar. É preciso deixar a centelha arder, mesmo que seja só por um segundo, mesmo que seja no meio do caos, da guerra que é este mundo. O sabermos quanto dura, se vale ou não a pena, é só o risco que estamos dispostos a correr.

Reparemos no final d’O Tigre e a Neve. A personagem feminina não suspeita, uma vez que estaria inconsciente, que teria sido a personagem de Benigni a ajudá-la. Só quando esta se encontra a descansar e Giovanni se debruça para lhe dar um beijo na testa e, por conseguinte, o seu colar lhe toca na face, tal como acontecia enquanto estava doente, é que, num rompante, percebe que teria sido ele a estar ao seu lado e a sua cara resplandece num sorriso. Mas nenhum dos dois espera ou anseia nada. Ela sorri, ele diz adeus de um modo que tem tanto de desajeitado e frágil, quanto de ternurento, e assim acaba o filme, sem de facto sabermos o que acontece depois, ficando tudo em aberto. N’A Divina Comédia também houve um sentimento que se sublimou, embora entre duas almas em planos diferentes. Só sabemos que, mesmo assim, Dante pôde ver os astros, voltou ao seu rumo e não trocava isso por nada. Ficou salvo. Saber a conclusão das coisas, razões ou designíos finais? O que será, será. O amor nasceu para ser rebelde.

“Dama que em esperança se me erige/que aceitaste, por me salvar, no rude/ inferno deixar marca onde ele aflige/de tantas cousas quantas eu ver pude/de teu poder e tua grã bondade/ eu reconheço a graça e a virtude./ De servo me trouxeste à liberdade/ por todas essas vias por que pode/isso fazer tua potestade.”

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