Por onde andas, meu futebol?
O meu futebol, aquele que realmente amo e aprecio discutir, está perdido. Está a vaguear, a pairar pelos rumores da arbitragem, dos moluscos mais ou menos explícitos e tentaculares. Não quero saber disso, sinceramente. Estive anos a bater-me perante um sistema justo, equitativo e escorreito, mas não desta forma. Tudo aquilo que é um desaire vê-se justificado e delimitado a circunstâncias paranormais, indefinidas e pouco claras no recinto da definição de um jogo bem jogado, em que a técnica, a tática e a disposição física e mental falavam mais alto.
Não gosto de me empossar do que seja, nem mesmo do futebol, nem mesmo do meu clube. Sinto a elementar pertença àquele conjunto de valores, ao conjunto de experiências vividas em conjunto com as minhas emoções na flor da pele. Tudo isto se aplica, como é evidente, a todas as modalidades desportivas, com grande parte delas a serem representadas pelo clube que mais aprecio, que mais estimo. O extradesportivo interessava-me pouco, embora mantivesse o olhar desperto para aquilo que se passava dentro das linhas, e que enviesava, de forma evidente e indiscutível, o que se sucedia na força maior da atividade.
Contudo, chegamos a uma altura em que já se justifica a entoação de um requiem em relação à forma como se encara o futebol. A obsessão transcende as quatro linhas, e assume novas dimensões, passando para as oito, que aliam os tentáculos dos tais moluscos aos relvados que se sobrepõem e que se mesclam com tamanha mácula para o êxito da atividade desportiva. As instâncias jurídicas existem para saber fiscalizar, constituir arguidos e condenar/inocentar aqueles que são escrutinados e se veem como objetos de deliberação judicial. Não é necessário massacrar os que usufruem o desporto pela sua essência, pela beleza do espetáculo, pelo encanto do entretenimento. As conspirações acumulam-se, tal como na discussão política e tecnológica. Por mais fundamento que têm, não podem nem explicam, em exclusivo, o que se proporciona nos palcos das incidências desportivas.
A finta de pés, de braços e de espaços foi trocada pela finta à discussão desportiva, em que se enche de louvores aquele que se dá de corpo e alma ao jogo, aquele que se funde com a superfície do seu trabalho, que assume a condição orgulhosa de paixão. Tudo isso se esboroa perante o zumbido ruidoso de uma campanha de campanhas, que afugenta o apreciador do desporto para as taxativas e taxadas sondagens da verdade desportiva. Um conceito que poderia ser desmistificado com a serenidade que se lhe merece, mas que não o é pela constante deturpação, em que as fundamentações só geram mais polemização. A pobreza do desporto está à vista de todos, em especial a do futebol. É nesta espiral de mediatismo que se centra a depreciação daquilo que é o perfume futebolístico, em que tudo se torna possível, e em que não são os dólares e as libras a mandar na cabeça e na alma dos atletas. É, sim, a identificação pelos valores mentais, culturais e emocionais com aquilo que representam, com aquilo que fazem, com aquilo a que se propõem. A gratificação do seu esforço revê-se num vencimento justificado e apropriado, mas que não deveria de transcender perante um núcleo duro e amplo de uma população empobrecida e desnutrida.
O meu futebol empobreceu. Já o acompanho há quase 16 anos, e é por justa causa que argumento o que argumento. Acompanho-o pela paixão que me foi incutida, como a muitos e tenros jovens que sonham representar as cores dos seus clubes, tanto no banco, a dar indicações aos protagonistas, como a ser um destes, defendendo a glória e faturando com orgulho, a levantar uma plateia repleta. O futebol, nesta perspetiva, é, também, arte. Mexe com as emoções daqueles que assistem, representa-os, em muitas das ocasiões, e associa-os numa dinâmica de pertença imensa, que, quando transpõe as delimitações morais e éticas estabelecidas normalmente, coloca em risco a integridade física e emocional da alteridade. Mas o meu futebol ainda se arruinou mais por se justificar com a pobreza mais fácil, ao invés da riqueza da essência do desporto, razão pela qual tanto gerou paixão. Esta relação que os romantistas estabelecem com a modalidade remonta aos romantistas da conjugalidade, em que se procura o expoente da emoção, e não se procura adaptar à funcionalidade de uma relação, para além de se evitar a autoanálise, e de se recair numa descontente e descrente sensação de que o elo perdeu a sua preciosidade.
Traço, desta forma, o meu lamento em relação ao que se perdeu da minha ligação para com o (meu) futebol. Perdeu-se aquele charme de outrora, que regressa em fogachos, e que me desvenda o insólito, o inacreditável, o belo, o ardente. Perdeu-se o rumo constitutivo de uma discussão assídua e saudável, com um gosto a competição, mas com o sentir da bola a rolar, do apito a soar, das malhas a abanarem, dos ferros a tremerem. É isso que mexia, no meu tempo, com o fervor. Os auxiliares responsáveis pela gestão do tempo e das incidências faltosas da partida não podem, nem devem ser exclusivos detentores de uma mágoa gerada pela falha e pela falta ao compromisso. Não há moluscos que o possam justificar, senão olhar para dentro, e examinar aquilo que falha. Tal e qual como em nós, quando erramos, e que, tendencialmente, procuramos apontar para fora aquilo que não queremos perspetivar dentro das nossas lacunas. Também é assim o futebol, à imagem da arte, à imagem da sociedade, à imagem da ciência, à imagem da vida. Os padrões repetem-se, e não é por acaso. Os algoritmos da emoção e da razão humanas equivalem-se em muito daquilo que são as suas expressões. O futebol, tal e qual como o resto, também descaiu. No fundo, é a proporção da realização que tarda em ser a de outrora, em que o sonho comandava a vida, e não mais os erros de uma conspiração que descaía aos valores da idealização do futebol. Fizemos dele aquilo que fizemos com muito da nossa conduta, do nosso ser e do nosso estimar. E foi assim que ele empobreceu.