Nerve mostra-se mais incisivo do que nunca em ‘Auto-Sabotagem’
“Não sou nada/ Nunca serei nada/ Não posso querer ser nada”, assim começa Tabacaria de Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa e a faceta mais exacerbada do poeta. É emotivo, expressivo, e a sua escrita revela uma personagem conturbada, assolada por males de alma e de corpo. Os versos niilistas e depreciativos que nos introduzem ao poema não destoariam de uma letra de Nerve, alter ego de Tiago Gonçalves, rapper, produtor e ilustrador português. A personagem desenvolvida por Tiago veste-se de sombras, cuspindo barras tirânicas e megalómanas com uma tremenda noção de rima e jogos de palavras impressionantes, tudo isto temperado com um humor visível. Há rappers que são poetas. Mas há poucos poetas que são rappers, e Nerve faz indubitavelmente parte desse grupo restrito de artistas.
Editou o seu primeiro longa-duração em 2008, Eu Não das Palavras Troco a Ordem, que o mostrou como um contador de histórias, um jovem com muita qualidade ainda nos primórdios da sua exploração musical. Sete anos depois edita o seu segundo álbum Trabalho & Conhaque ou A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança, e nunca a linha entre poesia e hip hop foi tão ténue como neste trabalho. Músicas como “Gainsbourg” ou “Conhaque” são uma ode à excelente poesia, mais declamadas que rimadas, denotando um estilo muito próprio de um dos rappers mais curiosos dos últimos tempos, e músicas como “Monstro Social” ou “Trabalho” pintam a sociedade através de uma lente visceral mas com a suavidade que só a boa escrita é capaz de transmitir. Os seus instrumentais também são distintos, discretos, permeados por uma atmosfera de negrume e que cumprem o seu objectivo principal: a música ao serviço do poema e em sintonia com o mesmo.
Neste panorama de hip hop, Tiago subsiste no subterrâneo. Das profundezas desse submundo surge Auto-Sabotagem, o EP que apresenta este ano, produzido, gravado, misturado e ilustrado pelo próprio (apenas a masterização ficou a cargo de outro interveniente, Zé Quintino). Nele, o personagem que desenvolveu está apurado, de língua quente e na sua melhor forma até ao momento. Ao longo do projecto relembra-nos o seu propósito, a sua existência, e Auto-Sabotagem funciona simultaneamente como um cumprimento aos que agora o descobrem e um recapitular para quem já o conhece. “Deserto” introduz o EP de forma adequada, como se Nerve tivesse acabado de voltar a este mundo, anunciando o seu retorno com pujança, acompanhado por um piano que surge directo de um saloon assombrado, e pelo raspar incessante de uma garrafa de vidro, demonstrando mais uma vez a atmosfera industrial que se sente nos instrumentais de Nerve.
A parte instrumental é cada vez mais distinta, e enaltecida em Auto-Sabotagem pela adição do saxofone, cortesia de Notwan, um belo acrescento ao mundo mais digital e inóspito que serve de banda sonora à poesia de Tiago, especialmente em “Chibo”. O instrumento torna a música mais “boémia”, torna mais jocoso o instrumental tenso da música mais característica do rapper neste projecto. Dispara em todas as direcções, equiparando as suas rimas à pintura de Jackson Pollock e sem esquecer o humor a que já nos habituou. Vê-se como um delator da sua mente, do inconsciente que torna real no papel. “Breu” é o seu manifesto e, numa das melhores junções entre voz e instrumental do EP, Nerve descreve o seu propósito na arte sonora (“Faço música que mói ouvintes (..)/ Faço música para ler com olhos de ouvir”). “Loba” é um desabafo violento e sincero sobre a indústria musical que privilegia o lucro em detrimento da arte (“Pois que morra/ Essa maldita loba que mal amamenta/ E concentra atenções no próximo promissor bebé proveta”), uma declamação sentida e a música mais séria do projecto, com um solo exacerbado de saxofone que conclui a mensagem assertiva de Nerve.
As músicas revelam um personagem mais confiante e com mais auto-estima. Na essência tudo continua na mesma, mas a entrega do rapper é mais resoluta, sente-se mais primor, momentos calculados, palavras que parecem mais cuidadosamente seleccionadas para formar frases com rimas complexas e engenhosas. Em “Plâncton” cospe barras fanfarronas e insultos devastadores sob um instrumental possante. O refrão é poderoso e os versos são mais contidos mas não mais inócuos, com referências que vão desde Zoidberg da série Futurama a David Bowie, misturadas com jogos meticulosos de palavras pelo meio (“Senhor Columbine em duas escolas/ Os colegas que cavem as suas covas”). É apanágio do hip hop este tipo de abordagem, abafar os adversários, mas é visível em “Plâncton” que é mais do que isso: não se limita a mandar dicas, destrói com um tom azedo e acutilante, percebemos pela sua cadência um desprezo focado. Da mesma maneira, em “Simone” ouvimos o rapper descrever uma rotina violenta que invoca elementos de horrorcore, num tema assustador de batida ténue que dá mais espaço para as palavras de Tiago sobressaírem.
Na música “Chibo” há uma passagem que é especialmente engraçada e honesta sobre a música de Nerve. Ouvimos alguém dizer ao artista “Não te deixes afectar, puto. Tu não bates, mas és o melhor”, mostrando a dicotomia da realidade da música de Nerve. É dos rappers com melhores rimas no hip hop português actual numa altura em que assistimos a um minimalismo da parte literária do género e duma resposta positiva das massas a esse processo. Auto-Sabotagem é assim um título perfeitamente adequado para este EP: é a escolha de Nerve continuar a fazer o tipo de música eclética que os fãs conhecem e estimam, mas especialmente o tipo de música que ele quer, sem nunca se comprometer a tendências e caminhando numa direcção cada vez mais sua e sob a qual tem cada vez mais controlo. Desbrava terrenos já conhecidos através do seu método musical progressivamente mais refinado, e mostra que a poesia no hip hop está bem viva e recomenda-se.