Cícero deslumbrou a audiência do Capitólio
Numa noite em que Lisboa se viu repleta de espectáculos musicais, com difíceis escolhas para os melómanos que a habitam, o aprumado Capitólio tornou-se na casa perfeita para acolher Cícero e a banda que o acompanhou, os Albatroz. Quer a relação próxima que o artista brasileiro tem vindo a construir com Portugal, quer a simbiose que encontra com os membros da sua banda, quer o facto da sua música ser convidativa e intimista, ou até que o final de Primavera nos tenha trazido uma noite formidável; talvez todos estes tenham sido factores que contribuíram para a noite especial que se proporcionou a todos aqueles que tiveram o privilégio de estar presentes neste concerto.
Logo à cabeça, “A Grande Onda” – do mais recente Cícero & Albatroz – ditou o mote para o resto da noite. Uns Albatroz perfeitamente sincronizados e incrivelmente competentes trouxeram uma nova dimensão às canções de Cícero, adicionando uma expansividade nem sempre presente no seu som, principalmente nas canções dos seus primórdios. Há que dizer que isto não seria possível sem uma produção de som bem conseguida – e não tenho peneiras no que toca a afirmar que este foi dos concertos que melhor me soou em memória recente. A surpresa do som recheado dest'”A Grande Onda” manteve-se ao longo das primeiras canções, convertendo-se numa certeza ao longo do espectáculo, assim como numa expectativa constantemente suprida por cada canção que se ia seguindo.
Este som rico tornou-se especialmente emotivo e evocativo, deleitando a audiência que se serpenteava de olhos fechados, genuinamente tocada pela doçura do dedilhar de guitarra de Cícero ou maravilhada pela secção de sopros – garantida por músicos portugueses. Entre cada música, o público transmitia esse deleite através de ovações entusiasmadas e prolongadas, às quais Cícero agradecia de forma discreta mas segura, com um carisma adorável, que imprimia ainda mais eficácia às canções. As suas letras simples ganhavam novos traços, uma nova acutilância, quando associadas à figura esguia e alta que ocupava o epicentro do semicírculo da banda por trás de si.
A primeira metade do concerto deu-se principalmente entre o último álbum e A Praia. “À Deriva” e “A Ilha” exacerbaram a sua componente mais determinante – os instrumentos de sopro – que se fizeram ouvir orgulhosamente. “De Passagem” manteve as suas características hipnóticas, materializadas na repetida frase “tudo foi despontando até desaparecer”, ao passo que “O Bobo” teve a ajuda de uma luz azul, que parecia fria e quente ao mesmo tempo, amaciando os contornos dos elementos em palco que nos entregavam uma versão especialmente ruidosa e épica da canção, que ainda assim não se tornou abrasiva ao ponto de afastar alguém, antes atraindo e envolvendo na sua força sonora. “Isabel (Carta de Um Pai Aflito)” foi embelezada com um coro de vozes por parte da banda.
Por muito que qualquer uma das canções soasse bem, por mais ou menos conhecidas que fossem do público do Capitólio, certo é que um grande motivo que lá levou grande parte das pessoas era Canções de Apartamento, o belo álbum de estreia de Cícero. O artista não se fez rogado e entregou-nos, assim de repente e de seguida, “Vagalumes Cegos”, “Tempo de Pipa” e “Açúcar ou Adoçante?”, largamente aplaudidas e entoadas pelos espectadores. É fácil perceber o amor devocional entregue a estas canções, com a sua doçura comedida e beleza melódica.
Claro que o artista também não resistiu – e muito bem – a abrir-nos uma janela para o seu álbum mais intrincado e aquele ao qual nos confessou regressar mais vezes, Sábado. O par de canções inicial fez acompanhar a sua melancolia daquela já conhecida luz azul. “Fuga Nº3 da Rua Nestor” desembocou em “Capim-Limão” como em álbum – com aquela batida suave e guitarra baloiçante – mas fazendo esta última crescer até um clímax mais épico, sofrendo uma transformação à la Albatroz. Estes arranjos são um testemunho da capacidade de compositor e artista de Cícero, capaz de metamorfosear as suas canções dentro do seu próprio género musical. Só alguém com uma capacidade desse género nos consegue dar o concerto a que assisti na quarta-feira passada.
Torna-se complicado descrever um concerto assim sem cair na redundância, pois foi tão consistente que é difícil apontar pontos mais fortes. Mais do que palavras ou conceitos, o que ficou daquela experiência foram os sentimentos e sensações; a comoção de ver Cícero sozinho em palco a dar-nos “Aquele Adeus” ou a já referida especial atenção dada ao som. Decerto a relação entre Portugal e Cícero não terá esmorecido com este concerto, muito pelo contrário.