Como a Mulher deixa (ou não) de o ser

por Miguel Fernandes Duarte,    9 Outubro, 2016
Como a Mulher deixa (ou não) de o ser

Prestes a saber qual será o vencedor do prémio Nobel da Literatura deste ano, revisitamos novamente a premiada do ano passado, Svetlana Alexievich, a Bielorrussa cujo estilo único de não-ficção se caracteriza pela forma como toma a voz das pessoas que entrevista. Uma ventríloqua de quem, de outra forma, provavelmente não veria a sua voz e as suas histórias sair do seu círculo interno.

Neste A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, o mais recente título da autora publicado em Portugal (o primeiro que escreveu), constrói o livro praticamente da mesma maneira como o faz naqueles que por cá já foram publicados, O Fim do Homem Soviético (Porto Editora, 2015) e Vozes de Chernobyl (Elsinore, 2016). Tendo por base uma série enormíssima de entrevistas feitas e gravadas por si a mulheres soldado que combaterem pela União Soviética frente à Alemanha Nazi, Svetlana Alexievich monta um relato conjunto, não só acerca de como era ser uma mulher na guerra, e quais as diferenças no seu comportamento quando comparado com o dos homens, mas também dos profundos efeitos deixados por este conflito na vida de todos os envolvidos que, deformados ou não fisicamente, voltam inevitavelmente deformados psicologicamente.

Svetlana Alexievich, através do seu livro, tenta responder a três perguntas essenciais: o que leva estas mulheres a combater; quais as diferenças entre a guerra destas mulheres e a guerra vivida pelos homens, e como pode existir vida depois de tanta morte. Procura nesta guerra aquilo que define como características mais femininas: os sentimentos, a comoção, a piedade, características mais terrenas. Uma guerra não de factos, estratégias, figuras históricas, mas uma do soldado comum, do que este sentia e da forma como viveu a guerra. Falar do que não era falado na União Soviética, do que custou ao povo soviético a Vitória, da violência por ele cometida em nome dela. É incrível a forma como quase todas as mulheres entrevistadas referem que foram combater porque era necessário. Como podiam ver toda a gente à sua volta a combater e não o fazer também? Não eram aceites (muitas vezes voluntariavam-se ainda como menores) e voltavam a tentar. Quando finalmente conseguiam ser aceites, não aceitavam que lhes quebrassem a felicidade ao não as enviarem para a frente de combate. Queriam disparar, matar, lutar frente ao inimigo. Pelo comunismo, pela pátria, pelo povo, pela família, por todos, quem sabe. Mas viam na morte dos seus opositores um meio para chegar a um fim, de certa forma da mesma maneira que os alemães o viam. Mesmo estando os Soviéticos a defender, a fazer guerra com quem os tinha atacado, a violência era mútua. O livro acaba, no entanto, por fazer mais referência àquela cometida pelos Alemães. A dos Soviéticos também é abordada, nomeadamente mais para o final do livro, mas, também pelo facto das narradoras se focarem mais na violência de que foram alvo, acaba por ser muito mais presente a impiedade com que eram mortos e/ou maltratados os prisioneiros soviéticos, ou como eram imediatamente queimadas aldeias conquistadas pelos Nazis, e quem lá vivia chacinado.

Svetlana Alexievich

Svetlana Alexievich

Ao focar-se no sexo feminino, muito se tem relacionado este livro com uma certa corrente literária feminista, na medida em que se sente a crítica à ideia de muitos homens na altura, de que ter uma mulher no exército, qualquer que fosse o posto, era uma fraqueza, pelo menos quando comparada com um homem que desempenhasse a mesma função (à parte, talvez, das enfermeiras, lavadeiras, padeiras, profissões mais associadas historicamente ao sexo feminino). São várias as entrevistadas que referem o desprezo com que os homens dos seus batalhões as olhavam, ou a forma como nem sequer eram aceites como voluntárias apenas por pertencerem ao sexo feminino. No entanto, o livro (e as suas inúmeras narradoras) acaba por diversas vezes a referir o quão a guerra tornava as mulheres indiferenciáveis dos homens. Uma das entrevistadas, ao referir-se às suas fotografias fardada e condecorada, conta que “O Saúl mostrou-as à nossa neta de seis anos e ela perguntou: “Avó, dantes eras menino?””. A essência feminina perdida com a violência dos actos e das condições, o que, de certa maneira, acaba até por corroborar a ideia de que a guerra era coisa para homens.

Pode especular-se o quão verdade serão as transcrições da autora das entrevistas que fez, quanto daquilo que está passado ao papel terá realmente sido dito e quanto terá sido alterado para motivos literários, mas tal não ofusca o quão potente e desarmante este livro é. A certa altura, da mesma forma que o é para as mulheres envolvidas, também a morte começa a tornar-se banal para nós, leitores, tantas são as ignomínias e os horrores com que nos deparamos ao longo da leitura. Também nós sentimos o quão difícil é acreditar no Homem, numa paz e num futuro áureo.

Acima de tudo, este livro acaba por se destacar como uma espécie de ensaio sobre a forma como uma mulher deixa de o ser ao se ver obrigada a combater (poder-se-á argumentar que também os homens deixam de o ser), e como, passado o conflito, tentar voltar a sê-lo novamente, com ou sem êxito, é sempre um processo de dificuldade enorme. Muitas das mulheres regressavam e escondiam o facto de terem sido combatentes, caso contrário ninguém se relacionaria com ela nem tão pouco as desposaria. Svetlana tem, além do mérito literário, aquele de ter conseguido mostrar a tanta gente que a vergonha e a dor que sentiam não eram apenas individuais, que mesmo tanto tempo após a guerra ter acabado, todas elas estavam ainda unidas por ela, qualquer que fosse a sua história pessoal posterior.

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