A arte de tão bem (ou mal) criticar
Sou do tempo em que somos ensinados a ser proativos. Críticos, conscientes, cientes daquilo que nos rodeia. Sou do tempo em que somos ensinados a não julgar o próximo por aquilo que ele é à partida, sem conhecermos o que seja do outro. Sou do tempo em que conhecer o próximo é um processo descomprometido de preconceitos, de barreiras, de confusões. Sou de um tempo que já não volta. É a preciosidade de se ser criança.
Nesses tempos, ríamos de muita coisa, até dos outros. Achávamos divertido tudo aquilo que saía do comum e que caía numa espécie de ridículo. Em tão transparente e luzidia visão, era algo que não se tratava de ridículo mas de engraçado, de diferente. Era um tempo onde os olhares eram distintos, por mais que provocássemos o próximo. Fazíamos cara feia àquele ou àqueloutro, mas não pela etnia, não era pelo que acreditava e muito menos pela bandeira política que hasteava. Simplesmente não gostávamos da pessoa, não nos sentíamos bem. Para além dessa intuição muito profunda e tão bem estimulada (que falta vai fazendo entretanto), eram as próprias atitudes que geravam essa animosidade.
Claro que a crítica sempre existiu, em especial a má, a detratora, a destruidora. Criadora? Só se fosse de conflitos, de momentos mesquinhos e pequenos em caráter e em boa fé. Desde o cochicho da vizinha sobre o primo da tia da sobrinha da irmã, até ao mais elevado poder político e empresarial, mas cujo braço era estendido no momento de encontro e do populismo mais ou menos percetível. A crítica sempre existiu e nem sempre teve modos. No entanto, estamos num século em que essa crítica passou a assumir proporções avassaladoras. São críticas pouco construtivas mas que compensam a falta de nexo e de sensatez com a amplitude de um palco que alcança a Nova Zelândia e o Canadá com a mesma firmeza, mesmo partindo de um cantão que é Portugal.
É uma crítica que desdenha, mas que não sabe sequer o que e como comprar. Inicialmente, era pobre em argumentos e em meios. Atualmente, é riquíssima em meios, fazendo-se ouvir com a legitimidade de um investigador científico, que venha afirmar, com todas as provas dadas, que um mais um é dois e não três, como quiseram contrariar numa fantasia cada vez mais real. Não são vozes que se têm de, necessariamente, arreigar nas suas crenças e nas suas formas de ver o mundo. Basta que outros tentem e arrisquem, que consigam alcançar e criar valor que não lhes agrada, não lhes convém ou que, simplesmente, as encontra num dia não. É uma crítica oca, vazia e azeda, destinada a criar o conflito, a germinar a desconfiança, a gerar o desagrado.
É aqui que me encontro com aquele que critica o diferente, o estranho, o novo. Aquele ou aquela que tenta arriscar, aventurar-se no mundo e conseguir reunir as condições para a sua felicidade, mesmo que, ao mesmo tempo, procure com o que o outro esteja bem e que faça por isso. É um caso que belisca. Por mais que se arrisque, que se aventure, que se procure inovar e ser alguém que traga valor para um bem maior, um bem comum, cai numa espiral de críticas que estalam conflitos e ódios. É a troça desdenhosa que domina uma crítica que se torna, efetivamente, fora de contexto. Procura ferir e gozar, longe de contribuir para que ambas as partes cresçam, para que as partes coloquem argumentos na mesa, os troquem e dialoguem, de forma saudável e sadia. Perdeu-se esta cultura, ainda mais quando, na bancada parlamentar que representa o povo português, se discutem mais partidarismos e se denuncia mais do que se propõe, se criminaliza mais do que se despenaliza, se fere mais do que se cura. A saúde e a educação andam rotas e a cultura é o espelho de tudo isso.
Por mais que cresçamos, por mais que passemos pela escola pela atribulada crítica alheia e por uma troça que ridiculariza o diferente, o distinto, o desencontrado, a crítica parece que não acompanha. O crescimento é físico e calendar, tão e somente. Uma crítica destrutiva é aquilo que domina os discursos falados e escritos de quem se depara com a realidade. A terapia do elogio ficou esquecida e enredada no jogo de interesses, que artificializa aquele que, genuinamente, procura contemplar o outro com uma graça, com um sentido voto de apreciação. A sociedade está longe de estar pronta para um elogio puro, mas está sempre pronta a acender a tocha e a lançar-se rumo a uma sátira. Os humoristas divertem-se à fartazana e são as páginas de humor nas redes sociais que dominam as partilhas e que consolam as frustrações de quem trabalha no que não gosta, de quem está com quem não ama, de quem vive aquilo que não quer viver. Fora os queridos dos gatinhos e dos cãezinhos, é a crítica populista e desenfreada que vocaliza as intenções e as motivações da maioria. Quem mais e melhor (entenda-se melhor como mais feroz) critica, é aquele que mais enche o peito, por mais que esteja desencontrado consigo mesmo.
O que fica no ar é uma sugestão de olhar para dentro de nós, de perceber a trajetória que nos trouxe aqui e de entender aquilo que temos. Existem limitações e obstáculos, decerto, mas também um leque de potencialidades, de interesses, de mundos por serem descobertos e por serem postos à prova. Viver é crescer em toda a turbulência de oportunidades e em todos os riscos que são desenhados e pisados. Vegetar é ver os outros traçar caminhos e desenhar-lhes outros riscos por cima, satirizando os seus frutos com uma crítica que tem tanto de tacanha como de cega. O limbo entre ser alguém realizado e feliz e ser frustrado e infeliz passa por uma atitude que poucos tomam mas que muitos desejam. Na ausência de sabor por querer viver, fica o amargo de boca de quem se vai poluindo, a si e a quem se junta com as farpas em riste. Quem propõe, sugere, suscita e constrói, vê-se contemplado por um mundo que começa a merecer-se cada vez menos. Muito por causa dos tantos e tantos que enchem os bolsos pela pequenez e os egos pela mesquinhez. Critique-se, mas com o peso na balança e com a medida na régua, com a cabeça limpa e o coração puro. As voltas trocaram-se.