A ciência do medo

por José Malta,    6 Agosto, 2019
A ciência do medo
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632) / Pintura de Rembrandt

Num mundo cada vez mais dominado pela ciência e pela tecnologia, e pelos seus progressos que melhoram as nossas vidas, surgem cada vez mais textos sobre os supostos perigos do uso da ciência em determinados aspectos. No que toca a histórias sobre os possíveis efeitos que determinadas substâncias ou factores podem exercer sobre nós, e que essencialmente tenham como alvo a nossa saúde ou o meio ambiente, é bastante fácil manipular a informação superficial que muitas vezes nos chega. Contudo, sempre que surge uma notícia que saia nas redes sociais ou em qualquer site de notícias, devemos procurar questionar essa mesma informação sempre que se apresente como uma novidade. Como? Nos dias que correm não é tarefa fácil e há que ter um espírito crítico em relação a toda a informação que se encontra, duvidando sempre da informação que nos apareçam à frente, mas não duvidando daquilo que é mais do que evidente. Tal tarefa pode parecer fácil mas é não ser assim tão simples quanto isso. Quando existem fundamentos e conceitos que se misturam com uma informação pouco precisa ou infundada, e que possa ser até mesmo manipulada com o intuito de causar um certo medo a quem recebe e interpreta a mesma, há que tomar as devidas precauções na sua análise.

É verdade que na história da ciência, que está intrinsecamente também na nossa própria história, foram vários os erros cometidos pelo ser humano quando este tentou promover o avanço científico e, por conseguinte, o avanço tecnológico. Desde a talidomida, medicamento administrado para evitar enjoos em grávidas e cujo seu enantiómero (molécula que possui uma outra estrutura que é o espelho da original e que não se sobrepõe na mesma) causava graves deformações no feto, até aos desastres em fábricas e centrais energéticas como o acidente de uma fábrica em Seveso na Itália, que causou várias mortes sendo um dos maiores acidentes que houve na indústria química, e do catastrófico desastre de Chernobyl na Ucrânia cujas sequelas aterrorizaram o mundo, existem inúmeras situações onde de facto o a ciência e o progresso cientifico causaram medo. Ou melhor dizendo, foram situações oriundas da nossa responsabilidade que causaram esse mesmo medo, sejam essas situações provenientes do erro ou não, mas que se encontram conotadas à ciência.

A ciência progride, assim como nós também progredimos enquanto espécie, sendo este já um elemento ligado à nossa própria evolução. Devemos ter sempre uma noção ampla daquilo que foi o nosso passado para que possamos encarar o futuro sem repetir os mesmos erros. Ao juntar a esta noção devemos também incluir espírito crítico de forma a adquirir mais informação sobre os assuntos em questão, evitando a distorção e a manipulação da informação. É fácil nos dias de hoje ir ao Google, pesquisar sobre um tema, e deparamo-nos com textos infundados que não apresentam qualquer rigor científico. Muitas vezes um mero estudo, quando generalizado, pode ser o caminho para a distorção da informação em si caso caia nas mãos de quem não saiba interpretar o seu conteúdo. Num mundo onde o acesso à informação é cada vez mais amplo, a sua má selecção e distorção são situações que ocorrem com grande frequência. As fake news também atingem a informação sobre ciência, grande parte das vezes com o intuito de causar um certo receio em quem recebe essa mesma informação. Por outro lado, muitas vezes também pode acontecer o contrário, isto é, haver um assunto que assuste e que seja um problema para a sociedade e que passe a ser desprezado por diversos factores. É também bastante fácil criar teorias da conspiração em relação a determinados assuntos, sendo este um dos grandes perigos nos dias de hoje.

Não podemos generalizar um assunto, logo à partida, só porque este traz consigo uma informação que nos assuste ou que nos coloque em situação de alerta. Apesar de, por exemplo, as radiações e o urânio estarem associados implicitamente à energia nuclear, que ao longo da história teve os seus enormes fracassos e que o seu uso no presente e no futuro ainda gere uma enorme discussão, não significa que estes tenham outras finalidades. O tratamento de doenças bem como a esterilização de determinados compostos ou produtos alimentares são uma das finalidades nas quais as radiações ionizantes são aplicadas em doses relativamente reduzidas e para fins pacíficos. Sabemos hoje que o armamento nuclear teve consequências avassaladoras e aprendemos com isso, sendo este um dos erros que não deveremos repetir no futuro. Contudo, existem outro tipo de aplicações onde as doses das radiações envolvidas são controladas e devidamente aplicadas. Hoje temos uma noção mais ampla do modo como devemos aplicar as radiações tendo em conta as devidas precauções e as técnicas de segurança envolvidas.

O nível da ciência causar medo está, neste momento, a um nível muito superior ao dos receios quanto à repetição dos erros do nosso passado, tudo muito graças à informação superficial ou dos juízos infundados que chegam até nós. Numa altura em que deveríamos ser supostamente mais conhecedores e críticos, a avalanche de informação com que hoje nos deparamos é de tal forma que se torna cada vez mais difícil de a filtrar. É fácil meter medo em relação a certos aspectos como é tão fácil desprezá-lo quando este existe e é evidente. Hoje consegue-se facilmente fazer crer a certas pessoas de que o aquecimento global foi uma invenção dos chineses para destruir a economia ocidental assim como que as vacinas causam autismo nas crianças. O que leva também ao extremo em que muitos sejam capazes de dizer que a Terra é plana, uma moda que surgiu sabe-se lá como e porquê, ou que passar demasiado tempo a falar ao telemóvel aumenta potencialmente o risco de se ter cancro. Quando se ultrapassam os limites da seriedade são capazes de se dizer coisas sem fundamento que, de forma assustadora, podem ser interpretadas como veracidades. O sinal de alerta está muito mais nesta informação que chega até nós do que na ciência em si que, graças ao esforço dos cientistas, procura melhorar o nosso mundo a cada dia que passa.

O medo, neste caso, combate-se com a busca de nova informação e de novos dados que nos possam dar soluções alternativas e não com soluções cuja viabilidade é pouco fidedigna. Não podemos permitir que o nosso receio em relação a determinadas vertentes nos leve a optar por alternativas pouco fiáveis e de conteúdo duvidoso. Não é por não haver ainda cura para o cancro, por exemplo, que os medicamentos homeopáticos e as chamadas medicinas alternativas sejam soluções para tal, quando os resultados que estes apresentam provêm de uma natural reversão do estado da doença no paciente a determinada altura. As campanhas de sensibilização em relação aos perigos devem ser feitas de forma a esclarecer as populações em certos aspectos, mas ao mesmo tempo evitando promover determinados fanatismos. O plástico, por exemplo, é um dos grandes problemas a nível ambiental e o seu consumo deve ser cada vez mais reduzido. A promoção dos sacos de compras e de copos reutilizáveis têm sido medidas aplicadas, que continuam a ser bastante aclamadas por parte dos consumidores. Os biopolímeros, cujo tempo de degradação é muito superior ao dos polímeros utilizados nos plásticos convencionais, têm sido aposta forte no fabrico de novas embalagens. No entanto, medidas que pretendam obrigar as senhoras a usar copos menstruais em vez de pensos higiénicos, como há quem pretenda que assim o seja, fogem por completo da sensibilização, transpondo-se para algo próximo do totalitário.

A ciência ainda não consegue resolver tudo e esse horizonte dificilmente será alcançado, mas graças ao esforço dos cientistas procurará resolver o máximo possível apresentando sempre melhores soluções para os nossos problemas. Quando as soluções conseguem provas inequívocas, havendo reconhecimento por parte da comunidade científica, aí estas podem começar a ser implementadas. O problema está quando há a aposta do investimento em soluções pouco credíveis, como existe em alguns casos. A ética e os princípios humanísticos devem ser pilares no uso da ciência e o passado mostra que as coisas deram para o torto quando assim não o foi. Porém, não podemos fazer de tudo um bicho papão ou cair no inverso ao desprezar certos riscos evidentes, deixando-nos levar pela gíria que assume praticamente tudo como dogmas. Devemos promover o debate sempre que possível, ouvindo pontos de vistas de especialistas e determinados sectores desde que sejam devidamente fundamentados. Devemos continuar em alerta sobre determinadas questões sempre que coloquem em causa a nossa sociedade, mas sem cair na obsessão e na falsa generalização. Devemos, sempre que tenhamos dúvidas, procurar informação que consiga esclarecer as nossas questões de forma clara e sobretudo seleccioná-la correctamente. Continuaremos sempre a caminhar de modo a melhor o nosso mundo que, apesar de estar mergulhado nos na manipulação de informação, interesses económicos e outros factores aberrantes, tem ainda uma ciência que o pretende promover o que de melhor nele existe, procurando sempre um amanhã muito melhor do que fora hoje.

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