A desconstrução narrativa das séries e a sua importância actual
Existe um claro momento pré e pós Lost nas séries de televisão norte-americanas. Se até essa data havia sempre uma óbvia fronteira entre produção para TV e produção para cinema, o mesmo não se pode dizer dos anos que se seguiram. Lost veio mostrar ao mundo o poder que uma série pode ter em tempo real, ou seja, enquanto está a sair. Todo o mistério criado em volta da fantástica narrativa criada por J. J. Abrams, Jeffrey Lieber e Damon Lindelof veio redefinir um género que existia quase desde o tempo do cinema e que na maior parte da sua existência sempre procurou a distinção do mesmo. A diferença de existirem agora inúmeros protagonistas com caminhos distintos também acrescenta uma grande diferença ao argumento. Deixa quase de existir um único protagonista e começamos a ter vários, onde os episódios se dividem na visão de cada um deles, dividindo também o argumento e o objectivo de cada série.
Mesmo no meio de uma grave greve de guionistas, Lost serviu como a verdadeira líder revolucionária e não tardou até que a produção das séries atingisse, ou até mesmo ultrapassasse, a produção de certos filmes.
Breaking Bad começa em 2008, praticamente no final de Lost e apesar de grande parte do sucesso da primeira temporada se dever ao génio criativo de Vince Gilligan, o aumento da produção fez também parte do trabalho. Breaking Bad marca a definitiva viragem do formato clássico de série de televisão para filme. Existe agora uma continuidade narrativa muito forte, fazendo com que não só cada temporada, mas também quase toda a série se torne num gigantesco filme. Até esta data grande parte das séries focava-se em pequenos momentos, com episódios sem grande ligação narrativa, excepto na sua linha principal (excepção feita a Sopranos e Twin Peaks). É esta desconstrução narrativa, ou seja, uma inversão de argumento entre as séries e o cinema que começa a atrair investidores, realizadores, autores ou actores.
De repente as séries deixam de ser uma rampa de salto para actores chegarem ao cinema, mas o inverso. A série Game of Thrones vai, em 2010, buscar actores consagrados como Sean Bean, Lena Headey, Iain Glen ou Charles Dance, misturando-os com algum sangue novo. A grande diferença? O esquema do argumento e a produção. Estamos a falar daquela que é possivelmente a maior série em termos de produção da história, mas o seu sucesso não se deve apenas a este factor. O facto de pela primeira vez se quebrar o conceito genérico de séries em que quase nenhum personagem principal podia morrer, pelo menos no inicio da história, acaba por atrair muitas pessoas que até à data só podiam ver algo do género no cinema. A imprevisibilidade e riqueza argumentativa, aliadas a um aumento de qualidade de imagem e produção tornam as séries mais cativantes e mais rentáveis.
A partir daqui tudo muda e True Detective segue esta directiva. Uma única história dividida em vários episódios, com dois personagens centrais com características sociais distintas e um único realizador e argumentista. E se até à data houvesse alguma dúvida a partir daqui deixam de existir: as séries são o novo cinema. Um único realizador, um único argumentista, actores de cinema com anos de carreira, Matthew McConaughey e Woody Harrelson, e um sucesso tremendo (isto na primeira temporada).
Fargo, House of Cards e Westworld repetiram a nova fórmula de sucesso, adaptada às suas realidades distintas, e tiveram sucesso. As séries de televisão deixaram de ser sobre drama, comédia e acção e passaram a ser tudo aquilo que o cinema é, um conjunto de definições narrativas cruzadas que exploram a profundidade emocional de quase todos os seus personagens. Até mesmo em séries como Atlanta, de Donald Glover, conseguimos perceber que se tivesse sido criada antes desta mesma desconstrução narrativa estaríamos talvez perante uma espécie de Prince of Bel-Air. Ao contrário, Atlanta acrescenta um lado intelectual mais real e mais socialmente adaptado, fora do conceito cartoonesco dos anos 90, desafiando constantemente o espectador. É também este lado de consciência social, oferecido aos criadores através das redes sociais, que permite que várias séries, assim como Atlanta, explorem exactamente o que o público pretende, de uma forma quase de autor.
Actualmente é difícil distinguir por onde andam os actores. Em séries, em cinema? Em tudo! A produção equiparou-se à dos blockbusters americanos e a qualidade narrativa disparou. Dois casos bastante concretos são os exemplos de The Young Pope e The Expanse. O primeiro pegou num realizador italiano conceituado e deu-lhe total liberdade para brincar à desconstrução de narrativas, ou seja, trocar a lógica dos processos, dos estereótipos, dos personagens, e dar-lhes alma e vida próprias, algo que Paolo Sorrentino conseguiu com excelência (um Papa bastante novo, mas ao mesmo tempo mais retrógrado do que a própria instituição). O outro teima em criar uma linha narrativa idêntica à dos anos 90, com personagens seguros, estereotipados e um conceito algo repetido, apesar da produção de maior qualidade. Apesar de ter públicos completamente distintos, não sendo justo sequer comparar as duas, The Expanse enfrenta sérios problemas para continuar. Primeiro porque a distribuição hoje em dia é um dos factores mais importantes para o sucesso de uma série (e o SyFy não tem nenhuma grande série de sucesso), segundo porque as pessoas estão cansadas de ver mais do mesmo, gostam de ser desafiadas e é aí que The Young Pope entra, assim como Westworld.
Apesar de me ter centrado num pequeno nicho de séries, os exemplos são mais do que muitos e afectam também a comédia onde séries como Modern Family e Orange is The New Black, um género que raramente sofreu alterações, desafiam todas as regras e vão mais além.
É impossível escrever este texto e não referir a brilhante primeira temporada de Mr. Robot, as duas últimas de Black Sails (que homenagem a Heart of Darkness de Joseph Conrad), Sons of Anarchy e tantas outras.
Esta desconstrução narrativa da antiga fórmula de séries de televisão veio dar força a distribuidoras e produtoras como Netflix, aliando um aumento financeiro e qualitativo na produção das mesmas. Todos ganham, principalmente nós, os meros espectadores.