A falácia da Nova Lisboa, “É ou Não É”?

por Miguel Rocha,    17 Dezembro, 2023
A falácia da Nova Lisboa, “É ou Não É”?
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Claramente sou masoquista (mas isso é sabido — andei no Técnico) se escolhi passar uma noite de terça-feira de Inverno mais quente que o normal em frente a um ecrã para assistir a mais uma edição do “É ou Não É”, o programa de debates da RTP1 moderado pelo Carlos Daniel.

O tema em debate? Se “É possível fazer mais pela cultura?” Os convidados? Álvaro Covões (apesar dos seus takes habituais, kudos por ter feito ferver Carlos Daniel ao falar de como o futebol ocupa grande parte da agência mediática em detrimento da cultura), fundador e diretor geral da promotora Everything is New, a autora Lídia Jorge, Simonetta Luz Afonso, notória museóloga portuguesa, Kalaf Epalanga, músico (da fama Buraka Som Sistema mas também do seu trabalho com artistas como Dino D’Santiago ou Slow J) e escritor, Pedro Penim, diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II,  e Pedro Adão e Silva (kudos pela abertura à discussão), Ministro da Cultura ainda em funções. Além disso, o debate incluiu ainda uma entrevista com Philippe Starck, designer que escolheu Portugal para viver, que tem de ser vista porque contado ninguém acredita em tal bafio salazarista a ser debitado — ainda bem que a RTP Play já tem o debate disponível. Foi a cereja no topo do bolo desta mixórdia em horário nobre da qual pouco ou nada se retirou — exceto o quão desligada está a burguesia cultural da realidade do país. Lembrar: nem um 1%. Mas isso já sabíamos, certo?

Sobre a qualidade do debate em si, o João Pedro Fonseca, artista multidisciplinar que também é fundador da ZABRA (um dos projetos mais interessantes artísticos nascidos em Portugal nos últimos anos), disse tudo o que havia para dizer numa publicação feita no seu Instagram. O principal fica aqui — o resto podem (e devem) ir ler:

“Ontem na RTP gerou-se o debate “É possível fazer mais pela cultura?” com um painel a meu ver limitado e pouco flexível na compreensão dos movimentos culturais emergentes. A hegemonia clara de uma alta cultura, como o Kalaf Epalanga classificou, tomou conta das directrizes da conversa. O teatro, as óperas, a literatura, os museus, foram foco de preocupação como se os portugueses lhes devessem algo. Não fossem os convidados uma geração acima dos 45 anos, foi impossível ouvir uma perspectiva da chamada “média” ou “baixa” cultura que reivindicasse o seu lugar e a sua importância na atual sociedade.”

Posto isto, desejo focar-me numa secção específica do debate, em uma breve discussão sobre o tema da internacionalização da música portuguesa. Primeiro, uma pergunta: o que é isto de “internacionalização”? É colocar mais pessoas exteriores ao país a escutar música portuguesa (e lusófona, termo certamente mais correto para esta discussão)? É ter artistas e bandas a irem a festivais de showcase como o Eurosonic ou o South by Southwest (SXSW) e saírem de lá com acordos com gravadoras e festivais? É aparecerem na Pitchfork? Criar-se um Bad Bunny português? Uns Buraka Som Sistema 2.0? Ou é apenas um chavão para inglês ver? Guardem esta ideia. 

Segundo, quem lucra com isto? Os artistas? As minorias que, na sua maioria, contribuem para todo este universo cultural? Como Kalaf disse no final do debate, deve ser possível produtores de cultura pagarem a sua vida “com aquilo que produzem”. Ainda estamos longe disso, infelizmente.

Qualquer que seja a resposta pretendida ao falar do chavão da internacionalização, já existem artistas que verificam algumas ou até mesmo todas destas cláusulas. Agarrando no exemplo que o João Pedro Fonseca tão bem enunciou: da Príncipe, editora lisboeta que, em primeiro lugar, é uma das principais referências para a criação da batida de Lisboa e, em segundo, é uma das principais referências a nível mundial do universo da eletrónica (adivinhem qual aconteceu primeiro). “The Guardian, Fact Magazine, Pitchfork e levados a todos os maiores festivais espalhados nos quatro continentes.”, tão bem lembra o camarada João por onde artistas da Príncipe já passaram ou foram mencionados — ainda este ano Nídia, produtora dos quadros da Príncipe, voltou a colaborar com Fever Ray (na belíssima “Looking For A Ghost”); Danifox, também da Príncipe, viu o seu excelente Ansiedade incluído na lista de melhores discos de eletrónica de 2023 para a Pitchfork. Portanto, surge a questão: porque é que a Príncipe nem sequer foi mencionada durante essa secção da conversa? Deve contar como internacionalizar a música portuguesa, com certeza. Quem fala em artistas ligados à Príncipe, pode falar noutros casos — Pongo, Hetta, Batida, King Kami, Violet ou Holly são outros exemplos dos quais me lembro agora; quanto menos falarmos da ignorância face ao que ocorre fora da área em torno do Tejo, melhor. Isso são outros quinhentos muito densos.

O Carlos Daniel relembrou que, recentemente, Pedro Adão e Silva tinha referido que Dino d’Santiago era o “artista com maior potencial” de internacionalização em Portugal, ao que Pedro Adão e Silva responde para falar de “singularidades” e do “momento”. Isto é tudo muito curioso. Primeiro, porque quando Dino assumiu a mantra de Dino D’Santiago com o excelente Eva, há dez anos (recentemente celebrados), o disco ganhou inicialmente reconhecimento maior fora de portas antes do reconhecimento pelos pares e público em Portugal (lembrar aqui que, antes disso, Dino encontrava-se ligado ao universo do hip hop tuga, por essa altura ainda muito ignorado por grande parte da crítica portuguesa). Cinco anos mais tarde, em 2018, foi com a colisão de mundos de Mundu Nôbu (curiosamente, um disco que tem o nome de Kalaf por lá inscrito) que Dino chegou a um maior público em Portugal, particularmente em Lisboa — o hino “Nova Lisboa” certamente ajudou. Daí para a frente, Dino ajudou a revolucionar a música portuguesa e tornou-se figura de proa da luta antirracista em Portugal. É uma figura importantíssima de ambos esses mundos e, com o seu cada vez maior alcance e presença pública, tem ajudado a levar as vozes daqueles que antes não a tinham — em particular, da população negra, seja esta de Quarteira, seja esta da periferia de Lisboa (onde, curiosamente, a batida da cidade nasceu) — a um maior público. (Eu próprio sou fã convicto da música e personalidade de Dino D’Santiago e já escrevi positivamente sobre ele no passado).

Mas a questão que levanto aqui é o sistema que tem sido montado em torno de Dino D’Santiago face àquilo que acredito ser uma desvalorização do trabalho de outros artistas negros, em particular do trabalho da Príncipe, por comentários como o de Pedro Adão e Silva. Quando Pedro Adão e Silva enuncia que Dino é o artista com “maior potencial” de “internacionalização” português, está a reescrever uma história que não corresponde à realidade – porque já há outros artistas a fazê-lo. Está a desvalorizar outros artistas negros, imigrantes, queers, que tanto têm feito pela tentativa de criarem a “Nova Lisboa” que Dino profetiza. O discurso de Pedro Adão e Silva não está muito longe de ser uma instância da separação entre low culture high culture. Se a Príncipe (e outros) não tem potencial de internacionalização aos olhos do Ministro da Cultura, é empurrada para o canto da ignorância; se Dino D’Santiago já é aceitável aos olhos de Pedro Adão e Silva, é high culture. E essa promoção é recente. Outrora a música personificada por Dino D’Santiago — o funaná, as mornas, a cultura crioula — era desvalorizada. Recuem nem dez anos atrás e vejam como fenómenos como o kizomba, o kuduro, o funk brasileiro ou a nova batida de Lisboa — se quiserem um fenómeno atual, pensem também em Nininho Vaz Maia — eram vistos pelos olhos desta mesma classe social. Claro que as coisas mudam — mas talvez o que aconteceu foi que os brancos perceberam que não dá para ficar parado (e eu próprio não sou inocente a isto, já agora) com estas canções.

Agora, este fenómeno da elevação de Dino D’Santiago a porta-estandarte da “internacionalização” da música portuguesa diz mais ainda sobre como Portugal ainda tem muito a aprender sobre reparações históricas. Este fenómeno não é nada mais, nada menos, que uma forma para mostrar, a nível europeu e internacional, que Portugal — e Lisboa em particular — é um local multicultural, acolhedor, tolerante, e não um inferno profundamente racista e misógino, repleto de microagressões, de desvalorização da educação, da cultura, hipercapitalista e liberal — e isto no melhor dos casos. Quanto menos falarmos da ascensão de movimentos de extrema-direita no nosso país, melhor. Por outras palavras, é uma tentativa fetichista e ignorante de pedir desculpa pelos crimes hediondos cometidos ao longo da nossa história, uma nova forma que o lusotropicalismo arranjou para se imiscuir na propaganda do Estado (se é que alguma vez foi totalmente abandonado). Não é assim tão simples. 

Como Kenneth Mohammed sublinhou no The Guardian em agosto, o debate em torno de reparações históricas é “multifacetado, influenciado pelo legado histórico, considerações éticas e contextos políticos contemporâneos.” “É imperativo”, acrescenta o analista caribenho, “reconhecer que reparações não são apenas sobre atribuir culpas — podem confrontar mitos históricos e promover a abordagem a injustiças sistémicas”. Quando colocamos todo esse fardo nas costas de Dino D’Santiago, saltamos várias etapas desse processo. O próprio Dino parece saber disso. Ao The Guardian, numa peça assinada por Sam Jones e Gonçalo Fonseca em torno do legado colonialista português e do processo de descolonização, Dino falou: “As pessoas não sabem o que aconteceu. Ao invés de falarmos sobre a descoberta do Brasil, devíamos falar do genocídio de milhões de pessoas.” “Quando olhas para os desenhos nos livros de história, as pessoas estão a sorrir, mas na realidade, ninguém bateu palmas quando os portugueses chegaram a esses sítios. Precisamos mesmo de contar tudo sobre o que Portugal fez — sobre quantas pessoas morreram naqueles barcos”, conclui.

Mas se Dino sabe isso sobre a realidade ainda racista de Portugal, que efetivamente estabelece uma contradição com a (sua?) visão da “Nova Lisboa”, outros parecem ignorá-la. Essa “Nova Lisboa” profetizada não existe — ou se existe, é apenas na imaginação de alguns. É uma promessa por cumprir para muitos — particularmente para minorias e para pessoas de classe baixa — e uma oportunidade milionária para outros tantos. Pode ser simultaneamente verdade que existe mais espaço para artistas negros singrarem nos clubes da capital (se sairmos de Lisboa, a discussão é outra) ou para festas como a Dengo Club e que a cidade foi também tornada num verdadeiro carrossel para nómadas digitais e grandes fundos imobiliários. A população, na sua maioria, não consegue viver em Lisboa devido à crise imobiliária, entre outros fatores. Está a ser empurrada para a periferia, locais que, por si só, têm os seus próprios desafios incutidos. Airton Cesar Monteiro, que colabora com o Gerador, a Mensagem de Lisboa e a Comunidade Cultura e Arte, questionava em novembro de 2022 a “Nova Lisboa” no seu Twitter:

“Quando o Dino canta sobre uma nova Lisboa de união, sem preconceitos, discriminação e próxima duma democracia racial, tem de esclarecer-nos uma coisa: é uma cidade que ele vê assim ou que imagina para o futuro?”

“Se diz que existe, é uma mentira, pelo menos para a maioria de nós não brancos e imigrantes. Ou existe no interior de uma discoteca quando toca Batida (e não música da Nova Lisboa), mas à porta reinam as velhas políticas de porta que excluem os de sempre.

Existe quando artistas portugueses inspiram-se pela sua ancestralidade africana, mas sem africanos no estúdio. Existe quando dizem, e bem, que a nova cena da música da cidade tem origem africana, mas dão créditos aos mesmos de sempre sem essas origens.”

“Também há a opção da Nova Lisboa ser imaginada. Nesse caso, para além de ser necessário essa mensagem ser mais clara, ela tem de ser completada. Falta um apelo para a construir e, acima de tudo, exigências. O que é preciso para que ela se torne realidade e por parte de quem?”

Xullaji, a discutir o seu novo disco enquanto prétu com o Setenta e Quatro, questiona também o conceito desta Lisboa.

“Uma cultura como a kizomba faz parte de Lisboa há muito tempo, mas explodiu apenas há uns anos. Nós sempre crescemos com isso. O mesmo com o funaná ou com a morna. Agora é que está a ser aproveitada, e está-se a criar uma ilusão. Mas isso é em Lisboa, é no centro, é para branco ver. Aqui [na periferia] a polícia continua a fazer como sempre fez, as escolas continuam a ser desmanteladas como sempre foram, as pessoas estão a ser escorraçadas, a pobreza agrava-se. Isso não tem sido, e devia ser, acompanhado de uma aceitação e de uma maior escuta entre todas as comunidades.

Mas assumir isso implica também assumir politicamente a criação de acesso às pessoas, e a não usar só os negros e negras para limpar e construir este país. E alguns para colorir a academia e outros lugares. Quando sai o afro-house, ou o funaná, ou o hip-hop procura-se isso como mercadoria, porque essas mercadorias geram muito. A mercantilização da cultura negra é altamente rentável.”

“A mercantilização da cultura negra é altamente rentável”. É preciso dizer mais? A história repete-se. Como aconteceu com o rock’n’roll, com o jazz, com o próprio hip hop. É só mais uma faceta do mesmo.

Felipe Maia, jornalista e etnomusicólogo brasileiro — que assinou um dos grandes textos do ano sobre reggaeton na Pitchfork —, tweetava há uns tempos sobre o conceito de “porta-voz da quebrada”. Aqui, temos de nos adaptar e falar do “porta-voz” da Nova Lisboa. Curiosamente, ao noticiar o lançamento da edição especial de Eva nos últimos dias, o Rimas e Batidas declarava Dino como a “voz” da Nova Lisboa. Coincidências do bem, portanto. Facilita a coisa. Felipe indica:

“No rap, e cada vez mais no funk, o porta-voz é um artista cujas características faltariam a outros — em oposição ou em exagero de estereótipos. Com o tempo, esses artistas passam a lutar por sua posição com mais potenciais porta-vozes enquanto tentam não se descolar de seu público. O problema é que esse rapper/funkeiro está sujeito a vacilo e é ampla sua arte — ele é figura ativa, está num jogo na indústria. aí vão se criando públicos que só ouvem um rapper/MC (e que não escutam rap/funk), públicos que só aceitam uma ideia sobre o jovem “de quebrada” na USP.”

A indústria brasileira é infinitamente maior à portuguesa — e o quão pequena a nossa é só leva a maiores vícios e precariedade —, mas o pensamento de Felipe é muito interessante quando adaptado ao universo onde Dino d’Santiago se inseriu pós-Mundu Nobû. Se a burguesia, que domina a classe artística na sua grande maioria porque é a única capaz de escapar ao universo da precariedade sem ser prejudicada — porque já conta com posses à priori —, aceita apenas e só a música de Dino como standard aceitável para ajudar a vender um ideal que não corresponde à realidade do que é Lisboa e Portugal (indissociáveis — nesta visão Portugal é Lisboa e Lisboa é Portugal, o resto dos movimentos culturais que se lixem), quais as consequências para os demais? Parece uma equação simples de obter solução: praticamente só um artista tem a sua música a chegar a mais gente e a ganhar público.

O próprio não tem grande culpa nisso. Entrou no sistema e tem de vergar a mola (existe, contudo, uma discussão válida em torno do marketing que ele e a sua equipa assumiram para se assumir como messias destas lutas). A grande maioria das pessoas que criam e contam as narrativas, sejam jornalistas (e aqui me incluo), políticos, programadores, curadores, são brancos. A diversidade das histórias contadas ainda está muito longe de ser variada. Houve melhorias, sim, mas ainda não é o suficiente. Olhem para os cartazes dos festivais portugueses vistos como “aceitáveis” — portanto, descartem o Sumol Summer Fest e o Sudoeste — e contem o número de artistas negros lusófonos. Vão ter uma surpresa. Como a MC Martina indicou à Bantumen recentemente: “Contrate artistas pretos, porque isso é reparação histórica também”. Não pode é ser só um quando isso acontece. Isto tanto se aplica a eventos de iniciativa pública (especialmente) como iniciativa privada.

Na mesma entrevista ao Setenta e Quatro, Xullaji relembra:

“Muito desse discurso de “vamos ocupar um lugar” não põe em causa o capitalismo. Malcolm X chamava a isso a casa grande, Amílcar Cabral também falou disso. Não fizemos nem estamos a fazer uma revolução para ocupar o lugar que o branco ocupava, porque esse é um lugar de exploração, de expropriação, de imperialismo, de morte e de massacre.”

Será possível destruir o sistema por dentro? Talvez. Mas será que algum dos envolvidos nesta história está particularmente interessado nisso? Num universo onde o capital e o individualismo reinam e onde narrativas imperialistas e colonialistas são o prato nosso de cada dia — basta ligar as notícias para ver isto diante dos nossos olhos — torna-se muito complicado acreditar que isso seja um objetivo. A “Nova Lisboa” é apenas uma miragem. É um instrumento do capital para vender algo que não corresponde à realidade, uma retórica lusotropicalista que não tem em consideração a realidade das populações que efetuam as criações que contribuem para o mito. Quando Pedro Adão e Silva fala apenas de Dino D’Santiago, como aconteceu na passada terça-feira no “É ou Não É”, é esta a retórica que transparece. 

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