A gravata

por Leonardo Cruz,    10 Julho, 2022
A gravata
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Havia entrado na empresa há menos de duas semanas. Era natural que quisesse mostrar serviço. E esta oportunidade era tudo o que precisava. Uma proposta de meia dúzia de milhões de euros, como a que tinha em mãos, significava uma entrada à campeão. Justificava a escolha dos responsáveis de RH na sua aposta no novo colaborador. Calaria as vozes daqueles que sempre detestam gente nova. Para ele, sempre tão inseguro, era a dissipação de quaisquer dúvidas — havia tomado a melhor decisão. Estava à altura daquele passo. Ainda para mais, todo o trabalho de preparação, diligências prévias, análise exaustiva e monótona dos elementos financeiros e contabilísticos foi feito pelo ex-colega que saiu da instituição e a quem substituíra.

Era bom demais para ser verdade. Não tinha o hábito de ver na sua vida coisas fáceis a acontecer-lhe, mas já era altura.

O dia da grande decisão chegou sem aviso. Perto do meio dia recebeu a chamada do chefe:

— Tens que vir já para Lisboa. A tua proposta vai ser decidida hoje pela administração.

O tempo que durou entre o telefonema e a entrada no carro foi o de engolir em seco, dar uma leitura rápida à proposta e comprar uma sandes mista com manteiga no café ao lado. Afinal, a hora de almoço seria passada na autoestrada a caminho da capital e o pior que podia acontecer na defesa da proposta, era a fraqueza do defensor por falta de alimentação. Menos mal que o cabelo estava bem aparado e o fato era novo. A gravata azul, de seda, distinta, oferecida no aniversário, dava-lhe um ar confiante. Pelo menos era o que sentia.

A meio do trajeto, a sanduíche foi enfim inaugurada. Talvez a fome fosse, afinal, provinda de nervos; ou vice-versa, não interessava: mais valia comer qualquer coisinha. De súbito, o nome do chefe surgiu no telemóvel. A viatura não tinha sistema mãos-livres, pelo que todas as falanges ficaram ocupadas: umas segurando a meia sandes, outras o telefone. Os joelhos equilibravam o volante, contudo as pernas tremiam com receio de dizer algo que comprometesse a decisão. Respondidas as questões preparatórias ao evento da grande decisão, pousou o telefone no banco do pendura e notou que uma gota espessa de manteiga gorda havia descido da carcaça até à fina gravata azul. Uma ilha de areia oleosa num mar sedoso. “Bonito serviço” pensou ironicamente a cabeça, enquanto a boca não evitou dizer dois ou três palavrões.

Chegado ao centro de Lisboa, a prioridade após estacionar era encontrar uma gravata. Entrou na primeira loja que encontrou, em plena Avenida da Liberdade. Não reparou no nome, tampouco reconheceria a marca. Apercebeu-se que deveria ser uma importante insígnia de moda quando, após escolher a primeira gravata que não achou horrível e preparando o pagamento, viu refletido no ecrã da registadora o número 450. Ainda pensou tratar-se da referência do artigo ou do preço na moeda de outro país (porventura onde foi produzida); rezou por um equívoco ou digitação incorreta, mas cedo se apercebeu que quatrocentos e cinquenta era o valor em euros que pediam pela peça de vestuário. Poupou em notas o que gastou em vergonha, porém conseguiu evitar a compra. As palavras que dirigiu à funcionária custaram a sair: “pensando melhor, opto por não levar” — a escolha do verbo optar pareceu-lhe feliz, não obstante, por acarretar alguma dignidade.

Correu avenida abaixo na esperança que o preço do vestuário acompanhasse a inclinação do terreno. Não mais esqueceu a fachada do estabelecimento com o letreiro GOGO Lisboa, onde adquiriu uma “bagatela” de 50€: uma gravata roxa às riscas brancas. Não havia tempo para procurar mais. Colocou-a ao pescoço e subiu a rua o mais rápido que conseguiu até à sede da empresa.

Transpirado, despenteado, nervoso, mas com uma gravata moderna e acabada de estrear, atingiu ofegante o último piso do edifício. Mal acabara de dizer “boa tarde” foi informado que a decisão da proposta havia sido adiada para data incerta, por indisposição de um dos administradores. A boca não evitou dizer ironicamente “bonito serviço”, enquanto a cabeça pensou em dois ou três palavrões. Sentou-se numa cadeira para recuperar o fôlego e reparou que todos os homens do departamento tinham um ar mais fresco do que o seu. Apercebeu-se então que nenhum deles usava gravata. Era casual day.

Epílogo:

Correm ainda hoje rumores em toda a Lisboa que, para os lados da Avenida da Liberdade, aparece de noite um morto com a aparência do funcionário dessa empresa à procura de pessoas engravatadas a quem arranca, sem discriminação de título ou cargo, qualquer tipo de gravatas: tradicionais, italianas, borboletas, e também laços, lenços e cachecóis — numa palavra, todo o género de coisas que as pessoas inventaram para colocar ao pescoço.

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