A honra que foi receber a força da natureza chamada Lianne La Havas no Hard Club
À partida, seria sempre uma honra receber Lianne La Havas no Porto, uma das melhores e mais notáveis vozes da abrangente cena do soul e do R&B à britânica. Para quem não a conhece, não obstante uma fugaz produção discográfica – já lá vão doze anos desde “Is Your Love Big Enough” e quase dez desde “Blood” -, a sua voz melodiosa e doce como o mel ganhou rapidamente o seu espaço com um carisma forte e um sorriso envolvente. Como artista, Lianne Charlotte Barnes, nascida no final da década de 1980, tem ascendência jamaicana e grega e deixou os estudos de gestão a meio em prol de uma carreira musical, dada a sua paixão autodidata desde criança, quando aprendeu a tocar piano e se entregou ao melhor que o reggae e o pop dos anos 1980 e 1990 tinham para oferecer. Muito por força da herança que os seus antepassados lhe deixaram, abrindo-lhe os horizontes para a música feita por intérpretes de raça negra.
A história mais a sério começaria em 2011, com o sucesso do EP “Lost & Found”, que a catapultou para a televisão e para uma tournée nos Estados Unidos, que a fez privar e partilhar música com a mítica figura de Prince. A sua morte, em 2016, marcá-la-ia profundamente e, em discos, só regressaria em 2020, com um álbum homónimo ao seu nome artístico. Trata-se, talvez, do trabalho mais estruturado que desenvolveu até então, com um soul trabalhadíssimo num ponto de deleite completo e amadurecido. Em si, envolve influências do folk, em especial de Joni Mitchell, mas também do jazz e até da MPB, como de Milton Nascimento. Aqui, para além dos temas “Can’t Fight” ou “Bittersweet”, destaque para a belíssima cover dos Radiohead em “Weird Fishes”.
O nosso gosto por ela nasceu de a termos descoberto nesse hiato entre 2015 e 2020, numa altura em que ia dando a cara e as ideias pelo movimento Black Lives Matter, defendendo a sua herança racial. Havia, recentemente, chegado à casa dos 30 anos e, para além da sua voz deliciosa, também se destacava o gosto que tinha pela guitarra, o facto de haver viajado com e atuado antes dos concertos dos Coldplay. A título pessoal, havia seguido um caminho individual de superação e de autoconhecimento, após uma relação conjugal turbulenta, que deu origem ao disco desse ano de 2020.
Para esta nova tournée, datas marcadas para Portugal, nomeadamente para Lisboa, no Lisboa ao Vivo (LAV), e para o Porto, no Hard Club. Aquilo que esperávamos desta espécie de sucessora espiritual de Erykah Badu ou Jill Scott era, de facto, ficarmos rendidos a um vulto que, na nossa ótica, merece ainda mais enfoque por parte do público nacional, mesmo depois de passar pelo EDP Cool Jazz em 2015 e no Belém Art Fest em 2018. Novidade, assim, na cidade do Porto, que, antes de a acolher, recebeu uma artista nacional no palco principal do Hard Club. Se, em Lisboa, foi a cantautora Monday a subir ao palco, aqui foi MALVA, nome artístico da portuense Carolina Viana, que é, para além de cantora, MC na parceria chamada redoma, com Joana Rodrigues, projeto que lembra muito as vibes de NERVE ou de Capicua.
Para quem não a conhece, destaque para o álbum lançado no ano passado, “vens ou ficas”, que integra os singles “extremidades”, “como se início” e “tensa”, que transmite uma profundidade lírica em muito similar ao que escutamos em Rita Vian. Talvez a nuance que nos salta mais ao ouvido é a visceralidade das suas letras e que se enquadra no ambiente de Lianne La Havas através da pessoalidade das suas letras. Foi um tom um tanto ou quanto suave, mas que agradou a uma falange do público que, chegada lá à frente, exultava a cada canção e a cada interação que se fazia com ele. No entanto, é necessário referir a falta de respeito que grassou na segunda metade, já que, enquanto alguns iam entrando, dispensando o concerto de abertura, pediam bebidas para se refrescarem e iniciavam tertúlias que, pasme-se, chegavam à frente.
Ouviu-se um ruidoso “pouco barulho”, que foi aplaudido por muitos dos que estavam envolvidos nesta primeira sessão musical da noite, e que a própria artista disse “é difícil competir com máquinas de finos”. Embora não fosse a nossa predileção musical e não termos adorado esse quarto de hora, é impensável tamanha desconsideração por uma artista que, para além de ser local, mostrou qualidades para continuar a desenvolver uma carreira que, conforme se percebeu, tem os fãs do seu lado. Fãs esses que saudaram a cantora, que mostrou alegria em estar presente e em partilhar a sua música ao lado da guitarrista Catarina Estácio, que a acompanhou.
Após meia hora de espera depois do fim do arranque de MALVA, chegou Lianne La Havas com tudo. Com uma presença incontornável, com um par de guitarras que dominou com mestria e génio, com uma voz melodiosa e estrondosa. Lianne é, de facto, tudo. Trazendo um repertório em muito focado no seu último disco, lançado em 2020, teve pela frente um público que conhecia grande parte das suas canções, dado que saudou de forma barulhenta quase todas elas. Pelo meio, a cantora fez um amigo, de seu nome Kiko, que estava lá na frente e que sabia as letras de cor de tal forma que Lianne lhe cedeu o lugar de vocalista por momentos.
Ao lado da genial britânica, estava o teclista e engenheiro de som Sam Crowe, o baterista Dan See e o baixista Yves Fernández, que criaram o pano de fundo ideal para que ela brilhasse e tivesse o público na sua mão, mesmo aquele que, anteriormente, se perdia em conversas paralelas e criava um ruído pouco agradável para quem procurava apreciar a música. Diante de si, apesar de não ter casa cheia, Lianne teve um público à Porto, que a levou a assumir o seu amor pela cidade e pelo calor que sentiu à sua frente. Em termos de alinhamento, destaques para “Green & Gold” ou “Unstoppable”, do álbum “Blood”, para além de “Can’t Fight”, “Paper Thin”, “Weird Fishes”, “Sour Flower” e, claro está, o encore, com um “Bittersweet” absolutamente divinal. Amarga tornou-se a ausência da sua versão tão especial de “I Say a Little Prayer”, celebrizada por Aretha Franklin, e tão amiúde interpretada por ela.
Note-se para o amor que se sentiu e que se viu em qualquer lado para onde se olhava dentro daquele salão preto fechado, que desconfiámos, inicialmente, de ser o mais apropriado na cidade para acolher o talento de Lianne. Porém, a sua dimensão e o calor humano a que convida mostrou demonstrações de amor por todo o lado, entre vários casais de idades distintas e que chegou ao lado dos próprios baristas que lá estavam, que iam cutucando ao som da música. Pois bem, é este o poder do soul e do R&B quando trazido com alto astral (a influência da MPB na britânica é declarada pela mesma, onde se inclui a figura de Milton Nascimento, com quem já cantou), capaz de mobilizar tanta gente no seu groove. A capacidade de materializar uma ideia de empoderamento (sexual, sim, mas também no sentido da individualidade diante das relações conjugais, como é o caso) e de transcendência através da música é algo que está em pleno alcance destes géneros musicais, que tão bem são assumidos pela cantora e guitarrista.
Não houve muitas palavras, mas muita interação e um animal de palco na forma de Lianne La Havas, que tem tudo o que se procura num grande artista: genialidade, virtuosismo, espontaneidade e muita, muita alma. Um sorriso do tamanho do mundo, um rosto que tem tanto de bonito como de iluminado, uns acordes tão deliciosos e harmoniosos e uma voz que vai do angelical ao visceral. Não é fácil adjetivar ou classificar esta figura, que, embora com pouca discografia no seu nome, torna-a tão, mas tão mais preciosa. Ao vivo, a sensação de que ela é, de facto, “Unstoppable” e uma força da natureza é evidente. Só resta afirmar convictamente que se tornou uma honra recebê-la, acarinhá-la, admirá-la e ovacioná-la, algo que fica para a eternidade.