A influência médica de João Lobo Antunes em Portugal e no mundo
Quando se fala dos apelidos Lobo e Antunes juntos, pensa-se, automaticamente, em António, o escritor, e em Paula, a atriz, e sobrinha deste. No entanto, o irmão do primeiro e o pai desta viria a dignificar, de igual forma, esses nomes. João Lobo Antunes, nascido em 1944 e falecido a 2016, foi um dos principais médicos portugueses e um dos mais consagrados neurocirurgiões em todo o mundo, sendo galardoado aqui e lá fora pela sua competência, mas também pelos contributos científicos e literários que trouxe. Foi Lisboa que o viu nascer e crescer, vingar na vida e até na morte, visto que a memória coletiva dos seus companheiros de profissão não deixa esquecer.
João Lobo Antunes nasceu a 4 de junho de 1944, tendo morrido a 27 de outubro de 2016, 72 anos depois, vítima de um melanoma. O seu pai, João Alfredo, era neurocirurgião, tendo-o inspirado a seguir essa profissão. Como irmãos, teve António, o escritor, Pedro, o arquiteto, Miguel, ligado à justiça e à cultura, Manuel, o diplomata, e Nuno, o neurologista. Cresceu numa família endinheirada e letrada e de costumes católicos e conservadores, sendo neto de um membro da Irmandade do Santíssimo e trineto do Visconde de Nazaré. Depois de estudar no Liceu Camões, ingressou na Faculdade de Medicina, acabando graduado no ano de 1968, com 24 anos, tendo presidido a Juventude Universitária Católica, associação política que se opunha ao regime ditatorial vigente. Antes, havia apresentado um programa na RTP aos 15 anos, que o viria a ajudar no controlo futuro das suas emoções, providencial no seu futuro profissional. Os verões eram passados, assim, a estudar, enquanto o seu pai trabalhava, enquanto o resto da família ia a banhos à praia das Maçãs. As suas primeiras experiências profissionais foram desenvolvidas numa casa de saúde de freiras, muitas delas vitimadas com demência. A necessidade de as salvar foi-se transformando neste período, procurando encontrar o ponto de equilíbrio entre a aceitação na irreversibilidade do estado de saúde que tantos que viria a não serem salvos.
Três anos depois, emigrou para Nova Iorque, onde esteve até ao ano de 1984 a exercer neurocirurgia no seu Neurological Institute, e foi aqui que começou a alimentar uma respeitável reputação dentro da sua comunidade médica. Ao mesmo tempo, continuava como investigador, beneficiando de bolsas da Fullbright Program e da Matheson Foundation. Depois deste percurso, acabou como professor na University of Columbia, lecionando neurocirurgia. Foi uma outra fase, em que experienciou a liberdade, perante o ainda subsistente Estado Novo no seu país. Também por isso considerou, quando voltou a Portugal, que muito havia crescido, mais conhecedor, mais conhecido e, seguramente, mais experiente. Entre desaires que o levaram a abandonar alguma presunção que tinha e momentos de gratidão “a um ser supremo”, Lobo Antunes ligava-se à sua veia de estudante como alguém cada vez mais seguro e comprometido com as vidas dos outros, encontrando numa espécie de “ecologia individual” e de apreço pelo silêncio o seu equilíbrio entre casa, o hospital e a universidade.
Quando regressou, viria a tornar-se professor catedrático e membro dos Conselhos Pedagógico e Científico da mesma faculdade em que se licenciou, em Lisboa, mantendo-se intimamente ligado à academia até 2015, onde foi consagrado professor emérito na Universidade de Lisboa. No entanto, a sua função profissional primordial passou pela chefia do serviço de neurocirurgia no Hospital de Santa Maria até 2014, enquanto se manteve como personalidade relevante na sociedade civil, culminando no Prémio Nacional de Saúde, recebido em 2015. Isto nos momentos em que presidiu ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, da Sociedades Portuguesa e Europeia de Neurocirurgia, da Academia Portuguesa de Medicina e de numerosas Comissões de Ética de várias das instituições em que já tinha colaborado, para além da Fundação Champalimaud. Seria um regresso que, no entanto, seria crítico da sua parte, por sentir que, mesmo com as estruturas da democracia implementadas, falta o ímpeto para edificar, perante a má fé das partes decisórias e convidadas para exercer as funções democráticas inerentes ao cidadão.
A presença nos órgãos deliberativos políticos foi, de igual modo, pautada pela integração no conselho estratégico do Partido Social Democrata, entre os anos de 2005 e de 2007, por mandatar as candidaturas presidenciais de Jorge Sampaio (2001) e de Aníbal Cavaco Silva (2011), por chefiar a Comissão Nacional dos Centros de Referência do Ministério da Saúde (2014), e pela presença no Conselho de Estado entre 2011 e o ano da sua morte, 2016. A sua produção intelectual acabou premiada com o Prémio Pessoa, que recebeu no ano de 1996 com o livro “Um Modo de Ser”, e com a fundação do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes em 2004, para além de ser membro correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa em 2015.
João Lobo Antunes deixou registadas as suas experiências e sensações da sua profissão. O medo foi sempre latente, embora encarasse cada cirurgia como uma nova aventura. Era essa forma de estar no seu trabalho que o levava a transformar o medo em energia, canalizada na forma metódica e rigorosa – herdada do seu pai – que o caraterizou como estudante de medicina e que nunca o despreveniu. Assumia horários estritos na hora de estudar, pautados pelo sino da igreja, que o pode ter privado de experienciar mais da vida quotidiana, o que o tornou capaz de ouvir a sua voz interior e de largar o que tinha em prol da sua profissão. Aliás, a profissão vinculava-o ainda mais intensamente à família, embora a ideia original fosse seguir Engenharia e procurasse a bioquímica como palco da sua realização. A decisão foi instantânea, embora se caraterizasse como um médico “feito pela medicina”. A veia intelectual, essa foi formada desde pequeno, pelos livros, que substituíam os brinquedos na hora da diversão. Entendia a educação como “o seu milagre”, que assumiu como a sua principal arma e como imprescindível para qualquer transformação profunda da sociedade.
Foi assim que foi formando um lirismo muito caraterístico da sua identidade na sua vida, algo que humanizou um trabalho muito tecnológico e métrico, rigoroso à boa medida científica. Criou uma mundividência que procurou conhecer as pessoas de perto, mantendo a fraternidade para com os doentes. A compaixão, termo que tanto sublinhou no decurso da sua vida, que tanto reivindicou como importante para as neurociências no geral. O seu conhecimento literário também o permitiu desvendar a dialética da doença-cura de um outro modo, perante o horizonte da morte a acenar o adeus à vida. Foi um conhecimento que se cruzou com um outro, o empírico, aquele que foi adquirindo no decurso das suas experiências. Uma valorização de compreender o outro, de um ponto de vista que conseguia cruzar as suas funções sociais com a sua dimensão biológica, em constante luta pela sobrevivência. Seriam os valores sociais e até religiosos que conseguiam encontrar a sua regulação e a coesão da própria sociedade. A doença conseguiria amenizar o caos que os sentimentos, as emoções, os interesses e as relações pessoais e profissionais formavam, em prol de uma recuperação que se pronuncia a uma só voz.
Durante a sua doença, trocou os papéis. Passou a viver as vicissitudes de um doente, que julgara conhecer tão bem, mas que se tornou supérfluo perante a experiência na primeira pessoa. Esse mesmo instinto pela sobrevivência e um significado acrescido que concedia ao tempo, um tempo vagaroso, mas que sabia acelerar nas piores ocasiões. Lidou com a esperança dessas duas formas, na condição de médico e de paciente, em que a felicidade resultava da transformação da projeção que era feita para o futuro, de que melhores coisas surgiriam. Considerava o otimismo como capaz de ser uma ajuda na luta, no combate, no confronto – termos que inspiram, precisamente, uma guerra – com a doença, perante o poder profético do pessimismo. No entanto, a esperança também nem sempre se via concreta e real, especialmente perante o caminho já desenhado e calendarizado da morte por via da enfermidade. O confronto com o outro, neste percurso, ajuda a que se entenda o que é, de facto, o estado do doente. Lobo Antunes procura ver em “A Morte de Ivan Ilitch”, de Liev Tolstoi, o fundamento desta teoria.
João Lobo Antunes fez, da sua vida e do seu percurso, um caminho para o progresso da medicina, que nunca se remetesse ao bloco operatório, mas que conseguisse sempre algo mais. Foi nesse sentido que procurou conhecer o seu doente como os contextos em que deu aulas e os outros em que pôde contribuir para a sociedade civil. Para este neurocirurgião, a medicina deixou de ser, simplesmente, a salvação do outro, mas poder contemplá-lo com o seu regresso à saúde e, por conseguinte, com uma aproximação ao estado de felicidade. Um regresso que seria eternizado e alimentado pela memória, que, sem ela, conforme dizia, se tornavam “navegadores sem bússola”. A memória como caraterizadora da vida, do percurso de cada um, do bom e do mau, por mais que, dessas experiências, só reste o trago da sua vivência. Deste palco de memórias, deixado por escrito em “Um Modo de Ser” (1997), ou em “Numa Cidade Feliz” (1999), ou ainda em “A Nova Medicina” (2016), fez-se este percurso de prática, mas também de interpretação e de, precisamente, lutar pela sua evolução. A luta com a qual lidou tantas vezes, até na primeira pessoa, e que ainda hoje se repercute quando se fala dos Lobo Antunes.