A intimidade da poesia em Hannah Arendt

por Ana Monteiro Fernandes,    27 Abril, 2020
A intimidade da poesia em Hannah Arendt
Capa do livro / lustração é de Isabel Baraona
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De Hannah Arendt, uma das personalidades mais importantes do séc. XX, conhecemos as suas ideias e asserções políticas. Foi das pensadoras que mais contribuiu para o pensamento acerca do totalitarismo e do que este representa. Agora, podemos conhecer o seu lado poético, graças à edição da colectânea Poemas pelo Sr. Teste, em Janeiro deste ano. Aproveitando a deixa, que tal fazermos uma viagem sobre alguns marcos da sua vida?

De discernimento e intelectualidade livre e independente, Hannah Arendt [1906-1975] distinguiu-se, sobretudo, pelo seu pensamento filosófico-político que lhe valeu louvores mas, também, duras críticas, explicadas já a seguir. Essas críticas só viriam reforçar, no seu caso em especial, o carácter honesto e corajoso das suas reflexões. A autora desejava, acima de tudo, compreender, e não tecer considerações bem adornadas para agradar e granjear mais seguidores. Quanto às suas ideias, lembramos o quanto contribuíram, após a segunda guerra mundial, para o pensamento acerca do totalitarismo em todas as suas vertentes, onde se destaca, essencialmente, Origens do Totalitarismo, de 1951.

Outra obra de suma importância foi, também, A condição humana, publicada sete anos depois. Partindo da Grécia Antiga, Arendt relaciona a condição humana a três actividades fundamentais — labor, trabalho e acção. O labor está relacionado com as nossas necessidades vitais, o trabalho permite a criação de objectos e a transformação da natureza, a acção relaciona-se com toda a actividade política do homem.

A ideia que causou mais celeuma e a que mais commumente é recordada é, sem dúvida, o seu conceito de ‘Banalidade do Mal’, resultante da sua famigerada cobertura do julgamento do nazi Adolf Einchmann, para a New Yorker, que posteriormente a conduziu ao livro Eichmann em Jerusalém: uma reportagem sobre a banalidade do mal, de 1963. Este conceito, basicamente, defende o perigo latente que se instala quando o indivíduo passa a cumprir ordens superiores sem as questionar pessoalmente, sem as colocar em perspectiva, apenas porque assim tem de ser. As ordens têm de ser cumpridas e, nesse ângulo, está-se a fazer o correcto porque há a noção de dever cumprido ou porque se pode ser promovido ou subir de escalão a nível laboral. Nestes casos, a noção pessoal do indivíduo é relegada em prol de uma ordem superior, sem se pensar no que esta representa à luz da nossa concepção do bem e do mal.

Segundo Arendt, os maiores crimes humanitários perpetrados advêm dessa mesma questão. Estamos a falar de indivíduos comuns que, quando confrontados com um crime em maior escala, se defendem desta forma, “apenas cumpria ordens”, banalizando e ajudando a disseminar, sem questionamento, o terror e o mal. Faz-se algo, apenas porque, colectivamente, assim é costume e, consequentemente, há uma descaracterização própria que permite à pessoa fazer o que tem de se fazer, ao mesmo tempo que não se envolve enquanto ser e indivíduo, apenas como executante. 

Esta noção, e até porque a própria Hannah Arendt era judia, valeu-lhe críticas porque foi, erroneamente, entendida como uma desculpabilização ou atenuar de culpas de Eichmannn enquanto indivíduo. Mas o que a própria filósofa queria demonstrar encontra-se muito bem explanado, sucintamente, no filme homónimo de 2013, de Margarethe von Trotta, quando a sua personagem homóloga frisa, “esta desculpa típica dos nazis [só cumpria ordens], torna claro que o maior mal do mundo é o mal perpetrado por ninguém. Males cometidos por homens sem qualquer motivo, sem convicção, sem razão maligna ou intenções demoníacas, mas por humanos que se recusam a ser pessoas. E é este fenómeno que eu chamei a ‘banalidade do mal’”. 

lustração é de Isabel Baraona. Fotografia de Sr teste

Este é, sobejamente, o lado mais conhecido da filósofa. Há, porém, um outro que não é tão lembrado. Falamos, sim, da Hannah Arendt poetisa que – embora não possamos compará-la (o que até seria despropositado para o caso) aos grandes poetas mundiais, essencialmente pela forma – vale muitíssimo, sobretudo, pela profundidade, sensibilidade e maturidade que imprimiu nos seus versos.

Um dos principais aspectos para os quais Ricardo Ribeiro, mentor da Sr. Teste, chamou a atenção e que é notório ao longo do livro que agrega mais de 40 poemas, é a sensação de serem, quase, “como páginas do diário. Muito ligados à sua biografia.” Isso não só é notório como também há o complemento de considerações íntimas, quase confessionais, sobre o que significa a passagem do tempo (principalmente), o negro da noite, o que significa uma sensação de desorientação, o amor. No fundo, o discorrer de sentimentos e emoções que estão na base da condição humana. Aqui, mais do que o vislumbre de uma Hannah Arendt filósofa-política, temos uma Hannah Arendt que perscruta a geografia da interioridade. 

Passo os dias desorientada.

Pronuncio palavras sem peso.
Vivo numa escuridão cega.

Careço de rumo na vida.

Sobre mim paira monstruoso,
como um novo pássaro enorme e negro,
o resto da noite.

Esta nova edição, em específico, traduzida por José Aigner e com ilustrações – minimalistas no traço mas com o foco no corpo e na pele – de Isabel Baraona, teve como guia uma outra edição anterior preparada pela Piper Verlag. Agrega poemas de dois períodos específicos da vida de Arendt, os dois períodos em que escreveu, efectivamente, poesia. O primeiro corresponde à sua juventude – de 1923 a 1926,  dos 17 aos 20 anos – e o segundo a um período mais adulto – de 1942 a 1961, dos 36 aos 55 anos. Ou seja, se contarmos o tempo que vai desde 1923 a 1961, são 38 primaveras que passam pelo seu desenvolvimento enquanto pessoa adulta e culminam quando a autora tem já 55 anos – um período de consagração de maturidade. Relembrando que a autora morreu quando tinha, apenas, 69 anos de idade, temos aqui a prova de que, paralelamente, a poesia esteve sempre no seu encalço quando começou a estruturar e a sedimentar o seu pensamento pelo qual ficou conhecida. Além da via da interioridade humana podemos, também, afirmar que estes poemas são como páginas de diário porque estabelecem a ponte com as grandes personalidades que influenciaram Arendt não só intelectualmente mas também a sua vida, como, por exemplo, Walter Benjamin, Heidegger, Hermann Broch, Erich Neumann e Goethe.  

Sim, foi uma relação bastante improvável mas verdadeira. Hannah Arendt, judia e a filósofa que mais contribuiu para a denúncia dos ideais nazis, e Heidegger, filiado do partido nazi, foram amantes. E pode-se dizer que, para ambos, foi talvez a relação que mais marcas deixou pelos mais variados motivos. Em primeiro lugar, Hannah Arendt era, apenas, uma jovem estudante caloira quando conheceu o então professor universitário de quem era aluna, em 1924. Heidegger tinha já 35 anos, era casado e tinha filhos. Para a jovem e inteligente Hannah, o professor mais velho representava fascínio, orientação e estímulo intelectual, além do sentimento de protecção. O pai da filósofa morreu de sífilis quando esta ainda era muito criança e a sua mãe, consequentemente, viajava muito e ausentava-se frequentemente. Para Heidegger, casado com uma pessoa bastante conservadora e com ideais em tudo opostos aos de Hannah, a jovem aluna representava uma lufada de ar fresco e um novo estímulo juvenil para a sua vida. Esta primeira fase da relação, que viria, mais tarde, a transformar-se numa amizade que duraria até ao final da vida da filósofa, chegaria a um fim, até porque teve lugar nas vésperas da subida de Hitler ao poder, em 1933. 

Elzbieta Ettinger descreve a fase do rompimento desta forma, no livro Hannah Arendt e Martin Heidegger, de 1995, “Em Agosto de 1933, quatro meses depois da nomeação de Heidegger como reitor da Universidade Albert Ludwig de Friburgo, da sua filiação no Partido Nazi e do famigerado Discurso de Posse, onde manifestou o seu apoio e se identificou com a ideologia do partido, Hannah Arendt abandonou a Alemanha. Arendt, é certo, tinha já ponderado a possibilidade do exílio e fora até temporariamente detida pela polícia de Berlim, mas aquela declaração pública de lealdade a Adolf Hitler destruiu todas as ilusões que ainda alimentasse sobre Heidegger e pode bem ter precipitado a sua decisão. Doravante ela acusaria os intelectuais alemães, Heidegger incluído, de apoiarem Hitler, de traírem a cultura ocidental, de agirem cega e cobardemente.” A relação de Hannah e Heidegger foi pautada, portanto, por sentimentos de fascínio, amor, desilusão, incompreensão e, mais tarde, numa segunda fase, amizade. Por aqui depreendemos que seria normal a influência dessa relação nos poemas que vemos nesta nova colectânea. Os versos que se seguem são disso um exemplo, fazendo lembrar o carácter clandestino da relação de ambos,

Porque me dás a mão
com timidez e às escondidas?
Tão longínquo é o país de onde vens?
Não conheces o nosso vinho?

Vives em tamanha solidão
que não conheces a nossa tão bela ferocidade
quando estamos um no outro
com o coração e com o sangue?

Não conheces as alegrias diurnas
quando se vai com o amado?
Nem conheces a despedida vespertina
de quem vai de luto sofrendo?

Vem comigo e deseja-me,
não penses nos teus medos.
Conseguirás ser sincero?
Vem, toma e dá!

Logo percorreremos os campos dourados
‒ papoila e trevo silvestre –
mais tarde, o mundo inteiro
nos fará sofrer

quando sentirmos que a recordação
sopra com força o vento
quando, estremecendo, a nossa alma
suspirar pela ternura sonhada.

Foi no primeiro período da relação entre os dois que Heidegger publicou Ser e Tempo, em 1927. Fala-se, por isso mesmo, da suposta influência de Hannah nessa obra. Finalmente, numa carta de 1960 que não lhe chegou a enviar, a filósofa escreveria, “fui fiel e infiel, sempre com amor.”

Outra grande influência para Arendt, pautada, igualmente, por fascínio intelectual, foi, sem dúvida, Walter Benjamin, apesar de algumas diferenças a nível teórico. Igualmente judeu alemão, consta-se que o ensaísta e filósofo tenha cometido suicídio após ter cruzado os Pirenéus em fuga, já em Espanha, por medo de voltar a ser deportado. Oficialmente é o que se sabe, embora a sua morte sempre estivesse envolta em mistério. Aliás, uma das suas últimas cartas era dirigida a Hannah Arendt a quem, muito provavelmente, se juntaria nos Estados Unidos, para onde grande parte dos intelectuais alemães judeus escaparam e tentaram escapar. Perturbada com a notícia da morte, dedicou-lhe este poema póstumo, 

Se remotas são as vozes, próxima está a angústia:
aquelas vozes daqueles mortos
que enviámos como emissários
que nos precedem
para nos escoltarem até ao entorpecimento.

Está disponível, aliás, uma palestra dada pela autora sobre Walter Benjamin, de 1968, na Goethe House, em Nova Iorque. Retomando a morte, não é só no poema dedicado a Walter Benjamin que o tema está expresso.  Nos versos que dedicou a Hermann Broch, autor de A criada Zerlina, podemos ler,

Mas como se vive com os mortos? Diz,
onde está o som que atenua o trato com eles?
Qual é o gesto quando, guiados por ele,
desejamos que a proximidade nos recuse?

De alguma forma, faz lembrar imenso esta outra estrofe de outro poema,

Mortos: que quereis?
Não tereis pátria e morada no Hades?
Não tereis por fim a paz dos abismos?
Água e terra, fogo e ar vos são devotos
como se um poderoso deus os tivesse possuído (…)

Podemos perceber que há, aqui, o dilema de tentar enquadrar a ideia de morte enquanto finitude, com a constante dialéctica (saudades, vontade de proximidade) que mantemos com aqueles que nos são queridos e apenas estão vivos em nós. De alguma forma, nem que seja pelas lembranças, essa morada no “Hades” nunca chega a ser definitiva, “Mortos: que quereis?/Não tereis pátria e morada no Hades?”. Ou, então, não podemos descurar que há aqui um fascínio maduro pelos tantos que a morte já guarda, crescendo assim o sentimento de mistério de querer descobrir os segredos que esses quantos sabem. Pegando nesta deixa, foi também desta forma que se despediu de Erich Neumann, psicólogo e escritor alemão, utilizando marcas bem vívidas e impressões físicas na qual a mão assume grande importância, “Que guardo de ti?/Nada mais do que uma mão,/ nada mais do que uma trémula expectativa dos teus dedos.” Aliás, a referência às mãos está bem expressa em algumas das suas poesias.

É por todas estas nuances que podemos afirmar que os poemas de Hannah Arendt se assemelham a páginas de diário. Não é sentimentalismo, não é uma cronologia de eventos, mas está em constante diálogo com aqueles que admirou e fizeram parte da sua vida, não os deixando, assim, em esquecimento. É íntima, claro, mas com maturidade, o que faz uma diferença tremenda. Essa maturidade está expressa, igualmente, na forma como aborda a tristeza e como contrapõe as feridas contemporâneas com o passado e o futuro. Não esquece o abismo da vida, mas tampouco se entrega de forma total a ele, deixando sempre uma pequena janela aberta para a esperança, ou para o mero desejo da persistência poder sobreviver.

Chegarão as horas
em que velhas feridas,
essas que esquecemos em tempos,
ameaçaram consumir-nos.

(…)

Transcorrerão as horas
e passarão os dias.
Mas um desejo permanecerá:
a mera persistência

Na forma, embora muitos poemas sigam um estilo livre com seis ou mais versos numa só estrofe e, muitas vezes, as ideias ou a estrutura desses mesmos versos acabem nos versos seguintes, geralmente há uma preferência pelas quadras, embora a métrica seja totalmente livre. Mais do que por rimas, ausentes (temos de ter em conta que não estamos a ler os versos na língua original em que foram redigidos), os versos valem pelo conteúdo e asserções sobre o que é escrito. Não é uma Hannah Arendt política que temos aqui, é a Hannah Arendt mais confessional e pessoal. Nunca deixa, no entanto, de apelar à união do colectivo e à sua liberdade. 

Podemos, já, estabelecer duas vias, e é aqui que reside a principal diferença entre a Hannah Arendt mais jovem dos primeiros poemas e a mais madura — a primeira fase era caracterizada por uma introspecção pessoal, a segunda fase por uma introspecção que se abre ao outro, ou melhor, à introspecção do outro. É marcada pelas vicissitudes e pela sua via dolorosa, mas tenta compreender esse lado à luz da condição da humanidade. Se acreditarmos na máxima de que todas as posições ou acções têm um pendor político, então sim, esse lado não é totalmente posto de lado. Mas é utilizando uma outra linguagem, a linguagem da poesia, que estabelece a ponte e a união tendo em vista a alteridade. Basta recordar que, para Sophia, a sua maior afirmação política foi, mesmo, quando declamava poesia para a população — sendo, por isso mesmo, poesia e democracia elos inquebráveis — além de que era sobejamente conhecido o amor de Hannah Arendt por poetas como Rilke, Auden e Brecht. Para percebermos melhor este ponto, convém recordar o que a própria escreveu acerca da poesia, 

A poesia, cujo material é a linguagem, é talvez a mais humana e a menos mundana das artes, aquela cujo produto final permanece mais próximo do pensamento que o inspirou. A durabilidade de um poema resulta da condensação, de modo que é como se a linguagem falada com extrema densidade fosse poética por si mesma.

É verdade, sim, que Hannah Arendt nunca publicou os seus poemas em vida, mas também não é menos verdade que reconhecia e valorizava a sua máxima importância para a espiritualidade humana e para a compreensão e reconciliação com o sofrimento. Neste ponto em especial, seria algo de extrema importância para uma sociedade que viveu em primeira mão as atrocidades da Segunda Guerra Mundial.  No que diz respeito a si própria, desde cedo sentiu a perda, a morte do pai, e, consequentemente, a solidão. O sentimento poético, esse, sempre esteve lá, e houve a necessidade lhe dar uma expressão. Outra marca bem notória é a cultura classicista greco-romana que a autora demonstra ter, como já vimos nos exemplos anteriores. Para isso tendo contribuído, e muito, o facto de ter traduzido textos e poesias gregas e latinas, já desde os seus 15 anos. Não deixa de ser curioso que, de alguma forma, encontremos, sempre, referências à mitologia.

Quanto à edição da Sr. Teste, bastante bem conseguida tanto pela tradução como pelas ilustrações (é sempre de louvar dar a conhecer este lado não tão abordado de Arendt) a única coisa de que, talvez, o leitor sinta falta é de uma pequena nota introdutória ou de contextualização. No entanto, podemos sempre alegar que quem lê tem a liberdade de se embrenhar e sentir os poemas por ele próprio.

Direito e liberdade:
Irmãos, não vacileis,
diante de nós resplandece a aurora!
Direito e liberdade:
Irmãos, ousemos,
amanhã venceremos o demónio!

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