A liberdade na vida e obra de Jorge de Sena

por Lucas Brandão,    11 Outubro, 2018
A liberdade na vida e obra de Jorge de Sena
“Jorge de Sena / A Verdade dos Dedos (113)” (1949), fotografia de Fernando Lemos.
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Jorge de Sena nasce na tradição literária de um certo rasgo revolucionário, contra as estruturas amorfas e repressivas do Estado Novo. É como professor universitário e como tradutor que se sustenta, mas como poeta e criador de narrativas que se vê realizado. No entanto, viu-se distante de Portugal desde 1963, quando se naturalizou como brasileiro. Essa era uma distância que se via diminuída quando sentia e escrevia sobre as suas origens, que a lusofonia sabia aproximar e acolher. Entre a engenharia, a escola naval e a literatura, o autor descobriu-se de várias formas num só sentido: o de uma vida recheada e devidamente realizada.

Jorge Cândido de Sena nasceu a 2 de novembro de 1919 em Lisboa. Os seus pais tinham origens da alta burguesia, entre a linhagem aristocrata do pai e o sucesso comercial da ascendência da mãe. Numa infância que se assume como solitária e entristecida, foi o pilar do seu crescimento e da sua abertura ao mundo, de uma forma mais analítica e interiorizada, embora imaginativa. Enquanto completava o ensino secundário, no Liceu Camões, foi aluno do poeta Rómulo de Carvalho, que o orientou numa inspiração lírica e literária, que conciliava com a paixão pelo piano, incutida pela sua mãe. No entanto, o desejo de se tornar oficial da marinha, à imagem do seu progenitor, levou-o, aos 19 anos, a entrar na Escola Naval, encabeçando a lista de ingressos no seu curso. Visitou, assim, alguns dos portos correspondentes ao império ultramarino – como Lobito, Luanda ou São Tomé – na sua viagem de instrução no navio-escola Sagres. A grandiosidade do oceano e o movimento constante catapultaram o então jovem, bastante dotado intelectualmente, mas pouco hábil na componente do esforço físico. Por via disso, seria excluído da Marinha, algo que lhe viria a desgostar bastante.

Para compensar esse desaire, voltou-se para a Universidade, estudando Engenharia Civil na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Não sendo fascinado pela área – tendo até reprovado durante um ano letivo, no qual cumpriu serviço militar -, este foi um período de franca produção literária, entre artigos, poemas e ensaios. Foi, também, uma fase em que lançou, sob o pseudónimo Teles de Abreu, a sua primeira obra, “Cadernos de Poesia” (1940), com o suporte dos seus amigos e também poetas Ruy Cinatti e José Blanc de Portugal, que já o ajudavam a custear os estudos, depois de Sena ver o seu pai e a sua avó materna partirem. Dois anos depois, “Perseguição” consuma um percurso que se viria a revelar, essencialmente, literário e lírico. Ainda no Porto, num baile académico, viria a conhecer a sua futura esposa, Maria Mécia de Freitas Lopes, irmã do académico Óscar Lopes, casando-se em 1949. Deste par, resultariam nove filhos, prova de uma relação que se mostrou sólida e recíproca, especialmente perante as crises e atribulações de Sena.

Vens a mim
pequeno como um deus,
frágil como a terra,
morto como o amor,
falso como a luz,
e eu recebo-te
para a invenção da minha grandeza,
para rodeio da minha esperança
e pálpebras de astros nus.

Nasceste agora mesmo. Vem comigo.

“Perseguição” (1942)

No entanto, escrever não o sustentava a si nem aos seus, pelo que passou a assumir as funções de engenheiro em 1947, numa carreira que terminaria em 1961, dois anos depois de partir para o Brasil. Começou como engenheiro civil na Câmara Municipal de Lisboa, onde trabalhava no pelouro da urbanização e das estradas. Procurava intercalar estas funções com responsabilidades na direção literária em editoras e revisão textual, direcionando o seu tempo para alguma investigação e ganhando algum dinheiro extra. No entanto, sentiu-se bastante constrangido pelo regime vigente em Portugal então, sentindo a censura, a opressão e as intrigas subjacentes de forma direta. Encerra, assim, a década de 40 com várias obras escritas, tanto investigativas como líricas, para além de colaborar na revista “Mundo Literário” entre 1946 e 1948, com contos e críticas de cinema, na “Presença”, na “Aventura” e na “Seara Nova”.

Jorge de Sena, ilustrado por Victor Couto

Com o decorrer deste tempo e com várias críticas tecidas, embora subtilmente, ao estado das coisas no país, Sena partiu para o Brasil, exilando-se lá em agosto de 1959. Até lá, sendo independente em relação aos círculos académicos existentes e tendo pouco tempo para se dedicar à escrita, acabou por escapar à prisão em março desse ano, numa tentativa fracassada de revolução, perpetrada pelo Movimento Militar Independente. Chegou como convidado da Universidade da Bahia e do próprio governo brasileiro, anterior à futura ditadura militar, para um colóquio de estudos luso-brasileiros. Na sucessão do certame, foi convidado para ser catedrático de Teoria da Literatura em São Paulo, acabando por se fixar lá como cidadão brasileiro, por questões burocráticas. Apesar de construir alguma reputação académica, sentia saudades do seu país, embora ressentido pelo seu estado naquele contexto. Como não podia regressar, foi lecionando no Brasil, como em Araraquara, também em São Paulo, onde deu aulas de Literatura Portuguesa. Mesmo assim, tornou-se co-fundador da Unidade Democrática Portuguesa (UDP) e membro da redação do periódico “Portugal Democrático”, articulando essas funções com as atividades que desenvolvia em solo brasileiro, em prol da causa revolucionária. Pouco tempo depois, viria a defender a sua tese de doutoramento em Letras, com o título “Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular” (1964).

Mesmo com um sentido patriótico muito apurado, sentia-se realizado e comprometido com a causa literária, superando os preconceitos que o rotulavam como engenheiro. A ficção conheceu o seu apogeu com “Sinais de Fogo” (1979, um romance de cariz autobiográfico e lançado postumamente, cruzando as vivências portuguesas e a reconstrução da sua sociedade com a Guerra Civil de Espanha), “Os Grão-Capitães” (1971) e “Novas Andanças do Demónio” (coletânea de contos onde se incorpora “O Físico Prodigioso”, de 1966, numa narrativa erótica e sobrenatural); e a poesia com “Metamorfoses” (1963). Foi precisamente a referida ditadura militar que fez com que Sena abandonasse o Brasil, aceitando um convite vindo da Universidade do Wisconsin para se mudar para os Estados Unidos em 1965. Deu aulas de Literatura de Língua Portuguesa e, em dois anos, tornou-se catedrático do seu Departamento de Espanhol e Português. À entrada dos anos setenta, passou a trabalhar na Califórnia, como catedrático de Literatura Comparada da sua universidade. Foram tempos menos calorosos do que aqueles que viveu no Brasil, sentindo-se intelectualmente só e desprovido de convívio, não estando identificado com o espírito do meio académico norte-americano. Procurava, desta forma, manter correspondência com autores portugueses seus contemporâneos, para além de se incluir em núcleos de emigrantes e outras associações culturais.

Foi então que uma nova luz, uma nova esperança se fez sentir no seu íntimo: o 25 de abril tinha ocorrido em Portugal e o então professor quis voltar a Portugal de vez, entusiasmado com a possibilidade de colaborar na construção da nova democracia. Porém, e durante uma visita anterior a que sequer preparasse a mudança de ares, não recebeu convite de nenhuma instituição académica e/ou cultural para, com ela, colaborar, pelo que decidiu ficar pela Califórnia. As suas angústias seriam sentidas também com um neto que viria a ter com complicações cardíacas, para além da instabilidade política que sucedeu a revolução. Seria precisamente neste estado do país americano que viria a morrer, a 4 de junho de 1978, vítima de cancro, aos 68 anos, após complicações com a vesícula. Só postumamente, de forma inglória, seria homenageado em Lisboa, pela autarquia onde trabalhou, na zona da Ameixoeira, e só em 2009 seria trasladado para o Talhão dos Artistas, no Cemitério dos Prazeres.

Vários dos seus trabalhos literários, entre ensaios, poemas e romances, só seriam lançados postumamente, muito por via de Mécia de Sena, a sua viúva. Para além disso, muita da correspondência seria publicada, com personalidades como José Régio, Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço e Sophia de Mello Breyner. Faria a ponte entre estes, com quem contactou diretamente, e os que estudou, como Luís de Camões e Fernando Pessoa, para além de outros tantos ligados à literatura inglesa, ao teatro e ao cinema. Escreveu em variedade e em quantidade, com tragédias às quais se sucederam contos, críticas, romances, poemas e peças (destaca-se “O Indesejado”, de 1945). Liderou conferências e fundou programas radiofónicos e iniciativas artísticas. Postumamente, também receberia a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada em 1978, respetivo aos serviços prestados à comunidade portuguesa.

Postal enviado por Jorge de Sena a Sophia de Mello Breyner © D.R. (retirado do blog Folha de Poesia)

Entre tudo aquilo que se possa dizer sobre Jorge de Sena, introspetivo de sentimentos e interventivo em causas, sente-se a sua poesia como uma reflexão crítica e sustentada sobre o ser humano e a sua liberdade. Percecionando o lugar do homem no mundo, o seu contexto é objeto de meditação, meditação essa que cruza a poesia vinda de várias proveniências, no cruzamento da humanidade com o tempo. Uma consciência ativa e desperta para as vicissitudes do ser humano, muito por via dos tempos em que viveu, dos regimes com os quais conviveu e em relação aos quais necessitou de manter distância. Tanto “Coroa da Terra” (1946) e “A Pedra Filosofal” (1950), como “As Evidências” (1955), “Fidelidade” (1958) e “Post-Scriptum” (1982-85), refletem esta preocupação quase marxista pela emancipação em prol da sua liberdade, preocupação que é estudada nos seus ensaios, em perspetivas retrospetivas, introspetivas e prospetivas, sendo elas diferenciadas e diferenciadoras. O respeito pelos cânones faz-se sentir, mas não é suficiente perante a necessidade de obter respostas na abordagem filosófica sobre a liberdade. A espiritualidade não chega para poder colher a ação, a prática, a resolução dos problemas. Cruza-se a subjetividade humana com a objetividade das suas questões, embora as respostas não as esclareçam.

Deixai que a vida sobre vós repouse
qual como só de vós é consentida
enquanto em vós o que não sois não ouse

erguê-la ao nada a que regressa a vida.
Que única seja, e uma vez mais aquela
que nunca veio e nunca foi perdida.

Deixai-a ser a que se não revela
senão no ardor de não supor iguais
seus olhos de pensá-la outra mais bela.

Deixai-a ser a que não volta mais,
a ansiosa, inadiável, insegura,
a que se esquece dos sinais fatais,

a que é do tempo a ideada formosura,
a que se encontra se se não procura.

“As Evidências” (1955)

Jorge de Sena transporta o fenómeno, a ocorrência, o efeito da liberdade para o auge daquilo que é a sua vida e obra. As atribulações de uma vida a sós, embora numerosa naquilo que foi a sua família, transportou-o para um sofrimento que se marcou na opressão. A liberdade foi sempre o valor que o fez mover e o levou a mexer até aos mais altos voos da perceção humana. De professor a dramaturgo, de poeta a crítico, Sena percorreu o caminho de uma vida agitada, sem a estabilidade de outros tantos, mas com a irregularidade necessária para, na sua literatura, oferecer uma vista planetária.

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