A luz e as trevas

por Leonardo Cruz,    6 Novembro, 2022
A luz e as trevas
Ilustração de Natacha Costa Pereira
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“Encontrei a luz na escuridão
Esperei, mas não foi em vão”

Marco Borges 

“Suspensão da Descrença” (Suspension of Disbelief), segundo a Wikipedia, refere-se à vontade de um leitor ou espectador de aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, mesmo que elas sejam fantásticas, impossíveis ou contraditórias.

Por exemplo, para podermos usufruir do filme “Relatório Minoritário” (adaptação de Steven Spielberg de 2002 de um conto de Philip K. Dick de 1956) temos que “acreditar” ser possível, em 2054, a existência de três humanos com capacidades psíquicas especiais, chamados “Pre-Cogs”, que preveem crimes através de visões do futuro, o que permite reduzir a zero a taxa de homicídios. Porém, até para a “suspensão da descrença” tem que haver uma lógica. Mais ou menos à hora e meia de filme, há uma cena de chuva. E qual é o dispositivo inovador que aquela sociedade evoluída tem para se proteger? O chapéu-de-chuva. O bom e velho chuço. A não ser que a Washington da segunda metade do séc. XXI fosse um refúgio sagrado para hipsters ou clones de Mary Poppins, seria de supor que, no meio de toda a parafernália tecnológica daquele contexto, já deveria ter sido inventado algo que não encharcasse as pernas do joelho para baixo sempre que cai água do céu.

Outro exemplo: se, há uns anos, eu dissesse aos meus amigos mais próximos que no sábado anterior tínhamos ido para a discoteca mais movimentada de Albufeira a bordo de um objeto voador em forma de Pingu — o pinguim antropomórfico — e que de lá eu saíra de braço dado com a Monica Bellucci, a sua descrença suspender-se-ia apenas até à parte da viagem. Por um lado, porque eles provavelmente nem saberiam como haviam chegado ao clube noturno, por outro, porque a probabilidade de eu abandonar o espaço em tal companhia era muito perto de zero e, a acontecer, talvez só possível num universo paralelo em que eu fosse taxista.

Falei num conceito em que pomos de parte o cepticismo apenas para agora afirmar que nunca tive de aplicá-lo às histórias que o meu avô Manuel me contava. Foi a pessoa mais humilde que conheci e nunca lhe vi necessidade de acrescentar pontos aos contos que partilhava com o genuíno gosto de fazer sorrir os outros.

Uma dessas histórias remonta sensivelmente à altura em que Philip K. Dick escreveu “Relatório Minoritário”, e passa-se na sua pequena aldeia da zona Oeste. Naquele tempo a noite era plena, interrompida por pouca ou nenhuma luz artificial nos espaços públicos, ou mesmo em alguns privados. Os caminhos que ligavam as povoações da província eram esconsos, escuros e, pelo menos para as gerações mais recentes, assustadores. Aos eventuais larápios juntavam-se diversas ameaças: seres fantásticos da mitologia popular, como os Lobisomens ou as Sogras, e outros, menos lendários que perigosos, a que davam o nome de Pides. Era nesse cenário que um dos homens da aldeia viajava (a pé, claro) por entre o breu das noites frias que o álcool no bucho ajudava a esquecer. De seu nome Rafael tinha como costume passar várias horas onde quer que alguém servisse um copo de vinho (oferecido ou a pagar), e uma particularidade que o tornou imortal, sem ele saber, e que o traz desde aquele período até ao leitor que aqui o conhece. Sempre que percorria os seus trajetos noturnos no meio dos pinhais que dividiam os povoados, fingia acompanhar-se por alguém. As conversas protagonizadas pelas duas personagens (uma real, outra não) eram audíveis num raio de vários metros, porquanto Rafael se esforçava para isso:

— Ó Rafael!

— Diga, Sotor!

Esqueci-me de o referir: o fantasioso acompanhante de Rafael era nada mais nada menos que um “Sotor”. Não se trata de um pormenor: falamos de uma era em que este país de doutores os tinha em escassez. Nenhuma alma mal-intencionada se atreveria, assim, a chegar perto desta dupla.

Um “pensador excessivo” (é assim que o Google traduz overthinker), como este neto do meu avô, encontra significados que talvez não fossem originalmente propositados. A luta entre luz e trevas, tão antiga como a própria humanidade, foi sempre revestida das mais fantásticas alegorias: desde os primeiros humanos, através de representações divinas do Sol e da Lua, passando pelos livros sagrados, da literatura mais erudita à cultura popular, da Guerra das Estrelas até ao “êxito” “musical” de Marco do primeiro Big Brother. A história de Rafael que o meu avô contava relata o modo como um homem combatia o medo das trevas através de um amigo imaginário. E, se isto lembra fábulas mais conhecidas, religiosas ou outras, é só porque é apenas mais uma forma de narrar a ancestral luta entre bem e mal (do ponto de vista do bêbado a sua integridade física seria o bem e as eventuais ameaças o mal)

Para mim essa história é muito mais do que isso. A sua castiça comicidade motivou a última conversa que tive com o velho Manuel. Naquela cama de hospital onde o seu rosto magro e pálido respirava com dificuldade, tentei animá-lo com uma das perguntas mais idiotas de sempre.

— Avô, como se chamava mesmo aquele homem que fingia falar com um “doutor” quando andava bêbado à noite, na tua aldeia? Aquele que dizia: “Ó Rafael! Diga, Sotor!”.

A resposta veio lenta, penosa, sussurrada. E demasiado óbvia.

— Rafael.

O meu sorriso envergonhado foi compensado pelo ligeiro esgar de alegria, um vislumbre de brilho no olhar que eu jamais esquecerei e que, como as parábolas mais lamechas, me fez querer muito acreditar na existência de um “Sotor” imaginário que acompanhasse o meu avô no percurso tenebroso que tinha à sua frente.

Passados estes anos, continuo, como todos nós, tentando encontrar a luz sempre que as trevas ameaçam. Embora, na realidade, quando a estrada é mais solitária, não preciso de fazer uma segunda voz. Tenho as histórias do meu avô para me fazerem companhia.

Volto ao “Relatório Minoritário”. Quando a personagem principal John Anderton visita a Drª Iris Hineman, a criadora do sistema de “Pré-Crime” diz-lhe:

— Às vezes, para vermos a luz, temos de nos arriscar nas trevas.

Estas palavras servem tanto para a vida como para quando tentamos escrever crónicas. E também para um homem embriagado que procura matar a sede enquanto caminha numa noite escura, ora bem.

Nunca caminharás sozinho, Rafael.

Paz para todos e que Sotor vos acompanhe.

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