A memória de Miguel Portas na esquerda portuguesa
Este artigo faz parte de uma série de textos sobre figuras políticas relevantes da sociedade portuguesa. Álvaro Cunhal, Diogo Freitas do Amaral, Francisco Sá Carneiro, Mário Soares, Miguel Portas e Ramalho Eanes foram as figuras escolhidas.
Miguel Portas é um dos rostos mais recordados pela esquerda em Portugal, tendo falecido em 2012, com somente 53 anos, vítima de um cancro no pulmão. Morreria em Antuérpia, cidade onde exerceu funções como deputado europeu, após ter trabalhado para a criação e solidificação de um movimento de esquerda em Portugal. Representou-o no país e na Europa: foi o Bloco de Esquerda. No entanto, o seu percurso seria muito prolongado, apesar da vida lhe ter sido encurtada. No polo oposto, do ponto de vista político, do irmão, Paulo, que seria a grande figura do CDS-PP no século XXI, Miguel não deixaria de marcar a sua presença na maturação da esquerda portuguesa.
Miguel Sacadura Cabral Portas nasceu a 1 de maio de 1958, no dia do Trabalhador, um dia, desde logo, conotado com a esquerda. A sua educação teve um forte pendor católico e o próprio admitia que alterava o foco da sua devoção de Deus para o homem, aquando da sua afiliação partidária. Um sentimento de esquerda que começou cedo, desde logo quando entrava em choque com a mãe, a autora Helena Sacadura Cabral, por um forte instinto humanitário. Estudaria na Universidade Técnica de Lisboa, onde se licenciou em Economia. Seria aqui que estabeleceria os primeiros contactos com o Partido Comunista, nomeadamente na sua União dos Estudantes Comunistas. Com somente 18 anos, chegaria à sua comissão central, acumulando estas funções com a representação estudantil e associativista no ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão). As causas sociais e culturais foram sempre aquelas, porém, pelas quais mais se moveu, sendo animador sociocultural até ao ponto em que o jornalismo lhe abriu outras oportunidades profissionais. Escreveu no Expresso a partir do ano de 1988, chegando a editor internacional da Expresso Revista, tendo continuado no jornalismo com a direção do semanário Já, nos anos 90, para além de ser cronista no Diário de Notícias e no Sol, aqui já neste século. Seria também autor de algumas séries para televisão e de livros, mas a política seria o veículo mais possante dos seus valores e das suas causas, visando um movimento de esquerda para a sua cidade, Lisboa. No entanto, sempre se considerou jornalista.
Antes da Universidade, Miguel Portas já tinha sido detido pela PIDE, quando envolvido no Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa. Era comunista de convicção e de valores, mas sairia do PCP em 1989, partido para o qual entrou com 15 anos, após a reconstrução da estrutura partidária (a Perestroika) que adveio do coração do comunismo partidário, da Rússia – então URSS – liderada por Gorbachev. No futuro, compararia a vida de militante no PCP com a Igreja, na medida em que funcionava como um modo de vida, inspirado pela disciplina e pelo rigor da prática religiosa. Numa ala menos alicerçada nos valores que fariam o PCP impor-se na sociedade, ainda nos anos 60 e 70, viu grande parte da sua atividade não ser correspondida pelos seus camaradas. No entanto, não ficaria quieto e procuraria traduzir os seus valores de esquerda, livres da tradição soviética e voltados para uma visão europeísta e progressista, em diversos projetos. Entretanto, seria mesmo assessor de Jorge Sampaio, então autarca em Lisboa, entre 1990 e 1991, nomeadamente nos pelouros da cultura e do urbanismo. No ano seguinte, foi um dos responsáveis pela criação da Plataforma de Esquerda, onde estiveram nomes como José Jorge Letria, José Barros Moura, Daniel Oliveira, Mário Lino ou Joaquim Pina Moura, dissidentes do PCP. Em 1994, e após um acordo eleitoral autárquico estabelecido com o PS, Miguel Portas e outros dos seus integrantes ligados à sua ala mais à esquerda, criou uma outra proposta, desta feita a Política XXI, com o Movimento Democrático Português, representada por Daniel Oliveira. O seu manifesto político era claro: um diálogo entre uma via marxista e a social-democracia das raízes, que advogava valores de esquerda.
No entanto, no ano de 1999, uma outra força partidária à esquerda surgiu. Foi o resultado de uma junção entre a Política XXI, a União Democrática Popular, de pendor marxista, encabeçada por Luís Fazenda, e o Partido Socialista Revolucionário, que defendia um socialismo revolucionário, à maneira trotskista – isto é, o contrário daquilo que foi o comunismo professado por Estaline. Era Francisco Louçã o seu principal rosto e foi também ele que foi conquistando o protagonismo no Bloco. Este novo partido caraterizava-se como um socialismo crítico ao lastro que o comunismo havia deixado, procurando uma alternativa às “erradas” aplicações do socialismo em outros lugares, tanto na Europa como na América do Sul. Alguns independentes também se juntaram a este grupo de uma esquerda mais progressista e atual, nomeadamente o historiador Fernando Rosas, que havia militado no PCTP-MRPP. Defendia-se como mais equilibrado e democrata, mais representativo da sua diversidade, nomeadamente nas suas diferentes causas, como o ativismo LGBT, o sindicalismo, o ambiente, o feminismo, entre outras ideias ligadas mais a um cunho social, mas que se reviram no Bloco. Um convite a uma transformação social, que se distanciava dos ideais reformistas e mais conservadores dos partidos de centro.
O Bloco foi-se solidificando enquanto os seus partidos constituintes se foram extinguido. Os anos de crise ajudaram a isso, quando as questões fraturantes da sociedade passaram a segundo plano com a crise económica e quando a sua voz ganhou maior mediatismo, numa questão geral que iam para lá das minorias. A Política XXI de Miguel Portas seria transformada numa associação com voz em revistas, como a “Manifesto”, tendo-se extinguido em 2008 na sua forma partidária. Foi no Bloco que Miguel Portas conheceu uma maior plataforma para a sua voz ser ouvida e, como tal, conseguiria, à segunda tentativa, ser eleito para o Parlamento Europeu, em 2004, isto enquanto já era deputado na Assembleia da República, eleito em 2002 pelo círculo do Porto. Conseguiria um novo mandato, aí já ao lado de Marisa Matias e de Rui Tavares, e seria um membro importante na discussão sobre a crise que se abateu na economia europeia, para além de integrar a Comissão de Orçamento. No entanto, seria a doença que o impediria de ir mais longe, numa altura em que ainda era deputado europeu, embora já menos contente com o projeto de Europa que se desenhava, tendo falecido a 24 de abril de 2012. Cinco anos depois, veria o seu ativismo postumamente agraciado, ao ser condecorado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
Miguel Portas foi, assim, alguém inconformado, distinto do seu irmão, defendendo valores de esquerda e contribuindo decisivamente para a formação do Bloco de Esquerda. Para a história, fica o seu papel proativo e atento, procurando uma alternativa realista e comprometida com a sociedade a partir dos seus ideais, que viu serem espelhados na pluralidade do Bloco. Também na Europa se mostrou firme, embora a doneça acabasse por o permitir fazer menos do que o seu caminho previa. Na história também fica a ascensão do Bloco de Esquerda como a principal alternativa à esquerda no espectro partidário português, que não pode esquecer as suas origens e o seu ativismo à persistência de Miguel Portas.