A modernidade brasileira nas telas de Tarsila do Amaral e de Anita Malfatti
Tarsila do Amaral e Anita Malfatti notabilizaram-se como duas das grandes artistas sul-americanas do século XX, incorporando movimentos como o modernismo artístico, que as fizeram resplandecer n’O Grupo dos Cinco: ao lado do poeta e jornalista Menotti Del Picchia e dos “Andrades”, os escritores Mário e Oswald. Seriam fundamentais naquilo que foi a fundação do movimento antropófago, que consolidou o Brasil modernista. Das duas, no papel de pinturas, seria Tarsila a que mais se destacaria, criando um conjunto de obras que se tornariam verdadeiras referências da antropofagia. No entanto, indiscutível é que ambas foram providenciais para que, no feminino, conseguissem singrar através das suas identidades artísticas numa sociedade que, sua contemporânea, pouco propiciava a sua emancipação.
Tarsila de Aguiar do Amaral nasceu a 1 de setembro de 1886, no estado de São Paulo, falecendo a 17 de janeiro de 1973, aos 86 anos. Por sua vez, Anita Malfatti nasceu três anos mais tarde, a 2 de dezembro de 1889, também nesse estado do país, falecendo, aos 84 anos, a 6 de novembro de 1964. Nascem e vivem num período em que, gradualmente, a feminilidade ganha espaço independente e autónomo na sociedade, com as dinâmicas industriais e capitalistas emergentes. Os valores vigentes procuram envolver a mulher no espaço do trabalho e, na arte, no da criação, transpondo os contextos convencionalmente direcionados para a mulher: o da vida doméstica. Os próprios valores modernistas surgem para contribuir para esta mudança de paradigma, que abre as portas do próprio conhecimento às mulheres, em especial o académico. No entanto, as possibilidades socioeconómicas ainda tinham, nesse tempo, uma voz muito expressiva no que toda às oportunidades possibilitadas às mulheres. Tarsila e Anita beneficiaram de nascerem e crescerem no seio de famílias de classe média-alta, com formação intelectual e com estabilidade económica, que as permitiram desenvolver-se num meio propício para que, elas próprias, pudessem prolongar o legado dos seus ascendentes.
Através da sua pintura, ambas desenharam um caminho de descoberta e de criatividade, desconstruindo estereótipos presentes, especialmente aqueles que as subordinavam às figuras masculinas, e o seu percurso culminou na sua afirmação na Semana de Arte Moderna, em 1922. Embora Tarsila não tivesse exposto, era reconhecida, já, como uma das figuras principais dessa dinâmica moderna. Por sua vez, Anita exporia pela primeira vez, conquistando o público com o seu experimentalismo com as vanguardas artísticas então em voga, desde o cubismo ao futurismo, envolvendo-se nessas fragrâncias pós-impressionistas que havia trazido da sua experiência na Europa, mais especificamente na Alemanha, país onde viveu durante quase quatro anos. Foi um percurso que se fez, assim, de muitas vivências exteriores, de uma bagagem rica e conhecedora e, também, de amigos que reconheceram a sua valia e as ajudaram a manifestar-se como personalidades artísticas. Aliás, no próprio seio do movimento modernista brasileiro, é dado todo o protagonismo às mulheres na pintura.
É, assim, um caminho de rebeldia e de irreverência que ambas traçam, não só nas suas telas, mas também na sua vida quotidiana: é uma vida politicamente engajada, sempre envolvida na desconstrução das dinâmicas mercantis e unissexuais da criação artística, com repercussões no seio da própria sociedade. No entanto, a verdade é que ambas se demarcam na sua vida e na sua obra, nomeadamente porque Tarsila vai puxando para si um maior protagonismo, tanto por ser a que provocou maior controvérsia com uma exposição em São Paulo, no ano de 1917, mas Anita é a ilustradora dos manifestos antropófagos, que pautam o início e o meio do modernismo brasileiro. Para Tarsila, porém, ficaria reservada a honra de criar a “pintura Pau-Brasil”, a primeira das suas três etapas artísticas.
Nesta primeira, a pintora materializa, através de formas e de cores robustas e garridas, uma redescoberta do Brasil, das suas comunidades e dos seus lugares, exaltando a fauna e a flora, mas também a própria emergência do urbanismo. Isto até a consolidação da antropofagia, que lança Tarsila numa fusão dessa primeira fase com os ventos do exterior, “engolindo-os” e absorvendo-os numa síntese que se imortaliza nas pinturas “A Negra” (1923), “Morro da Favela” (1924) e “Abaporu” (1928), esta talvez o maior exemplo deste seu discurso e a obra de arte mais valiosa da autoria de um artista brasileiro. Por fim, chega a sua etapa social, que é marcada pela sua emigração para Paris, onde assume as funções de operária numa fábrica e onde se sintoniza com a realidade da União Soviética, que a influi numa pintura carregada de temáticas sociais e laborais, para além de algumas nuances religiosas.
Por sua vez, Malfatti, embora não tão demarcada no seu percurso, vai deambulando entre essa importação dos estilos modernistas europeus para a realidade brasileira, com grande propensão para a experimentação com tons radicais e irreverentes. Granjeia a sua maior fama na mesma fase em que Tarsila vai puxando para si atenções, na década de 1920, com ambas consolidadas como grandes nomes do expressionismo pictórico. Até lá, no entanto, Malfatti teve de enfrentar a dura crítica, que a vilipendiou nas suas exposições individuais (realizou quatro entre 1914 e 1921), para além das suas próprias participações nas exposições no Salão Nacional de Belas Artes.
A que mais a marcou seria, mesmo, a de Monteiro Lobato, consagrado escritor paulista, que criticou a sua pintura moderna, apesar de lhe reconhecer talento e virtude, mas que não esconde a rasgada aversão à sua modernidade. Não seria, porém, derrubada, após uma formação que lhe foi providenciada pelo tio, um engenheiro que lhe financiou estudos na Alemanha e, depois, nos Estados Unidos; um pouco à imagem de Tarsila, não obstante estudar com estrangeirados ou em ateliers de pintores ligados à academia, como Pedro Alexandrino, estudos esses pagos pelo seu pai, um abastado fazendeiro de café. Seria mesmo graças a este pintor que Tarsila e Anita se conheceriam, formando-se nesse ano de 1919 e um pouco de 1920, até ao momento em que Tarsila parte para a Europa, na companhia da sua filha, mais concretamente para Londres.
Contudo, Tarsila fixar-se-ia em Paris, chegando a estudar no atelier do desenhista e professor Émile Renard. Tornou-se, logo, completamente comovida com aquelas expressões vanguardistas e esfuziantes, à imagem daquilo que Anita havia sentido uns anos antes, na Alemanha. Tarsila regressaria em 1922, quando Anita já estava nas boas graças do público, sendo ela a responsável por a reintegrar nesse meio artístico. É nesse mesmo contexto que surge o mencionado Grupo dos Cinco e em que Anita e Tarsila partilham protagonismo no Salão da Sociedade Paulista de Belas Artes, uma iniciativa apoiada pelo Estado. Foi um período que Tarsila, ainda em adaptação, vai assistindo ao auge da pintura de Anita, embora fosse a mais requisitada, já que ainda não se havia posicionado como artista (as suas fases artísticas começariam, a partir daí, a ser demarcadas). Anita seria, contudo, gradualmente influenciada pela crítica de Lobato e outros, começando o seu afastamento da expressão visual modernista.
Assim, ambas iriam a Paris, Tarsila já assumindo Oswald de Andrade como seu amante, mas todos motivados pela futura convivência com as figuras ilustres dessas vanguardas artísticas tão apreciadas e reverenciadas. Nomes como Férnand Leger, Jean Cocteau, Érik Satie, mas também os seus compatriotas Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado, nomes fundamentais na divulgação do modernismo brasileiro, ajudá-las-iam a ser ainda mais valorizadas. No entanto, quanto mais deslocadas, mais se sintonizavam com as suas origens e com as suas raízes, em especial Tarsila, que enveredaria, assim, por essa simplicidade geométrica e figurativa, quase revitalizando a arte naïf.
De traçado claro e de uma maior síntese ao nível dos planos e das cores, Tarsila conseguiu encontrar o seu caminho, dando origem a esse seu Pau-Brasil. Entretanto, no regresso de Tarsila, Anita, que havia voltado ao Brasil, beneficia do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo e volta à Europa, fixando-se durante cinco anos. Ia recebendo as visitas da sua amiga, mas focou-se em encontrar o seu ponto de equilíbrio na criação artística que desenvolvia, no âmago dessa convulsão modernista. Acompanhou de perto o rebuliço das academias e dos cursos livres, deambulando pela cidade de Paris. Porém, nem uma, nas suas visitas ocasionais (apesar de chegar a expôr em nome próprio), nem outra, na sua vivência plena na capital francesa, conseguiriam singrar no seu circuito artístico, algo que poucos dos seus antecessores tinham conseguido fazer. Para Tarsila (e Oswald de Andrade), ficaria a amizade com o poeta Blaise Cendrars, que chegaram a levar ao Brasil.
Anita estava numa fase diferente, apesar de já amadurecida como artista. Continuava a beneficiar de programas de aprendizagem e de formação, voltando-se para um caminho mais académico e orienta-se para uma toada mais religiosa, ligada aos cânones artísticos. Com obras mais detalhistas e intimistas, torna-se mais suave e subtil, algo que também transporta para as suas experiências com natureza morta. Em 1926, consegue expor individualmente alguns desses trabalhos mais recentes da sua autoria e vai ao encontro dos interesses dos académicos, procurando o seu espaço no Salón des Independants e no Salón d’Automne.
Sente que a harmonia chegou, enfim, à sua pintura, embora fosse uma harmonia recebida com desarmonia pelos seus colegas modernistas no Brasil. Mudam, assim, o eixo da sua órbita pictórica para Tarsila, desconsiderando a apatia artística revelada por Anita nos seus últimos anos, mesmo que Mário de Andrade, a espaços, ainda a procurasse defender. Era ele que procurava incentivá-la a regressar ao seu antigo estilo, expressionista e ousado, de pintura com intriga. Anita acaba mesmo por regressar, no ano de 1928, ao seu país, e expõe, logo no ano a seguir, aquilo que veio propondo e criando. Pela variedade, a crítica dizia, sacrificou-se a sua força expressiva.
Nascia, assim, uma espécie de confronto entre a rejeitada Anita e a reconhecida Tarsila, que se havia encontrado em pleno no auge do modernismo e na precisão de uma estética em concreto, com meios para captar uma mundividência diferenciada, cruzando os ideais e as visões da sua nacionalidade com os da pujança modernista. Opiniões defendem que Anita não conseguiu, em pleno, concretizar-se como artista, conformando-se na sua fragilidade artística e emocional, que também era resultado de uma deformação que tinha na sua mão esquerda, mas que, em muito, se sustentava nas crises de identidade que ia sentindo.
Traça, no seu fim, um caminho de isolamento e de solidão, longe do clima quente e aconchegado que Tarsila havia construído em torno de si, com mérito e com superação dos habituais preconceitos sociais e artísticos. Porém, é um caminho de isolamento consentido, que procura proativamente, sem querer dever nada ao modernismo brasileiro; e é um período ao que se segue a sua carreira de professora, em que leciona na escola e também em casa, onde monta o seu atelier e divide a sua vida entre a pintura e o ensino, até ao ano da sua morte, 1964.
Entretanto, Tarsila, já no auge da sua etapa social, percorre a União Soviética ao lado do seu novo marido, o psiquiatra Osório César, e, com uma consciência social cada vez mais estimulada, gera celeuma no seu regresso ao Brasil, sendo presa pelo cariz da sua pintura “Operários” (1933), que capta a variedade étnica do povo brasileiro, que é mobilizado para trabalhar nas fábricas. Nas décadas seguintes, a pintora retoma as suas fases anteriores, sendo presença assídua nas Bienais de São Paulo e recebendo as honras de uma retrospetiva no Museu de Arte Moderna dessa mesma cidade. Os anos 1960 seriam de tragédia para a artista, que ficaria paralisada, após um erro médico que foi desencadeado por uma cirurgia na coluna. Perderia, ainda, a filha, vítima de diabetes, e procurou aproximar-se do espiritismo, o que a também fez aproximar-se do seu médium, Chico Xavier. Doaria muitos dos seus lucros à instituição que este tutelava e continuaria ligada a esta doutrina até à sua morte, nove anos depois de Anita, em 1973.
Não obstante a sua proximidade e consequente afastamento, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti foram duas das grandes mentes criativas e artísticas da primeira metade do século XX brasileiro. Embrenhadas naquele que era o novo espírito modernista, procuraram encontrar a sua essência em jornadas que se foram distanciando pelo tempo e pelo convívio, revivendo as suas origens por onde passavam. Foram espíritos que se souberam afirmar em conjunturas fortemente pejadas por homens e pelas suas conveniências e que encontraram, na sua sensibilidade e na sua habilidade, uma luz, que seguiram e potenciaram para gerações vindouras, onde as mulheres foram sendo, sempre mais, protagonistas.
É um caminho que antecipa, na música, na arquitetura, no cinema, na literatura e na própria pintura, outras tantas que desenharam, como poucos, expressões únicas, unindo a “brasilidade” aos convexos ventos de fora, que traziam as vanguardas de pensamento e de ação. E é em todo esse espectro que Tarsila e Anita merecem ser lembradas, não só, mas também pelo génio do seu trabalho, tão irreverente e distinto, tão capaz de transparecer a modernidade brasileira.