A música de Sérgio Godinho para todos
Sérgio Godinho é um dos mais notáveis músicos portugueses do século XX. Fez valer a sua experiência internacional para reforçar a música de intervenção que dava pujança ao confronto perante o Estado Novo, que se encontrava em fragilidade e prestes a cair. Apesar disso, bem no coração da democracia, o portuense nunca abdicou da sua identidade musical, fazendo-a prevalecer consoante se foi encontrando como compositor e músico. Tamanha referência realizou-se durante mais de sete décadas de vida, enquanto a sociedade é tema constante e vivo como alimento da música.
Sérgio de Barros Godinho nasceu a 31 de agosto de 1945. Cresceu numa família de músicos e de apaixonados por música e dela nunca se desapegou, crescendo com a música de intervenção e a popular de França e de Inglaterra. Depois de ingressar na licenciatura em Economia, no Porto, e em plena situação de ditadura, decidiu partir para a Suíça e, lá, estudar psicologia. Um dos seus professores seria, precisamente, o psicólogo Jean Piaget. Dois anos depois, com 22 anos, já tinha partido para França, onde estaria a par das circunstâncias do Maio de 68, ao lado de outros músicos de intervenção portugueses, que por lá reconheceu: tanto o seu conterrâneo José Mário Branco, como Luís Cília.
Entre breves trabalhos como ator – como no musical “Hair”, na sua produção francesa, que fez um retrato do desenvolvimento da contracultura e da cultura hippie -, foi começando a redigir algumas composições. Na viragem para os anos 1970, comporia, ao lado de José Mário Branco, algumas das canções que integraram o álbum de estreia deste a solo: “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”. Nesse ano, Godinho lançaria o seu primeiro LP, “Os Sobreviventes”, onde estaria patente a sua confrontação em relação ao estado do seu país (a canção “Maré Alta” é a personificação desse estado de espírito). Foi mais uma voz comprometida com essa missão de, para além de contar histórias de um típico moço português, deixar escapar mensagens de alento e de intervenção. Com este trabalho, arrecadaria o atual Prémio Bordalo, atribuído pela Casa da Imprensa.
No ano seguinte, regressou aos discos com “Pré-Histórias”, que também gravou em França e que contém alguns dos seus mais importantes êxitos: “A Noite Passada” destaca-se de uma lista que apresenta “Barnabé”, “Pode Alguém Ser Quem Não É?” e “Os Homens dos Sete Instrumentos”. Daria apoio, novamente, a José Mário Branco no disco “Margem de Certa Maneira”, onde co-escreveu mais duas canções: “Cantiga da Velha Mãe e dos Seus Dois Filhos” e “Eh! Companheiro”. No ano de 1973, Godinho salta de França para o Canadá, onde integra uma comunidade hippie, para além de se juntar a uma companhia de teatro local. Foi um breve período, já que ocorreu a Revolução de Abril no ano seguinte e o músico pôde regressar a Portugal, onde, desde logo, gravou “À Queima-Roupa”, que se tornou num conjunto de hinos referentes às causas da revolução.
Não deixou de colaborar com o seu amigo José Mário Branco, sendo apoiado, também, por Fausto na composição da banda sonora do filme de ficção histórica “A Confederação”, de Luís Galvão Teles. O mesmo fez em “Os Demónios de Alcácer Quibir” (1976), de José Fonseca e Costa, também este alinhado com a fantasia histórica, onde participou como ator, sendo um dos protagonistas, e como músico, ao compor as suas canções. Nesse ano, lança mais um álbum, sendo ele “De Pequenino Se Torce o Destino”, que viria a antever o seu futuro musical: composições de histórias quotidianas, em muito populares, mas com génio rítmico e lírico. De regresso ao cinema, compõe a música do filme de Fernando Lopes “Nós por Cá Todos Bem” (1977), outro filme alinhado com esse sentido fantasioso, embora plantado no interior de Portugal, numa das suas pequenas aldeias.
É este caráter popular que mobiliza grande parte da atividade cultural que se vai fazendo nesse pós-Revolução, mesmo com as promessas de Abril a serem tão adiadas. Também essa dimensão é proeminente, sendo uma temática que os artistas procuram não deixar esquecer e manter vivas, sendo os grandes porta-vozes das aspirações destas transformações. 1978 traz um novo álbum, sendo ele “Pano-Cru”, que eterniza “O Primeiro Dia” e “Balada da Rita” (usada no filme “Kilas, o Mau da Fita”, de 1980, realizado por Fonseca e Costa) como músicas fundamentais do seu repertório. Depois de, em 1979, lançar “Campolide”, premiado nesse ano, é “Canto da Boca”, porém, que se tornou o mais relembrado no futuro.
Para além de, também, galardoado (a Casa da Imprensa voltou a premiá-lo), é um disco que consegue vender 15 mil cópias, em muito impulsionado pelas canções “Com um Brilhozinho nos Olhos”, “É Terça-Feira” e “Espalhem a Notícia”. Embora não se possa chamar ao disco uma revelação, é aquele que confirma, sem qualquer espaço para dúvidas, Godinho como um dos grandes cantores populares portugueses. Três anos depois, em 1983, interpreta temas de alguns dos mais célebres compositores brasileiros à data, a saber Chico Buarque, Milton Nascimento, Ivan Lins e João Bosco. Durante essa década, produz os discos “Na Vida Real” (1986), “Os Amigos do Gaspar” (1988, inspirado numa série infantil desse período) e “Aos Amores” (1989).
Com um estatuto já consolidado, começou a ter prestações ao vivo de grandes proporções, tanto que originariam algumas iniciativas: de vinte concertos no Instituto Franco-Português, em Lisboa, nasceu o álbum ao vivo “Escritor de Canções” (1990), acompanhado de guitarra, de baixo e de piano (trata-se da sua banda Os Assessores, que o acompanhou regularmente na sua carreira). Godinho faria, também, alguma televisão, desde curtas (“S.O.S. Stress”, “Entre Mortos e Vivos” e “A Reconstrução”, todas de 1992, que seriam compiladas como os “Ultimactos”), programas sobre música (a série “Luz na Sombra”, de 1991) e, há já alguns anos atrás, ajudou a escrever os desenhos animados (totalmente portugueses) d’”A Árvore dos Patafúrdios”, para os quais escreveu e entoou o tema de abertura e o de encerramento. Esta veia juvenil manteve-se sempre presente na sua carreira, tendo até escrito livros, como “O Pequeno Livro dos Medos” (1991, que também ilustrou, abordando casos práticos de confronto, desmistificação e de superação dos medos e desenhando-os).
De regresso à música, lança o álbum “Tinta Permanente” (1993), ao qual se segue “Noites Passadas” (1995), gravado em dois concertos, ambos em Lisboa (um no Coliseu dos Recreios e outro no Teatro Municipal São Luiz). No ano entre estes discos, tornar-se-ia Oficial da Ordem da Liberdade. Seria, também consagrado com o Prémio Tenco, em 1995, que reconhece a carreira de cantautores um pouco por todo o mundo. Godinho faria um dueto com Pacman, o vocalista dos Da Weasel, no álbum natalício “Espanta Espíritos”, com o dueto “Apenas Um Irmão”. Novamente a solo, volta aos discos com “Domingo no Mundo”, em 1997, produzido por Manuel Faria, teclista e um dos fundadores dos Trovante e responsável pela fundação da editora Dínamo Discos, que, por exemplo, havia lançado o primeiro álbum dos Da Weasel. A promoção deste álbum seria feita com dois concertos muito bem-sucedidos, ocorrendo eles no Porto (Rivoli, onde também seria gravado “Rivolitz” (1998), em conjunto com um concerto no Ritz Clube) e em Lisboa (Coliseu dos Recreios).
No novo século, Godinho trabalha no disco “Lupa”, com a colaboração de Hélder Gonçalves na produção, um dos membros da banda portuense Clã, que o músico ajudou a lançar (“Afinidades”, de 2001, resulta de uma atuação em conjunto entre a banda e Godinho). Foi um disco, de igual modo, promovido nos palcos, com um concerto no Centro Cultural de Belém e outro no Coliseu do Porto. Nos trinta anos da carreira de Godinho, em 2001, é lançada uma coletânea, de seu título “Biografias do Amor”; mas a celebração chegaria dois anos depois, com o disco “O Irmão do Meio”. Entre os convidados para os duetos de temas da sua autoria, chama Caetano Veloso, Zeca Baleiro, Tito Paris, Milton Nascimento, David Fonseca (cuja banda, Silence 4, colaborou com Godinho em “Sexto Sentido”, um tema do disco “Silence Becomes It”), Gabriel O Pensador, Camané, Vitorino, Carlos do Carmo, Teresa Salgueiro, Jorge Palma, os Gaiteiros de Lisboa, os Xutos e Pontapés, os Da Weasel, os Clã, Rui Veloso e o seu grande amigo José Mário Branco para se juntarem a essa festa.
Em 2006, “Ligação Directa” devolve a composição de músicas originais à carreira de Sérgio Godinho, só regressando a esta composição cinco anos depois, com “Mútuo Consentimento”, na celebração dos seus quarenta anos de carreira, para além de “Nação Valente (2018), que compila uma série de novas letras e respetivas canções originais. Desde então, predominaram os discos ao vivo, como “Três Cantos: Ao Vivo” (2009), com José Mário Branco e Fausto, “Liberdade Ao Vivo” (2014, um conjunto de músicas gravadas em concertos no São Luiz, no Cine-Teatro Louletano, em Loulé, e no Centro de Arte de Ovar) e “Juntos: Ao Vivo no Theatro Circo [Braga]” (2015), depois de uma digressão prolongada com Jorge Palma, onde partilharam os seus repertórios.
Sérgio Godinho dedicou-se, de novo à literatura, com o conto “Notas Soltas da Corda e do Carrasco” (2013, sobre os imprevistos e as voltas trocadas da vida, procurando dar sentido e lógica às suas notas soltas), a coletânea de contos “Vidadupla” (2014, onde são contadas histórias do dia-a-dia em que as personagens, comuns entre elas, se tornam cumpridoras de um destino que lhes é (quase) atribuído no circo da vida), “Coração Mais que Perfeito” (2017, novamente um conjunto de contos em que as peripécias do amor conjugal e as suas imperfeições são os grandes protagonistas), e “Estocolmo” (2019, um único romance em que é contada a história de um estudante que aluga um quarto pertencente a uma jornalista televisiva).
Sérgio Godinho tornou-se, assim, bem mais do que um mero cantor. Compôs, é certo, muitas e boas letras, mas também escreveu livros, produziu programas televisivos e contracenou em diversas iniciativas no pequeno ecrã. Desta dinâmica cultural, que prossegue, ainda hoje, pelos anos, criou-se um lastro de uma referência viva e imponente da cultura portuguesa, que, não obstante, nunca abdicou da sua simplicidade e da sua vertente popular, exprimindo os valores do dia-a-dia de todas as suas pessoas, das suas circunstâncias comuns e até, de certa maneira, simples. Todavia, sem elas, não haveria histórias a serem contadas e relatadas para o presente e para o futuro e, nisso, o portuense foi e permanece como um mestre de simplificar aquilo que, outrora, foi de tão poucos. Sem esquecer a missão de abril, Sérgio Godinho resiste e persiste de fazer da cultura e da arte, efetivamente, de todos.