A música portuguesa a descobrir-se com Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça
Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça são dois dos responsáveis por uma intensa e imensa recolha e pelo estudo musical por todo o território português. Dos Trás-os-Montes ao Alentejo, a recolha foi feita de forma aprofundada, com uma observação participante que originou uma série de registos, que se encontram dispersos por diferentes fontes de informação, em várias instituições. A etnografia de Paris (o Museu do Homem foi o que inspirou Giacometti) e os estudos académicos na área (Lopes-Graça estudou bastante neste capítulo) foram os motes para que se pudesse preservar e divulgar aquilo que compõe a extensa e imensa identidade portuguesa.
Giacometti, da Córsega para Portugal
Michel Giacometti nasceu na Córsega, mais precisamente em Ajaccio, a 8 de janeiro de 1929. Cresce com o seu tio, que o leva a conviver de perto com a realidade colonial do Norte de África, onde seria até raptado por uma tribo e sido salvo por uma criada de etnia negra, então uma escrava árabe. O seu gosto pela etnologia – estudo dos dados recolhidos para fins antropológicos, sociais e culturais – desenvolveu-se desde cedo, ainda na cidade de Paris, onde estudou música e arte dramática. Dos registos que lá encontrou, ficou particularmente interessado pelos da música tradicional portuguesa. Entretanto, procura escrever poesia, assim como fundar revistas culturais, que não têm grande divulgação. Procura estudar arte dramática, enquanto desenvolve a sua própria companhia de teatro. Porém, voltar-se-ia para os estudos de Letras e Etnografia na Sorbonne, que interrompe em 1954.É um ano em que é expulso da universidade por participar numa greve contra a discriminação do povo árabe em Argel, então território francês.
O seu gosto por etnologia solidifica-se nesta fase, tendo frequentado alguns cursos livres na Noruega e viajado um pouco por toda a Europa. Aos 30 anos, em 1959, veio mesmo para Portugal, onde ficou com doente, sofrendo de tuberculose. No entanto, a maior contrariedade que encontraria seria mesmo o regime político, retrógrado e repressivo. Como experiência, trazia a sua bem-sucedida Missão Mediterrâneo 56, onde explorou muitos dos sons tradicionais das ilhas circundantes daquela onde havia nascido, assim como a sua própria.
À chegada a Portugal, e inspirado pela proximidade ao mar, Giacometti passou a viver numa zona de pescadores. Pouco tempo perderia, já que apresentou à Fundação Calouste Gulbenkian um projeto de recolha de música popular em Trás-os-Montes, nomeadamente no seu extremo nordeste. Embora rejeitado o apoio a dar a esse seu projeto pela Comissão de Etnomusicologia da Fundação, teria uma carta de recomendação endereçada a Fernando-Lopes Graça. No entanto, o etnólogo decidiu, inicialmente, avançar sozinho e moveu mundos e fundos para fundar, em 1960, os Arquivos Sonoros Portugueses. A sua intenção era a de originar um museu cujo espólio seria um amplo número de sonoridades à disposição da comunidade científica. Perante a ausência de uma antologia de música tradicional em Portugal, assim como de um arquivo sonoro propriamente dito, Giacometti pretendia salvaguardar todo esse rol de expressões sonoras típicas das várias regiões do país.
Reestruturaria o plano com o apoio de Lopes-Graça, com o sentido de uma recolha sistemática e de um estudo afincado da música tradicional portuguesa, para além de poder divulgar uma coleção que reuniu músicas, canções, entrevistas e até poesia e teatro. Os obstáculos financeiros não impediram Giacometti de ir para o terreno e de procurar o apoio das entidades locais, de empresas e de associações culturais para poder efetuar essa empreitada. Lopes-Graça apoiá-lo-ia na edição e tratamento dos registos, para além de analisar, estudar e selecionar os recursos e os textos subjacentes. Durante 23 anos (1960-1983), publicariam 24 discos, sendo eles resultado de uma recolha que foi feita somente em Portugal e que contou com um sistema de subscrições a partir do qual a distribuição era feita, munidos, também, de catálogos.
Para além do apoio nacional a este projeto, também houve um forte auxílio internacional, já que muitos organismos procuraram envolver os Arquivos em conferências, exposições e até emissões radiofónicas para a Université Radiophonique Internationale, assim como selos de recomendação por parte de instituições musicais internacionais. Giacometti assumiria muito dos programas radiofónicos no estrangeiro, como na França, na Alemanha (Ocidental) e na Suécia, para além de ter um na própria Emissora Nacional. Com este projeto bem encaminhado, dedica-se, também, a pesquisar e a zelar pela salvaguarda da literatura oral, entre mitos, lendas e cantigas que foi recolhendo de lés a lés em Portugal. Em 1963, produz o filme “O Alar da Rede”, transmitido pela RTP, em que grava, na cidade de Portimão, a música das suas comunidades piscatórias. Faria o mesmo, no ano de 1966, para a comunidade de Rio de Onor, aldeia em Bragança, num outro documentário.
Entretanto, passou a viver, precisamente, em Bragança, onde foi gravando, até à data da sua morte, muita música tradicional de várias comunidades locais, tentando aprender durante essas gravações com os seus intérpretes. Ao abrigo dos Arquivos Sonoros Portugueses, nos finais da década de 1960 e inícios da de 1970, edita e lança os famosos “discos de sarapilheira”, com “A Antologia da Música Regional Portuguesa”, ao lado de Lopes-Graça. Foram cinco discos divididos por regiões: Trás-os-Montes, Algarve, Minho, Alentejo e Beiras. Deu, assim, a conhecer as gaitas-de-foles e os romances transmontanos, os cantos dos pescadores algarvios, os sons das serras minhotas, os cantos corais e religiosos alentejanos e os barulhos maquinais e agrícolas das beiras.
O seu interesse pelo teatro de marionetes também se tornou presente, enquanto fez um programa na RTP de seu nome “O Povo que Canta”. Era uma coleção de filmes, organizados e realizados por Alfredo Tropa, onde se apresentava o património imaterial dos cantos de trabalho. Já na fase da democracia, dirige o Plano de Trabalho e Cultura – Serviço Cívico Estudantil, com o sentido de recuperar a cultura popular portuguesa, ao lado de vários professores académicos. Era uma fase na qual era investigador do Instituto de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para um projeto de recolha e estudo dessa literatura popular. De seguida, torna-se membro da Comissão de Reorganização da Fundação INATEL (anterior Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), sendo o seu diretor geral de etnografia.
Giacometti procura colocar a etnografia bem mais presente em relação ao Estado e, como tal, faz uma proposta à Secretaria de Estado da Cultura para a criação de Instituto de Etnomusicologia nacional, que integrasse os seus Arquivos Sonos Portugueses. As suas recolhas seriam bastante requisitadas, em especial na Bélgica e na Holanda, interessados nos seus registos. De novo, volta a idealizar, desta feita um Museu de Instrumentos Musicais Populares Portugueses. A isto, seguir-se-ia um acordo de utilização do seu arquivo de Música Tradicional Portuguesa por parte do Instituto Português do Património Cultural.
Em 1981, edita e lança o “Cancioneiro Popular Português”, que foi compilado em colaboração com Lopes-Graça. Entre outras, este trabalho agrega canções de trabalho, de noivado, de festas e arraiais, de bem-querer e maldizer e de berço, tratando-se de um autêntico itinerário da música popular portuguesa, profundamente documentado e diversificado na cobertura que faz a esta tipologia de folclore.
No ano de 1987, após um longo processo de idealização, faz parte da comissão instaladora da Casa Museu Verdades de Faria, que seria o museu no qual grande parte do seu espólio e do de Lopes-Graça passaria a estar. Seria, afinal de contas, o Museu da Música Portuguesa, no Monte Estoril, e que reuniria uma coleção vasta de instrumentos musicais nacionais, assim como um centro de documentação sustentado na biblioteca especializada de Giacometti e como um espaço para recitais. Como missão, o museu assumiu a preservação, conservação, estudo, divulgação e valorização do património musical português.
Giacometti faleceria em Faro, no dia 24 de dezembro de 1990, e seria sepultado, por sua vontade, numa aldeia no Alentejo, em Peroguarda, Ferreira do Alentejo. Em sua homenagem, o Museu do Trabalho, em Setúbal, para o qual havia colaborado na exposição “O Trabalho faz o Homem”, na recolha de vários materiais de trabalho das comunidades, colocaria o seu nome na sua designação oficial. O seu espólio foi dividido entre vários lugares, entre os quais o Museu Municipal de Ferreira do Alentejo, o Museu da Música Portuguesa e o Museu Nacional de Etnologia. Seria, ainda, agraciado com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique postumamente, em 2002. O seu trabalho seria objeto de estudo de várias outras obras, entre documentários (“Polifonias – Pace è Saluta, Michel Giacometti” (1997), de Pierre-Marie Goulet) e livros, assim como exposição de celebração do seu contributo para o estudo das expressões típicas musicais em Portugal.
A sabedoria musical de Lopes-Graça
Por sua vez, Fernando Lopes-Graça nasceu na cidade de Tomar, a 17 de dezembro de 1906. Na sua adolescência, começou a tocar piano no Cine-Teatro da cidade onde nasceu, fazendo arranjos de diferentes compositores conceituados. Em 1923, muda-se para Lisboa para frequentar o Curso Superior do Conservatório de Lisboa, tendo sido aluno de, entre outros, Luís de Freitas Branco e Vianna da Motta, dois dos compositores portugueses mais reputados de sempre. Cinco anos depois, entra na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde pretendia estudar Ciências Históricas e Filosóficas. No entanto, a repressão a uma greve académica fê-lo prescindir da faculdade, no ano de 1931, e regressar a Tomar, onde funda um semanário de teor republicano. Tentaria, de novo, a sua sorte na faculdade, desta feita em Coimbra, enquanto dava aulas na sua Academia de Música e enquanto acompanhava a revista literária Presença, editada por Adolfo Casais Monteiro (autor cujos poemas chegou a usar nas suas composições musicais), mas também a abandonou, em 1934.
Essa sua contestação seria-lhe madrasta, pois seria preso pela polícia política no dia em que havia prestado as provas de concurso para professor de Solfejo e Piano no Conservatório Nacional com a melhor nota. Enquanto estava no Conservatório, vinha já mostrando a sua vasta cultura geral e musical, exibindo os seus talentos em concertos colaborativos com outros membros deste. Decidiu, assim, voltar-se para França, beneficiando de uma bolsa de estudo. Porém, seria novamente a polícia política a detê-lo, enviando-o para o Forte de Caxias. Libertado dois anos depois, em 1937, parte para França e decide estudar Composição e Musicologia na Sorbonne, onde conviveu com grandes formadores musicais (o compositor e musicólogo Charles Koechlin deu-lhe aulas particulares) e onde se começou a sentir confortável em harmonizar sons retirados da música tradicional, muito à imagem do que se fazia na Europa do Leste e na própria vizinha Espanha.
Por recusar a nacionalidade francesa, vê-se forçado a voltar, quando lhe é proposta a direção dos Serviços de Música da Emissora Nacional. Ao não acatar o anticomunismo e a anti-subversão, acaba por não assumir o cargo e por integrar o Movimento de Unidade Democrática (MUD), o mais forte organismo de oposição ao Estado Novo. Neste, é o responsável pela criação do Coro do Grupo Dramático Lisbonense (fundado com esse nome em 1950), futuro Coro Lopes-Graça da Academia de Amadores de Música. No seu repertório, escreveu e integrou dezenas de canções regionais, de proveniências dispersas por todo o país, assim como canções heróicas (canções de sentido intervencionista). Ao todo, seriam 222, organizadas em 24 séries. Organizou, assim, recitais com múltiplas coletividades por todo o país, convivendo, de perto, com diferentes realidades locais.
Neste período, manteve-se ativo como cronista musical e teatral (escreveu para a “Seara Nova” e para “O Diabo”, revistas culturais de destaque então) e musicólogo, tendo organizado concertos e coros e dando aulas de piano, harmonia e contraponto aos seus pupilos da Academia. Fundaria, também, um pouco antes, em 1942, a Sociedade Sonata, especializada na programação de eventos musicais somente limitados ao que se compunha nesse mesmo século. Apoiou, também, o professor Bento de Jesus Carcaça, assumido comunista, na organização da Biblioteca Cosmos, destinada a formar as massas populares e a divulgar a cultura em vários fascículos, com os seus contributos na área da música.
Depois de aderir ao Partido Comunista Português, os obstáculos ao seu trabalho musical acrescem: as orquestras nacionais são proibidas de tocar peças de Lopes-Graça, cujos direitos de autor seriam cessados, e acaba por ver anulado o seu diploma de professor particular. Quanto ao Coro, é obrigado a abandoná-lo. Porém, faz da sua literatura o seu caminho de escape, refletindo sobre o estado da música portuguesa e da música que lhe era contemporânea (a revista “Vértice” acolhe muitos destes artigos, onde se debruça sobre os conceitos de tradição, de estética e de popular na música, para além da que havia fundado, de seu nome “Gazeta Musical”); assim como continua a compor peças, nomeadamente para piano e orquestra e obras corais com inspirações folclóricas, das comunidades locais portuguesas. Foi, também, nesta altura que conheceu Michel Giacometti, com quem desenvolveu o trabalho já explorado acima.
Célebre tornou-se o seu requiem pelas Vítimas do Fascismo, datado de 1979, tal como as seis sonatas que fez para o piano. Antes, ainda na década de 1930, quando recebeu os primeiros estudos em Paris, já tinha composto canções, sempre munidas de um grande sentido vocal, de poemas de conhecidos autores, como Fernando Pessoa, José Régio – e, como tal, com um pendor marcadamente modernista – ou Luís Vaz de Camões. Na década seguinte, faria de Miguel Torga (chegou a ser condecorado pelo Círculo de Cultural Musical com essa cantata) ou de Carlos de Oliveira, assim como faria as primeiras harmonizações dos cantos regionais portugueses, tão influentes no decurso da sua carreira musical, para além de trovas de textos tradicionais e de, para orquestra, três danças portuguesas.
Na década de 1950, voltou a investir nos registos tradicionais, nomeadamente com glosas sobre canções tradicionais portuguesas e com os cadernos das melodias rústicas portuguesas, sem abdicar da habitual poesia, agora também com Teixeira de Pascoaes e Eugénio de Andrade. Nos anos seguintes, permanece nesse investimento na literatura portuguesa como fonte de criação musical entre as suas canções, para além dos dramas de Gil Vicente. Recuperaria, de igual modo, outros escritos de autores seus contemporâneos, como José Saramago ou Sophia de Mello Breyner. No entanto, tornaria a sua música bem mais cuidada, munida de uma maior exigência formal e harmónica, com estruturas mais complexas. Em suma, um percurso repleto de assimilações e de incorporações de material melódico da música popular portuguesa, com um sentido muito convicto do papel da cultura na sociedade. Assumia, como seu compromisso, o da cultura, sustentado numa convicção voltada para o progresso da humanidade.
Após a queda do Estado Novo, e sem o jugo de oposicionista, o trabalho de Lopes-Graça conheceu a fama devida, sendo objeto de várias reedições (tanto as composições como os livros) e de diversas homenagens. De igual modo, envolver-se-ia na política, sendo responsável por chefiar a Reforma para o Ensino Musical em alturas do Governo Provisório, em 1975, para além de ter liderado o próprio Partido Comunista em várias eleições legislativas. Fez questão de fazer desses anos profundamente criativos, dando-lhes maior aspiração a composições mais clássicas, procurando ir a lugares aonde o seu catálogo nunca tinha ido. Evoca diferentes outros compositores em diferentes peças da sua autoria, voltando a simplificar as suas composições. Ao todo, reuniu cinco Velhos Romances Portugueses (para pequena orquestra), nove Canções Populares Portuguesas (para voz e orquestra) e os Natais Portugueses e Melodias Rústicas Portuguesas (para piano).
Em 1981, é agraciado com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, e, em 1987, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Um ano depois, receberia um Doutoramento Honoris Causa, atribuído pela Universidade de Aveiro. Lopes-Graça faleceria 7 anos depois, a 27 de novembro de 1994, em Parede, no concelho de Cascais. No seu testamento, legaria o seu arquivo à Câmara Municipal de Cascais, que o reconduziu para o Museu da Música Portuguesa. A casa onde nasceu, em Tomar, transformar-se-ia no Museu Fernando Lopes-Graça, assim como a sala dos ensaios do Coro Misto da Universidade de Coimbra recebeu o seu nome.
Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça são dois dos grandes responsáveis pelo recolher, estudar e divulgar da música portuguesa nos quatro cantos do seu território. Giacometti, com uma formação mais de observador participante, com uma vocação inestimável para a recolha musical, herdando o dom que Armando Leça – é conhecido como o pai da etnomusicologia portuguesa, responsável por uma abundante recolha e pela edição do primeiro Cancioneiro Músico-Popular. Por seu lado, Lopes-Graça, com um currículo académico bem vivenciado, debruçando muito do seu tempo na criação e no estúdio da música nas suas mais diversas valências. Em resumo, duas importantes figuras que contribuíram para que, efetivamente, a música portuguesa se pudesse conhecer e, acima de tudo, pudesse gostar dela própria.