A Política enquanto “jogo de xadrez” e o costume da Constituição

por Inês de Oliveira,    8 Novembro, 2021
A Política enquanto “jogo de xadrez” e o costume da Constituição
Ilustração de Comunidade Cultura e Arte
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Reflexão sobre o orçamento de Estado, os responsáveis pela crise política e as possíveis consequências.

Decido citar as palavras de Montesquieu, que em muito ajudou a contribuir para a democracia europeia e foi um autor basilar na construção e desenvolvimento das Constituições: “Todo homem que tem poder é tentado a abusar dele (…). É preciso que, pela disposição das coisas, o poder controle o poder”. Quase poderíamos dizer que no panorama político português, esta frase seria um mero reflexo da representação partidária que ao longo dos anos tem falhado, e então agora mais que nunca. Enquanto estudantes, olhamos para esta frase com olhos “de ver”, em que o poder se não for controlado leva a que o Homem seja encaminhado para um abismo proporcionado pelos seus próprios impulsos pessoais. A ideia de um Presidente que nos comande e represente enquanto nação interna e externamente nunca esteve tão fragilizada, atualmente encontramos um Presidente que em vez de ser um mero espectador e intermediário no espetáculo político, é mais um interveniente contrastante às posições dos restantes órgãos de soberania. Importa saber como é que se pode controlar as ações do Presidente da República, e resolver uma crise política que agrava o Estado de Nação.

A resposta encontra-se num essencial instrumento dos direitos fundamentais e organização do poder político, que é a Constituição. Sem esta, a visão de Montesquieu e outros importantes autores das ideias políticas, não só se concretiza, como seria para dizer no mínimo catastrófica. A Constituição, como já dizia Jorge Reis Novais, são as regras do jogo, são elas que ditam as ações governativas, legislativas e jurídicas dos nossos principais órgãos de soberania, sendo eles mesmo (por ordem de eleição democrática), o Presidente da República, a Assembleia da República, Governo e Tribunais. Deixemos de parte, a soberania dos nossos Tribunais, mas não deixemos cair o pano no Tribunal Constitucional, que poderia ser um elemento essencial para conciliar a crise.

Há muito tempo na nossa história política e financeira em que o mês de Outubro assombra os Governos, encontra- se muito presente o típico medo da época: a reprovação do orçamento. Em anos anteriores este medo seria apenas passageiro, uma neblina que paira mas que porventura acaba por assentar. O orçamento de Estado trata-se de um plano de concretização executivo e financeiro do programa de Governo, em que vemos escrutinados o passivo e o ativo das contas do Estado, é um elemento importantíssimo para o povo português visto que reflete o dispêndio dos nossos vencimentos em favorecimento da Máquina Estadual através dos fantasmas, impostos e taxas.

A principal relevância encontra-se no porquê de ser necessário um orçamento a cada ano. Temos de olhar para o dia de Tomada de Posse do Governo e posteriormente a aprovação do seu programa eleitoral, visto que é aí que se fazem as promessas: um aumento do imposto do IVA (dentro dos parâmetros definidos pela UE), uma redução das taxas moderadoras, alteração de escalões de IRS, investimentos no Serviço Nacional de Saúde, creches gratuitas, etc… Poderíamos percorrer as 200 páginas dos programas eleitorais que nos aliciam com grandes medidas que são ditas, mas pergunta-se como serão executadas? Quais serão os sacrifícios para os contribuintes ou quem irá beneficiar da generosidade do Governo. A cada 4 anos somos confrontados com uma das maiores e desprezadas escolhas políticas que é, qual o rumo que queremos para o nosso país. E cada ano esperamos que a nossa escolha seja executada pelo Governo, através do voto da Assembleia de República.

A meu ver desde que me interessei por política e procurei fazer uma investigação sobre nosso sistema de governo, uma das principais razões que levou ao “chumbo” que se pode dizer fatal do Orçamento de Estado, será a incapacidade fática de a nossa Assembleia nos últimos 5 anos não conseguir ter um governo maioritário que consiga conduzir a política portuguesa. Muitos poderão dizer que esta incapacidade é um reflexo da nossa democracia, mas esquecem-se que a democracia não avança se existem constantes impasses.

Assim que são anunciados os resultados das eleições legislativas, a pergunta que cada Partido faz a si mesmo é como é os meus votos vão influenciar os próximos quatro anos, será que tenho influência política para aprovar certas medidas? Será que sou relevante o suficiente para apresentar projetos de lei que sejam aprovados na votação na generalidade e consigam prosseguir pelo longo processo legislativo? Ora estas perguntas legítimas têm sido cada vez mais interiorizadas na mente de cada dirigente político, não só devido ao sucesso ou insucesso da sua campanha eleitoral, ou se cada Partido tem popularidade positiva ou negativa devido à sua luta interna pela representação partidária.

Pergunta-se o que se faz agora? Em que situação ficam os nossos órgãos de soberania? A Assembleia da República acaba de reprovar um dos orçamentos, que deveria ter sido o mais desafiante e reestruturante para a economia portuguesa após a crise pandémica, e deva-se dizer que quando se fala em Assembleia da República são os aliados ao PS: BE e PCP que provocaram o desarme da bomba.

Por si mesmo, o Orçamento de Estado não implicaria tanto escândalo político, visto que a própria Lei do Orçamento de Estado refere com clareza no seu artigo 58.º n.º1 que a vigência da lei do Orçamento do Estado é prorrogada, na sua alínea a) com a rejeição da proposta de lei do Orçamento de Estado, e não só de acordo com a Lei de Enquadramento Orçamental, o Governo ainda teria a possibilidade de apresentar um novo orçamento no prazo de 90 dias. Pela ordem jurídica, não se devia ter anunciado guerra mais cedo que o suposto, visto que existem opções para o Governo.

Contudo até que ponto é que estas opções seriam viáveis? A urgência da apresentação de um orçamento vai muito para além dos nossos órgãos de soberania, mas surge pela nossa integração na União Europeia e a necessidade de enviar para os órgãos competentes como a Comissão a aprovação do orçamento, e outros programas como o PRR, quanto mais adiamentos são feitos a mais sanções podemos ser sujeitos por parte desta entidade supranacional. E ainda mais, quando não é garantido o apoio a António Costa e ao seu Governo.

No plano constitucional, esta crise política consegue ser regulada pelas famosas regras do jogo, mas não se fica por aí, temos de olhar para as relações entre os nossos órgãos de soberania, que de modo a que nenhum poder seja abusado, surgem meios de fiscalização das ações de cada órgão. Concretizando pelo sagrado documento constitucional e visualizando a existência de um triângulo em que cada vértice representa um órgão soberano, neste caso os que se encontram em conflito: o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo, o artigo 190.º da CRP refere que o Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República, ou seja existe uma dupla responsabilidade acrescida, contudo de acordo com o nosso sistema de governo, temos de ver qual destas responsabilidades é mais importante de acordo com o papel que cada órgão possui.

Analisando cada relação individualmente, começando AR e o Governo, esta relação é talvez a meu ver das mais ricas a nível constitucional, no meu entender crítico considero que a legitimidade democrática do Presidente da República e da Assembleia encontram-se a níveis equitativos. Claro que o Presidente dispõe da mais poderosa arma que é a dissolução do parlamento, mas a Assembleia não fica atrás com as possibilidades instrumentais para cessar com a vigência do Governo caso a sua governação não seja conforme ao que lhes foi prometido. Em primeiro lugar temos o instrumento mais forte que é a apresentação de uma moção de censura prevista no artigo 194.º da CRP, tendo como efeito, nos termos do 195 n.º1 f), a demissão do governo. Ora se a Assembleia não aprova o orçamento, leva-se a acreditar que o Governo não vai conseguir executar as suas funções. Deste modo, a Assembleia representativa do Povo poderia apresentar esta moção que certamente seria aprovada pelo descontentamento dos partidos sobretudo da Direita relativo ao impasse político. Ou então, ainda podemos ter outra visão, sabendo a crise pandémica, energética (devido ao aumento dos preços dos combustíveis, energia, etc…), greves que podem levar ao açambarcamento levando a uma crise de escassez de alimentos, o país pode ficar mais fragilizado que nunca se uma demissão do Governo ocorre, embora arriscado, porque a imprevisibilidade dos partidos e fome pelo poder pudesse alterar as circunstâncias, poderia muito bem o Governo apresentar uma moção de confiança nos termos do artigo 193.º da CRP. Ao solicitar este voto de confiança aos partidos, de modo a proferir uma declaração de política geral que restaura temporariamente o seu poder, acreditaríamos que a Esquerda não estaria disposta a perder a sua ligação com o poder, por outro lado a favor do descontentamento da Assembleia isto poderia levar à demissão do governo novamente prevista no artigo 195.º da CRP. Estas seriam as opções que a Assembleia da República e o Governo teriam para resolver esta disputa relativamente ao orçamento de Estado, que seriam totalmente viáveis.

Contudo, intervém o órgão com mais legitimidade democrática (em regra) que é o Presidente da República, são várias as discussões doutrinárias que levam à ponderação de qual é o real papel do Presidente da República na nossa Democracia, como tal devemos recorrer à CRP que foi feita pelo povo português para o povo português. Sabemos que o mesmo garante a independência nacional, unidade de Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas, este último ponto é crucial pois significa que ele tem de ser um mero “juiz” do espetáculo político que em último recurso intervém para regular o funcionamento das instituições democráticas, mas de que maneira? Podendo demitir o Governo nos termos do artigo 195.º n.º2 que requer fundamentos políticos claros, e em caso fatal usar o poder de dissolução da Assembleia da República nos termos do artigo 133 e) da CRP, nunca esquecendo as imposições do artigo 172.º.

Portanto, sendo que o Presidente exerce várias funções tanto a nível de competências relativas a outros órgãos, quanto aos seus próprios atos e a sua tarefa enquanto representante máximo de Portugal nas relações internacionais, segundo a minha perspectiva que retiro da leitura da Constituição, leva-me a constatar que o Presidente deve ser um órgão mediador na política portuguesa, e não um agente interventivo que lança o caos antecipadamente sem verificar as ações dos outros órgãos de soberania. Deve ser um Presidente atento, consciente do estado da nação e preocupado com o futuro do país e que em último caso intervém quando necessário.

Não podemos definitivamente dizer que foi esta a interpretação que o nosso Presidente Marcelo Rebelo de Sousa seguiu. Sempre olhámos para o prof. Marcelo como um homem de muitas ideias, um excelente constitucionalista e muito cauteloso sobre cada passo que dá. Numa suposta tentativa de evitar uma crise política, antecipou-se pressionando os partidos com a sua última arma de poder: a dissolução do Parlamento. Poderia a sua ideia ter sido um sucesso e de facto o orçamento poderia ser aprovado por receio de novas eleições políticas, o problema é que esse medo não foi acautelado pelos Partidos BE e PCP. Fica à interpretação de cada um, a intencionalidade do nosso Presidente utilizar este mecanismo como meio de ultimato, será que causou medo aos partidos? Ou será que foi uma tentativa de causar a sua marca política ameaçando a dissolução do Parlamento como meio de resolução da crise política à qual antecipou?

Seja como for, a minha opinião é forte, o nosso Presidente decidiu agir antes que qualquer outro órgão soberano pudesse utilizar as suas últimas alternativas, o que de certo modo pode ser visto como um ator que em vez de um intermediador, agiu de modo a alcançar um marco histórico nunca antes visto desde a revolução do 25 de Abril, (sem ser pela dupla dissolução do Parlamento feita por Jorge Sampaio) o que é dissolver a Assembleia por achar que existe um impasse político devido à reprovação do Orçamento de Estado, que não consegue ser resolvido por nenhum órgão de soberania.

Qual a consequência da dissolução? Simples, a convocação de novas eleições, que poderão ter estragos nunca antes vistos a partidos que ainda nem definiram o seu rumo partidário, encontrando-se fragilizados e sem qualquer possibilidade de conciliarem-se para uma campanha política e apresentação de um programa eleitoral sendo o caso do PSD e CDS-PP. Já o avanço assustador da extrema direita do Chega, que não perderá tempo com os seus populismos e irá usar todas as suas forças para obter mais lugares no parlamento. No caso da Iniciativa Liberal, a mesma acaba por beneficiar da instabilidade do CDS-PP podendo ganhar alguns votos se tiver um programa eleitoral promissor, e para além disso conseguir converter os conservadores do CDS-PP a ganharem uma nova visão política. À esquerda BE e PCP perderão sem qualquer tipo de dúvida votos e muitas perdas de cadeiras parlamentares por serem considerados uns dos principais causadores da instabilidade política que levou ao chumbo do orçamento, devido à sua insistência imprudente (sendo a ironia do destino agora pedirem que não se deveria avançar com as eleições, mas que se encontram preparados para tudo). Depois temos o PS, que no meio disto tudo, lança a sua propaganda eleitoral ainda estando no limbo do Governo, sabendo que no olho do furacão pode sair ainda mais beneficiado pela perda de votos à esquerda.

Valeu a pena o nosso Presidente usar este poder constitucional? Provavelmente não, pois a instabilidade partidária e a urgência com que as eleições teriam de ser feitas, leva a adiantamentos ou adiamentos de congressos partidários, de modo a eleger a futura cara do Partido, onde a escolha irá ser feita de maneira muito pobre devido à falta de tempo para definir e gerir o programa eleitoral. Já os partidos que se encontravam com poucos lugares devido à sua arrogância poderão perder tragicamente, e no final o PS pode atingir uma maioria que contudo é imprevisível caso o PSD consiga organizar o seu calendário político e ter uma campanha que se mereça digna para conseguir um número de votos decente que lhe permita ligar a partidos como Iniciativa Liberal, e CDS-PP.

Não desminto, que a solução do Presidente terá um pouco de fundamento, contudo poderia ser feita pela Assembleia da República que representa todas as vozes dos cidadãos que usaram o seu direito de voto apresentando uma diferente legitimidade democrática do Presidente, pois a solução que se pretende é que se aprove o orçamento e evite-se outra crise política, ou então que fiquemos condenados aos duodécimos previstos pela Lei de Orçamento de Estado no artigo 58.º n.º4, significando que se limita a execução mensal ao dividir por 12 o orçamento do ano de 2021 para 2022, causando inúmeros problemas de governação e consequências sem precedentes para os cidadãos portugueses. A atuação do Presidente pode ser vista, não como um ato que represente a nação, mas sim um ato pessoal, precipitado com a tentativa de ficar na História Governativa Portuguesa.

Ao dissolver o Parlamento, não está a cessar necessariamente o governo, mas sim cessar a função de todos os deputados, o Governo irá continuar a atuar nas medidas estritamente necessárias e proporcionais à sua atividade, podendo aprovar decretos lei que não estejam restringidos à Assembleia da República, ou sejam de exclusiva aprovação por parte do mesmo, pois o Governo é uma emanação da Assembleia (tendo menos legitimidade democrática) e é necessária para continuar a usar o poder executivo, enquanto a Assembleia da República que é o órgão representativo do povo cessa a sua função, ironicamente.

Deste modo, concluo que as relações entre os órgãos de soberania foram fragilizadas pela apressada decisão do Presidente da República, que por si só não vai sofrer consequências jurídicas pois não se julgam as ações do Presidente por irem contra a Constituição, o Tribunal Constitucional não poderá controlar estas ações, e apenas reger-se pela inconstitucionalidade de normas e não das ações. Esta fragilidade é grave, e a única solução é esperar pelo fim do mandato do Presidente da República, pois o mesmo é intocável, sem ser através de um ato de responsabilidade criminal no exercício dos seus poderes, previsto no artigo 130.º da CRP.

O futuro rumo da política portuguesa, em breve dependendo dos calendários eleitorais tanto dos partidos como das legislativas, vai causar muito caos, muitas disputas em que os únicos beneficiários desta saga poderá ser o próprio partido que apresentou o orçamento, o Governo de António Costa, líder do Partido Socialista.

Resta-me citar, uma frase por um dos meus autores preferidos, “All war is a symptom of man’s failure as a animal thinking.” ― John Steinbeck, que sirva de reflexão que todas as crises democráticas são feitas de escolhas políticas falhadas devido a impulsos pessoais que não conseguimos controlar até ser demasiado tarde.

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