A propósito de nada: Cunhal

por Luís Osório,    19 Abril, 2020
A propósito de nada: Cunhal
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Sim, passa tudo muito depressa. Por isso, se tens ideias no bloco de notas, ou sonhos que fizeste por esquecer, não desperdices mais o que na tua vida não passa hoje de um grito mudo. Torna-o real como no tempo em que tudo te era possível… Se queres pintar quadros procura a tela; se te amargura o livro que não escreveste regressa a ele; se tens a urgência de intervir faz por isso; se adiaste o amor por falta de coragem ganha-a de uma vez. Não fiques parado. E não esperes por homens providenciais que possam indicar o caminho, estes por longos anos não surgirão porque mesmo os melhores estarão presos a um colete-de-forças.

Não me posso queixar. Tenho 48 anos e o privilégio de conhecer ou ter conhecido algumas pessoas excecionais – Soares, Cunhal, Adriano Moreira, Eduardo Lourenço, Siza, Cunha Rego, Saramago e vários outros que me surpreenderam com um olhar, uma frase, uma ideia ou a sua energia.

Volto a Cunhal. Um dia convidei-o para estar num colóquio. Uns dias após o convite, no início de uma qualquer manhã, a avó materna, mulher da minha vida, acordou-me sobressaltada com um «Miguel (assim me chamava), vai ao telefone. Devo ter ouvido mal, mas pareceu-me que o homem disse que é o Álvaro Cunhal». Era mesmo… no outro lado da linha estava a voz e tudo o que nela vinha agarrado. Não me recordo de uma palavra desse telefonema, mas o colóquio aconteceu num Palácio Beau Séjour que me foi “emprestado” por Assunção Júdice, irmã de José Miguel.

Depois disso estive umas quantas vezes com ele. Chegámos a falar do 5 Dias, 5 Noites, do José Fonseca e Costa. Nunca me disse se gostara ou não do filme, nem sequer se se sentira bem retratado por Paulo Pires… levou a conversa, como sempre, para onde quis: «Na clandestinidade saí e entrei por muitos sítios. Quando vi Moscovo pela primeira vez, num congresso organizado pela juventude comunista internacional em 1935, saí pelo Alentejo. Atravessámos Espanha, os Pirinéus e a Alemanha nazi. E o que dizer da Polónia e dos países bálticos? Só ditaduras, ditaduras, ditaduras. Não era fácil atravessar clandestinamente toda a Europa para chegar à União Soviética. Mas muitos de nós fizeram-no».

Um homem excecional, sem dúvida. Será que os reconheceremos no futuro? E saberemos dar hipótese aos que tiverem razão antes de tempo? Hum… questão difícil. É como aqueles que oiço dizer que têm excesso de habilitações. Não me comovo com o argumento. Porque as habilitações valem o que valem, são uma carta em branco pois nelas não se mede o carácter ou a inteligência – há pessoas maravilhosas e outras deploráveis nessa condição. Mais complicado é mesmo os que defendem ideias antes de alguém estar preparado para as escutar. Não os reconhecemos, no máximo ficamos na dúvida. Depois a vida prossegue, os anos passam e um dia, num qualquer amanhã, alguém dirá que este ou aquele tiveram razão antes de tempo. Os que nasceram com excesso de futuro não são de lugar nenhum. Essa é que é essa.

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