A pulsação de Cabo Verde na Casa da Música com Dino D’Santiago e a sua “Eva”
Dino D’Santiago é, incontornavelmente, um dos músicos com maior notoriedade da atualidade em Portugal, num caminho que se distingue a solo há dez anos. Depois de passagens por outros grupos de renome, como os Expensive Soul, a sua expansão a solo surge através de um disco chamado “Eva”, composto em homenagem à sua sobrinha. É o ponto de partida para um caminho que traz o seu “Mundu Nôbu” (2019), o “Sotavento” (do mesmo ano) e “Kriola” (2020). São os três álbuns que o distinguem, envolvendo o funaná, o batuku e o criolo que traz no seu ADN e o soul que vem com a sua experiência com uma toada eletrónica e mais ritmada. Sonoridades que evoluem ao lado de músicos da urbanidade africanizada lisboeta, como Branko, Toty Sa’Med ou Tristany. São elementos que o fazem tornar-se num dos marcos artísticos da diáspora africana de língua portuguesa em Portugal e abrir a portas a (muitos, muitos) outros.
Nascido na Quarteira há quatro décadas, filho de cabo-verdianos, Claudino Pereira cresceu na pobreza e na necessidade de se superar com o dobro da força dos colegas da sua idade. Os obstáculos da raça e da condição social mantiveram-se sempre latentes e acompanharam-lhe quando se mudou para a cidade do Porto. Foi nesta cidade que, para além da participação na Operação Triunfo — que lhe identificou um talento que já se exibia no coro da igreja que frequentava —, se aproximou dos Expensive Soul, com quem colaborou. Entre outros projetos avulsos, nota para os Nu Soul Family, que ganharam alguma expressão no panorama do soul e do R&B em Portugal, e Dino and The Soul Motion, do qual foi o líder.
Porém, e pouco tempo antes de rumar a Lisboa e de emergir na sua fortíssima pegada multicultural e lusófona, Dino quis, com doçura e graciosidade, mergulhar nas suas origens caboverdianas e, daí, se proporciona o seu novo nome artístico e o disco “Eva”. É um percurso de descoberta e de redescoberta, porque, para lá dos originais “Pensa na Oji” (com a colaboração do mítico cantor angolano Paulo Flores), “Nos Tradison” (contando com a ajuda da voz de Jey), ou “Nos Amor” (com o contributo de Lígia Pereira), deparamo-nos com versões de bandas elementares na história do país, como Os Tubarões (a faixa “Djonsinho Cabral”, que viria a interpretar junto dos próprios não há muito tempo). Na produção musical, há créditos para a pioneira e saudosa Sara Tavares (“Nos Tradison”), mas também para Jorge Fernando, fadista com um vasto rol de créditos em álbuns de nomes como Mariza ou Ana Moura, à imagem de Diogo Clemente, este com Carminho.
Dino encontra-se com a sua história e com a história do seu povo, viajando para lá do processo de independência de Cabo Verde e chegando aos badios, gente natural da ilha de Santiago — daí o nome artístico de Dino — que foram escravizados pelos portugueses em lugares remotos das suas origens. Os temas percorrem questões humanistas, sem esquecer o passado de guerra entre terra e mar, a favor da independência e da autodeterminação. Embora distante da musicalidade que os discos produzidos por Lisboa têm, não deixou de ser premiado, conquistando dois Cabo Verde Music Awards e até uma menção como um dos melhores discos de 2013 por parte dos Europe World Music Charts.
O resto da história seria feito a seguir e é uma a que muitos de nós têm acesso. É a mesma história que nos leva à celebração destes dez anos de Dino D’Santiago a solo em grandes salas, no caso o Tivoli e a Casa da Música. Foi a esta que comparecemos e na qual vimos, para além do concerto, e apresentada pela própria figura de Eva, uma curta-metragem de quinze minutos. “Eva, onti y oji”, realizada pelo artista visual Chris Costa. Ela conta-nos a primeira visita de Eva à ilha de Santiago, e, a partir da sua voz, vamos ao encontro das inspirações da música do seu tio, em especial dos fundamentos deste álbum. De fato e gravata, Eva vai à descoberta dos seus antepassados e dos seus parentes, com a bênção do tio e dos pais. De igual modo, Dino mergulha nas fotografias da sua meninice e da juventude ao lado da sua irmã e, ao som da sua música, vamos ao encontro das batuqueiras da ilha, sem esquecer um momento comovente de encontro entre Eva e da figura do centenário Djonsinho Cabral, de seu nome João Alves Álvares.
Para este concerto, produzido pelo imenso Kalaf Epalanga, foi-nos prometida uma nova roupagem do disco, à imagem da sua evolução como músico e artista, com indícios de uma sonoridade mais viva e consonante com a ginga do funaná. Trazendo, também, o fato e gravata que ostenta na capa do álbum, Dino fez-se acompanhar por um forte contingente instrumental, nomeadamente Ndu Carlos e Iúri Oliveira na percussão e congas, Karlos Rotsen nas teclas, com um Roland Juno D, DGroove na bateria, o baixista Peterson Gau e o duo de guitarristas Acácia Maior. As luzes foram imensas e encheram de diversidade e de brilho uma sala que começou a assemelhar-se à iluminação do exterior.
Porém, se o disco se revela ligeiro, doce e subtil, a prestação ao vivo traz essa reinvenção que Dino havia dito que queria alcançar, em jeito de celebração dos dez anos de “Eva”. Uma reinvenção que vai de encontro à descoberta musical do artista até ao momento, com mais vivacidade e a tal ginga, que não deixa mal o legado dos grandes nomes do funaná e da morna, como Cesária Évora, Tito Paris, Ildo Lobo, vocalista d’Os Tubarões, e, mais recentemente, Mayra Andrade. Algo que fomos antevendo no “estudo” que fizemos, depois de espreitar o concerto em Loulé, no final de 2013, onde Dino colocou “Eva” em palco. Essa reinvenção ficou imortalizada em disco — “EVA (onti y oji)” —, celebrando os dez anos de “Eva”, lançado já uma semana depois deste concerto.
Em plena cidade em que começou a conceber e compor o álbum e em que escreveu a canção “Eva”, o cantor fez estremecer a sala Suggia com um repertório vivo e sentido, abrindo com “Nôs Tradison” (a nosso ver, faltou lembrar Sara Tavares, que muito contribuiu para o nascimento desta música) e passando pelas baladas “Lava-me Em Ti”, “Herança de uma Cantadeira”, homenageando a fadista Amália Rodrigues, ou a própria “Eva”. Porém, foram exceções num pujantíssimo show que obrigou a apinhada audiência a largar os assentos e a dar corda aos sapatos, num exercício de aeróbica à africana, conforme a lambada, o funaná e a morna melhor instruem.
“Pensa na Oji” e “Djonsinho Cabral” foram os grandes momentos da noite, que ficou pautada pela retrospetiva de Dino sobre a sua vivência no Porto (mais de uma década) e pela confidência das dificuldades que os pais de Eva tiveram no seu planeamento familiar e na extensão da família a três membros. A história caricata do seu pai, crente na “santice” como o seu outro filho, que foi a Fátima abençoar o vestido de casamento da sua futura esposa, mesmo sem a conhecer, antes de partir para Cabo Verde, também ficou no ouvido. De igual modo, falou-nos de uma situação na escola pela qual a sua sobrinha havia passado e que a poderia impedir de subir ao palco, mas que, com a presença de Carolina Deslandes (a quem dedicou uma faixa) e de Bárbara Tinoco, ela fez o esforço para se apresentar na melhor forma.
Com a sua filha de seis meses a assistir ao primeiro concerto do pai, músico deu oportunidade aos seus sobrinhos para, numa dança bem enérgica e urbana, deslumbrar os espectadores que, decerto, talvez não esperassem mexer-se tanto. Isto porque, apesar da proposta relativamente formal de concerto, à imagem do Tivoli, consideramos que Dino não é para ser visto sentado. É, antes, por mais que a imagem e que os lugares sentados possam indiciar o ambiente e a proposta musical, para estar ligado à tomada e vibrar de início ao fim. A energia que o cantor transmitiu através da voz e do ferrinho chegou à linha da frente, onde estávamos a assistir, onde até bailou com uma espectadora e saudou muitos outros. A interação foi constante e até pediu que cantássemos e aplaudíssemos mais, para além da dança (com a cara-metade ou não) que é intrínseca ao ser cabo-verdiano. Como o próprio dizia, “quero essa merda com mais tusa”.
Daí a nossa interrogação sobre o lugar do concerto, que também ficou marcado com um pedido de casamento na audiência e que fez toda a gente render-se já perto do fim. Isto porque o encore trouxe dois êxitos da discografia de Dino, sendo eles “Como Seria” e “Kriolu”, que arrasaram (no bom sentido) por completo a audiência e que fizeram clamar — “Dino, Dino” — por minutos largos por nova aparição da trupe do algarvio e companhia. O clima foi de festa e de alegria, entre mais novos e mais velhos, de diversas proveniências, com diferentes contextos, num ambiente de harmonia, de unidade e de redescoberta dos mundos que temos em nós e que encontramos nos outros, especialmente nas heranças do sangue, envolvendo até os vigilantes e os técnicos de logística presentes. Melhor fecho só com um abraço entre tio e sobrinha, que não chegaram a pisar o palco ao mesmo tempo.
Dino D’Santiago mostrou a extensão do artista que se tornou nestas duas décadas de carreira. Capaz de ser baladeiro e formal, o fato e a gravata são, contudo, mera aparência no que o seu coração transmite: alegria, vivacidade, energia, vida. Muita vida e muitas vidas foram as que subiram ao palco, tanto em jeito de memória, como de dedicatória. As gerações passadas, presentes e futuras viram o seu caminho ser honrado e transmitido para tantos que, embora não partilhando dessa herança direta, se tornaram parentes. Não só por afinidade, mas com genuinidade, de corpo e alma, porque o ser Cabo Verde é ser crioulo e é ser, indiretamente, português. Fazemos o ato de contrição pelos vis massacres e fomes (Dino recordou, indiretamente, a de 1949, no Desastre da Assistência, no seu arquipélago) e queremos, todos nós, ser amigos de Djonsinho, de Dino, de Eva. A pulsação ainda bate forte e levamo-los connosco. É este o efeito Dino que fica e que perdurará.