A sombra do silêncio: as Jornadas Mundiais da Juventude, fé e abusos sexuais na Igreja Católica

por Joana Fernandes,    4 Agosto, 2023
A sombra do silêncio: as Jornadas Mundiais da Juventude, fé e abusos sexuais na Igreja Católica
PUB

Temos diante de nós um possível momento de reflexão. Enquanto acontece a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, um evento em que se celebra a fé católica entre os jovens e que conta com a presença do Papa, somos confrontados com uma verdade devastadora. Este ano, em fevereiro, foi apresentado o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal. Esta comissão, liderada por Pedro Strecht, reporta um total mínimo de 4.815 vítimas de abusos sexuais por membros do clero. 4.815. Não é um número abstrato, inventado ou imaginado. É uma realidade que tem sido minimizada e ignorada por líderes religiosos, funcionários da Igreja e até por líderes políticos. Recordo o leitor do infeliz comentário do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que afirmou que as 424 queixas recebidas pela Comissão Independente não lhe parecem um número “particularmente elevado”, já que “noutros países com horizontes mais pequenos houve milhares de casos”. Ainda neste comentário, referiu, quando questionado se estas denúncias mancharam a imagem do país como anfitrião da JMJ de 2023, que é um assunto “que não tem nada a ver”. Parece óbvio a qualquer detentor de bom-senso que 1 caso é já um número elevado, imagine-se 400. O tamanho do país em que acontece em nada está relacionado ao número de casos. Vítimas de abusos sexuais não são só números, e mesmo apenas uma pessoa em sofrimento é uma pessoa em sofrimento a mais do que deveria existir.

A história dos abusos sexuais na Igreja não é recente. João Francisco Gomes tem, no seu livro “Roma, temos um problema: como a Igreja Católica lidou com dois mil anos de abusos sexuais”, diversas passagens que ficaram comigo após a leitura. Numa delas, reconhece que, no início do catolicismo, já se conhecia a imoralidade dos abusos sexuais. Nela, pode ler-se “Na verdade, a pedofilia, o abuso de menores e, de modo geral, um conjunto de comportamentos sexuais pouco consentâneos com o discurso da Igreja atravessaram toda a história do Cristianismo (…). Se recuarmos ao século I (…), encontramos o primeiro aviso doutrinal contra o abuso sexual de menores — e se há uma condenação explícita, é porque o crime era conhecido e considerado moralmente errado”. João Francisco Gomes procede a contar diversas situações ao longo da história em que, privada e internamente, a Igreja tentou controlar, prevenir e lidar com este fenómeno. Até à eclosão, nos anos 2000, do escândalo de abusos sexuais de menores nos Estados Unidos, com a publicação pelo Boston Globe das reportagens históricas sobre o tema.

“Acho importante fazer a distinção entre a fé e a instituição que a representa. Cada pessoa tem o direito a encontrar a sua própria fé, uma ligação íntima entre o indivíduo e as suas crenças, valores e inspiração. A Igreja, por outro lado, é uma instituição humana, imperfeita, sujeita a erros, por mais imperdoáveis que eles sejam.”

Quem professa a fé católica busca na Igreja um espaço seguro, de crescimento espiritual, de orientação, de nutrição da fé e da espiritualidade. Eu própria procurei tudo isto na Igreja, há vários anos. No entanto, estas vítimas, que com certeza serão bem mais de 4.800 (relembro o leitor que a esmagadora maioria dos crimes sexuais nunca são reportados), encontraram o oposto. Um abismo de dor, traição e trauma indescritíveis. Quebrou-se a sua confiança, esmagou-se a sua esperança e destruíram-se inúmeras vidas.

A fé é uma dádiva poderosa, um farol de esperança no meio da escuridão em que o mundo se encontra. É um sentimento extraordinário, uma força que nos conecta a algo maior que nós, que transcende adversidades, que oferece consolo e conforto em tempos de sofrimento. Torna-se um refúgio para a alma, uma proteção contra os males do mundo. No meio de tanta maldade, dor e conflito, a possibilidade de existência de uma presença luminosa e calorosa nas nossas vidas é reconfortante e revitalizante. Também por isso acho importante fazer a distinção entre a fé e a instituição que a representa. Cada pessoa tem o direito a encontrar a sua própria fé, uma ligação íntima entre o indivíduo e as suas crenças, valores e inspiração. A Igreja, por outro lado, é uma instituição humana, imperfeita, sujeita a erros, por mais imperdoáveis que eles sejam.

Mas estamos em 2023, queremos pôr fim à impunidade, e os erros cometidos pela Igreja não são erros sem consequências. Foram ações, escolhas de algumas pessoas que determinaram e destruíram inúmeras vidas por esse mundo fora. Portugal não foi exceção, e voltamos então ao ponto base desta crónica. As JMJ em Portugal.

“O meu coração, os meus pensamentos e a minha solidariedade enquanto vítima de abuso sexual estão com todos os sobreviventes desta instituição, em especial durante estas semanas em que as Jornadas estão na ordem do dia e em que até vemos casos de censura a ações de sensibilização para este tópico tão sensível, como foi a questão da retirada do outdoor com o número de vítimas em Oeiras.”

No mesmo ano em que se divulga o relatório no início mencionado, em que se dão a conhecer histórias aterradoras de vítimas de alguns dos piores crimes que se podem cometer, em que uma onda de indignação atinge o país, somos anfitriões de um dos maiores eventos da religião, onde são gastos milhões de euros de dinheiro público, dinheiro de tantas destas pessoas que se indignam. E um evento que, como se não bastasse toda a questão do dinheiro público e da laicidade do Estado, envolve ainda milhares de jovens, logicamente os mais vulneráveis e a mais afetada classe por estes abusos, por uma instituição que escolhe deliberadamente varrê-los para debaixo do tapete, achando que uma palavrinha do Papa vai curar as dores e os traumas das milhares de vítimas destes crimes hediondo. Uma instituição que, ano após ano, tem vindo a demonstrar que não tem interesse em mudar, que dá jeito as vítimas ficarem caladas, que quem comete os crimes volta a exercer as suas funções e que a justiça não funciona.

Peço então a todos os leitores, católicos ou não, que usem este momento e este evento para refletirem seriamente sobre a cultura de desresponsabilização, de esquecimento, de ignorância que nos assola. Peço que reflitam sobre a instituição que esconde, minimiza, descredibiliza. Peço que reflitam.

O meu coração, os meus pensamentos e a minha solidariedade enquanto vítima de abuso sexual estão com todos os sobreviventes desta instituição, em especial durante estas semanas em que as Jornadas estão na ordem do dia e em que até vemos casos de censura a ações de sensibilização para este tópico tão sensível, como foi a questão da retirada do outdoor com o número de vítimas em Oeiras. Espero que encontrem a paz e a cura que precisam e que consigam seguir em frente. Porque o mundo não parou para toda a gente, mas certamente que para eles parou.

Para denunciar ou pedir apoio em caso de violação, pode contactar os seguintes números telefónicos:

112 (Número Europeu de Emergência)  
114 (Linha Nacional de Emergência Social; caso não seja seguro regressar a casa e não tenha onde ficar)
116 006 (Linha de Apoio à Vítima)
910846589 (Linha de apoio da Associação Quebrar o Silêncio, que presta apoio especializado a homens sobreviventes de violência e abuso sexual)


Pode ainda dirigir-se à esquadra da PSP, posto da GNR ou piquete da PJ mais próximo. É recomendada a procura de ajuda psicológica ou psiquiátrica.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.