“A Tragédia de Macbeth” cuidadosamente criada por Joel Coen
Se há um elemento comum em quase todos os filmes da produtora/distribuidora A24 é a componente visual. Todos os seus filmes têm elementos técnicos de elevada qualidade, assim como originalidade. “Uncut Gems”, “Midsommar”, “Lady Bird”, “Moonlight”, “Ramy”, “Euphoria”, são apenas algumas das produções desta A24, que em poucos anos se tornou numa das produtoras mais relevantes do mundo, trazendo cinema independente e sem limites para o grande público.
“A Tragédia Macbeth” marca a primeira aventura a solo na realização de Joel Coen, que desta vez deixou o seu irmão de parte. Esta é mais uma adaptação ao grande ecrã (com estreia limitada nos cinemas e distribuída através da Apple+) da famosa peça de William Shakespeare. Depois de Orson Welles (1948), Akira Kurosawa (“Trono de Sangue”, 1957), Roman Polanski (1971), “Justin Kurzel” (2015) e muitos, muitos outros, é a vez de Joel Coen tentar revisitar o imaginário do escritor inglês.
E é exactamente nas obras de Welles e Kurzel que Coen mais se inspira. A Welles foi buscar os cenários, o preto e branco, alguns planos épicos e uma grande performance do seu actor principal (antes o próprio Welles, agora Denzel Washington). A Kurzel, Coen vai buscar também alguns planos, o esquema narrativo (narrativa mais lenta, diálogo em inglês antigo) e principalmente a montagem (aposta em planos fixos).
Se Welles consegue criar uma boa adaptação que se pauta por um grande equilíbrio de todas as artes ligadas ao cinema, já Kurzel cria uma obra bastante desequilibrada e com algumas falhas narrativas, embora com uma beleza visual bastante interessante. Coen não comete as mesmas falhas, mas também não consegue brilhar onde as anteriores adaptações se destacaram.
Do ponto de vista visual é certo que estamos perante uma obra meticulosamente bem preparada e que nos oferece planos de qualidade. Contudo, todo este planeamento é descomedido e por vezes vazio do seu propósito. “Belfast” (2021) de Kenneth Branagh comete exactamente o mesmo ”erro”. Numa pintura também ela a preto e branco, Branagh usa e abusa dos planos cuidadosamente criados, destruindo um pouco o elemento surpresa e também beleza gráfica que os planos mais belos transmitem.
Tecnicamente é um filme coeso, com os seus momentos de grande beleza, mas que se tivesse apostado numa composição geral mais simplificada poderia ter colhido mais frutos, nomeadamente no que toca à imagem.
A cinematografia ficou a cabo do francês Bruno Delbonnel, que trabalhou anteriormente com Coen em “A Balada de Buster Scruggs” e “Inside Llewyn Davis”, e também no filme “Amélie”. E é certo que Delbonnel domina a sua arte, mas quanto ao preto e branco temos momentos de grande inconsistência. Todos os “close-up shots” são bastante bom, e muitos dos planos distantes são também interessantes, mas nalguns deles denota-se um menor cuidado na luz e no equilibro entre sombras.
Um dos pontos fortes da história de Macbeth é toda a tensão politica e psicológica que as traições e decisões vão tomando ao longa da mesma. Em “A Tragédia de Macbeth”, embora estejamos perante óptimas interpretações, sentimos alguma dificuldade em sentir emoções nas suas acções. Isto deve-se ao facto deste filme ter sido filmado exclusivamente em cenários, pequenas salas, onde a sensação passada ao espectador é a de que estamos no Teatro. E no Teatro, ao invés do cinema, são as interpretações e diálogos, por vezes exageradas, que fortalecem os laços com o espectador, não a montagem ou a sequência de planos, visto que não existe câmara. Esta abordagem teatral pode funcionar para alguns espectadores, mas certamente não funcionará para todos e neste filme corta um pouco da tensão política que a história poderia oferecer, centrando todas as atenções nos actores e planos. Essa tensão que poderia ser criada através de um uso diferente da montagem e também dos diálogos é aqui posta num outro plano, dando-se ênfase total ao diálogo/actor. E por um lado isso resulta bastante bem, as interpretações de “A Tragédia de Macbeth” estão a um nível bastante satisfatório, sendo que no caso de Kathryn Hunter (“As três Bruxas”) são elevadas ao ponto de excelência. Esta actriz de teatro brilha como nunca em frente das câmaras, pois todo o conceito narrativo e cénico está a seu favor. Também Denzel Washington e Frances McDormand estão a bom nível, sendo expectável que ambos sejam nomeados para Óscar. Destaque também a Alex Hassell no papel do inconfiável Ross. Contudo, o pouco equilibrio da montagem com este tipo de interpretações faz com que o filme se perca na possível tensão que poderia oferecer.
A banda sonora é outro elemento menos bem conseguido neste filme. Carter Burwell trabalhou com os irmãos Coen em grande parte dos seus filmes, e muitas vezes criou obras de enorme qualidade. Porém, “A Tragédia de Macbeth” falha em entregar elementos sonoros de grande destaque, e não é pela abordagem ser mais minimalista, porque não é de todo, é mesmo pela qualidade banal da maioria das faixas.
Toda a distância emocional narrativa, aliada a uma banda sonora mediocre provoca alguns conflitos que não fazem a história fluir da melhor maneira. E este pode ser o maior ponto negativo apresentado ao filme de Joel Coen, toda esta ausência emocional, que parece ser propositada, mas que limita a sua própria obra.
As boas interpretações, alguns bons planos e coesão geral oferecem uma boa experiência a quem quiser revisitar mais uma vez a obra de Shakespeare no grande ecrã, mas o inglês antigo nos diálogos e essa referida inconsistência narrativa serão um problema para alguns.
Joel Coen conseguiu criar boas ideias nesta obra, mas não se conseguiu destacar do que já tinha sido feito por outros realizadores com a mesma história. É possível que a própria identidade da produtora A24 tenha influenciado o realizador a seguir um determinado caminho, mas não pode servir de desculpa para aquele que é um dos filmes mais fracos de Joel Coen, embora demonstre grande ambição. E se “A Tragédia de Macbeth” é um dos filmes mais fracos de Coen, este comentário negativo serve como destaque positivo a toda a sua filmografia, já que este filme é muito melhor do que muitos filmes que muitos realizadores fizeram em toda a sua carreira. E é por isso que estamos perante um grande realizador que fez inúmeras obras primas ao longo da sua carreira (“Fargo”, “Big Lebowski”, “Inside Llewyn Davis”, “Barton Fink” e outros).