A vida de uma pequena cidade norueguesa, em ‘Garman & Worse’, de Alexander Kielland
No final do séc. XIX, a literatura era atravessada, em diversas geografias, por uma corrente realista, focada em descrever o familiar como realmente era, despojando-se do dramatismo e do estilo excessivamente floreado da escrita que marcava correntes anteriores como o romantismo. São disso o maior exemplo provavelmente os livros que nos ficaram dos tempos áureos da literatura russa, com Léo Tólstoi ou Fiódor Dostoiévski, ou, na literatura francesa, de homens como Gustave Flaubert ou Émile Zola, que cunha o termo particular do naturalismo, onde o objectivo seria dissecar com distanciamento o comportamento humano, por meio da observação e do método científico.
Na Noruega, este movimento realista foi sobretudo marcado pelo chamado grupo De Fire Store, os quatro grandes da literatura norueguesa do final do séc. XIX, Henrik Ibsen, Bjørnstjerne Bjørnson, Jonas Lie e Alexander Kielland. Se o primeiro, o dramaturgo Ibsen, é já amplamente reconhecido fora de portas, qualquer um dos outros três tem uma projecção muito limitada à realidade norueguesa ou nórdica, no geral. Daí que a recente publicação do primeiro romance de Alexander Kielland, Garman & Worse – Um Romance Norueguês, originalmente de 1880, por parte da Cavalo de Ferro e em tradução de João Reis directamente do norueguês, seja tão importante.
Garman & Worse trata, essencialmente, da vida de um conjunto de pessoas que vive na mesma cidade ou à volta dela, com especial foco na família Garman, dona da empresa mercante que dá nome ao livro, e na família Worse, outrora parte da empresa na qual o seu nome se mantém, mas cuja parte na mesma foi vendida pelo seu já falecido patriarca.
Expostas em relato incisivo, é das pequenas intrigas entre as diferentes partes envolvidas na história que esta se vai fazendo, ainda que algo de especialmente interessante no livro seja, ao mesmo tempo, quão pouco tempo acaba por despender o autor à volta destas mesmas questões. O foco, ou não fosse este um romance realista (acima de tudo perto do naturalismo de Zola), incide sobretudo nas diferenças entre as diferentes classes, ou seja, a diferença de padrões de julgamento face ao comportamento de pobres e ricos, de operários, pescadores, para com os detentores do real poder na cidade, os donos da Garman & Worse, mas também os membros do clero, largamente satirizados pelo autor face à sua clara falha em cumprir o papel que, teoricamente, lhes teria sido atribuído por Deus.
Garman & Worse, acima de tudo enquanto crónica de costumes, é um daqueles romances que nos relembra o egoísmo da razão humana. Não é que as motivações estejam erradas à partida e que o ser humano deseje fazer o mal sobre outros, mas que o egoísmo está em nós tão entranhado que somos incapazes de ver que, por dentro das nossas boas intenções, o nosso comportamento continua a ser vazio, ou então um mero perpetuar da situação existente. Um claro exemplo disto é quando, a certa altura no romance, a um pomposo funeral, de uma personagem importantíssima na vida da cidade, se sobrepõe outro, de uma pobre coitada que, ainda para mais, vê membros da sua família impossibilitados de assistir ao seu cortejo por obrigação profissional de marcar presença no outro, mais importante. Ora, no funeral do destacado habitante da cidade, o pastor Martens está empenhadíssimo em mostrar a falta de importância do dinheiro e a efemeridade da vida; em como, quando mortos, ricos e pobres são iguais, ambos sepultados em sete palmos de terra. O discurso comove os presentes, de todas as classes, que choram ao ouvir o pastor, que dedica largos minutos em frente à campa do falecido, antes de, largando um pedaço de terra para a campa, dar por terminada a cerimónia, caminhando depois em direcção à campa da outra falecida, a tal que não era rica, para tratar da cerimónia desta. Chegado à zona atribuída aos pobres dentro do cemitério, apenas largar umas palavras de pesar, antes de rumar a outras paragens, conseguindo o autor mostar, através de tão simples sucessão de acontecimentos, como os actos andam distantes das palavras, e como, afinal, mesmo após a morte, as distinções se mantêm. Não é que as palavras sejam mal-intencionadas, destinadas a iludir os ouvintes, mas estamos tão habituados aos nossos papéis que quase nunca paramos para pensar na conjugação entre o que dizemos e fazemos.
Não deixa de ser curioso que Kielland, membro de uma família de ricos mercadores, dedique tanta da sua atenção aos menos afortunados. Talvez por conhecer os meandros do funcionamento de famílias ricas como a dos Garman, lhe seja tão simples ser clarividente no retrato da vida de uma pequena cidade na costa norueguesa, e daí o seu interesse se prolongar para fora das esferas com as quais estaria habituado a conviver.
Para os privilegiados os problemas tomam maioritariamente a forma de intrigas amorosas, quando quem está na mó de baixo acaba por ter de enfrentar a morte, ou a destruição do seio familiar. Mas a tragédia toca a todos e, independentemente da classe, e como, patrão ou trabalhador, todos podem ser devastados por um acontecimento inesperado. A diferença evidencia-se no recobro; enquanto uns têm os meios para seguir em frente e continuar com o negócio, outros ficam sem alternativas que não abandonar o ofício ou a zona, ou acabar inevitavelmente nos copos, uma vida imersa em álcool quase infalível. Todos o bebem, mas só os de baixo sofrem as consequências do seu vício nele. Não é claro se Keilland julga tais desigualdades inevitáveis, a sua obra não parece apontar grandes caminhos de mudança, e sobretudo parece apresentar a vida como algo cíclico, infinito. Apesar de tudo, quer se julgue o problema modificável ou não, importa primeiro inteirarmo-nos dele, e Garman & Worse é dos mais capazes de nos mostar a natureza humana.